Questão econômica

Entrevista: Roberta Fragoso Kaufmann, procuradora do DF

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29 de julho de 2007, 0h00

Roberta Kaufmann - por SpaccaSpacca" data-GUID="roberta_kaufmann.jpeg">No Brasil, ninguém é excluído pelo simples fato de ser negro. Quem não consegue chegar à universidade é porque não teve condições financeiras de pagar boas escolas e obter qualificação suficiente para ser aprovado. Independentemente da cor da pele. Cotas para negros nas universidades não resolvem o problema. Os não-beneficiados são tratados de forma desigual, na medida em que se delimita o direito de acesso a todos, com a redução no número das vagas disponíveis.

O pensamento, polêmico, foi apresentado pela procuradora do Distrito Federal Roberta Fragoso Kaufmann, em sua tese de mestrado. Ela é contra qualquer tipo de ação afirmativa para negros que não esteja relacionada também à questão econômica. Para a procuradora, políticas que não partam deste princípio podem aumentar o racismo aos negros, em vez de incluí-los de fato na sociedade. Ela indica bolsas de estudo e incentivos fiscais como formas de resolver a questão da desigualdade.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Roberta critica os brasileiros que estão deslumbrados com uma medida criada pelos norte-americanos, baseada na realidade de segregação total vivida pelos negros nos Estados Unidos. Segundo ela, quase todos os artigos jurídicos e livros publicados sobre a questão das ações afirmativas concluem que estas são medidas de concretização do princípio da igualdade, de um Estado de bem-estar social, embora a matriz deste modelo sejam os Estados Unidos, o paradigma do Estado liberal.

Mas o problema maior, segundo Roberta, não é este. E sim as diferenças históricas, sociais e culturais que engendraram o racismo nos Estados Unidos e no Brasil. Estas diferenças começam no processo de colonização de cada país e no modo como cada um escravizou e libertou os africanos. A maior diferença, contudo, é que enquanto no Brasil houve uma integração de raças comandadas pela intensa miscigenação, nos Estados Unidos houve um sistema institucional de segregação que proibiu a convivência entre brancos e negros. E só isso seria suficiente para que soluções que tiveram um papel importante para combater o racismo nos Estados Unidos sejam desaconselhadas para enfrentar o mesmo fenômeno no Brasil. Mesmo porque o fenômeno não é o mesmo.

“Quando digo que sou a favor de ações afirmativas baseadas também no critério econômico, não agrado os principais líderes do movimento negro porque a maioria é de classe média e não seria atingida pela minha proposta”, afirma a procuradora.

Roberta Fragoso Kaufmann é advogada, nascida e formada em Recife, pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi a primeira colocada na prova para mestrandos na Universidade de Brasília. Tornou-se mestra com a apresentação da tese que virou o livro Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito?. Pouco depois foi convidada pelo ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, para assessorá-lo. Aceitou e permaneceu na Corte por cinco anos. Atualmente, é procuradora do Distrito Federal.

Leia a entrevista

ConJur — A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que política pública baseada em critério racial é racismo e considerou que escolas do Estado não podem fazer programas de ação afirmativa para favorecer minorias étnicas. Como a senhora vê essa decisão?

Roberta Fragoso Kaufmann — Com cautela. Nos Estado Unidos houve a instituição de uma política pública oficial de segregação. Todos os níveis de governo fomentavam a exclusão dos negros. Essa política racial foi sustentada por decisões da Suprema Corte e também por leis editadas pelo governo. Ou seja, o problema de integração do negro à sociedade americana não foi apenas uma herança perversa da escravidão, mas, sobretudo, conseqüência do racismo institucionalizado proporcionado pela atuação conjunta da sociedade e dos poderes que compunham o governo. Por tais razões, considero extremamente necessário, para a realidade americana, o desenvolvimento de políticas de ações afirmativas para negros.

ConJur — Então, o que é bom para os Estados Unidos não é bom para o Brasil?

Roberta — A diferença fundamental é que não podemos simplesmente importar um modelo que foi pensado para outra realidade. Quem pretende implementar no Brasil o modelo de ação afirmativa dos Estados Unidos esquece a realidade americana de segregação racial institucionalizada e as diferenças estruturais que existiram e ainda existem em relação à formação histórica e social de cada povo. Isto não quer dizer, obviamente, que as ações afirmativas no Brasil não sejam válidas. Mas devemos ter em mente e batalhar para que o modelo a ser implantado aqui decorra da análise do nosso próprio contexto.

ConJur — Quais seriam os critérios para se adotar política de ação afirmativa no Brasil?


Roberta — Podemos conceituar as ações afirmativas como um instrumento temporário de política social, por meio do qual se visa a integrar certo grupo de pessoas à sociedade, para aumentar a participação desses indivíduos sub-representados em esferas nas quais tradicionalmente permaneceriam alijados por razões de raça, sexo, etnia, deficiências física e mental ou classe social. As cotas são apenas um dos mecanismos existentes na aplicação da política de proteção às minorias desfavorecidas. Aparecem com a reserva de vagas no vestibular, para ingresso nas universidades e na porcentagem de empregos para determinados grupos. Existem diversas outras modalidades de medidas positivas que podem ser adotadas, como bolsas de estudo, reforço escolar, linhas especiais de crédito e estímulos fiscais diversos.

ConJur — Qual o problema das cotas?

Roberta — A política de cotas fere o princípio da igualdade, porque os não-beneficiados acabam sendo tratados de maneira desigual, na medida em que se delimita o direito de acesso a todos, com a redução no número das vagas disponíveis. Assim, pessoas inocentes terminariam punidas por atos — o preconceito e a discriminação que impediram o acesso das minorias — para os quais não deram causa, e em relação aos quais podem divergir profundamente.

ConJur — Existem alternativas?

Roberta — Se as ações afirmativas adotadas não forem numericamente fixadas por meio de cotas, os efeitos da política positiva seriam diluídos entre toda a sociedade e, assim, não haveria o risco de discriminar reversamente alguém. Bolsas de estudos ou incentivos fiscais diluem o ônus da política entre todos da sociedade e não em relação a um grupo específico. Com as cotas, todo o ônus dessa política é suportado pelos que foram excluídos, gerando a chamada discriminação reversa.

ConJur — Quando se dilui o ônus, a sociedade sente menos.

Roberta — Exatamente. Acredito na viabilidade de ações afirmativas lato sensu para negros no Brasil. Não podemos esquecer que o Estado brasileiro, quando promoveu a escravidão, teve um papel relevantíssimo na correlação perversa entre o negro e a pobreza. A escravidão durou 300 anos no Brasil. Depois que foi abolida, não foi concedido nenhum tipo de auxílio governamental aos negros. O Estado brasileiro se omitiu no dever de integrá-los à sociedade. Ao mesmo tempo, a imigração foi largamente incentivada. Os estrangeiros receberam hospedagem e foram inseridos no mercado de trabalho com a ajuda do Estado. O negro recém-liberto, por sua vez, preferia o ócio ao trabalho insano da lavoura. Por tais razões, os negros até hoje sofrem os efeitos da pobreza. É o chamado efeito transgeracional da exclusão de origem. Tal conseqüência tem importância decisiva para o debate sobre as ações afirmativas no Brasil, na medida em que desmitifica a correlação entre os péssimos indicadores sociais e econômicos relativos aos negros e a prática de racismo pela sociedade. Não somos uma sociedade racista, diferentemente da sociedade norte-americana. Por tais razões, as ações afirmativas para negros no Brasil devem necessariamente conjugar o fator racial com o econômico, porque a pobreza é o grande fator de exclusão do negro na sociedade brasileira, e não o racismo.

ConJur — A isenção fiscal para uma determinada minoria não cai no mesmo problema das cotas raciais?

Roberta — Não, porque quando você concede isenção fiscal para determinado segmento, dilui-se o ônus entre toda a sociedade. Não há a discriminação reversa de um grupo específico. Como exemplo de isenção fiscal utilizada como ação afirmativa pode-se destacar a norma do estado de São Paulo que previra redução de ICMS e IPVA às empresas que tivessem, pelo menos, 30% dos empregados com idade superior a 40 anos. A lei foi revogada em parte porque o Supremo Tribunal Federal considerou que nenhum estado pode legislar sobre isenções de ICMS sem o acordo dos demais estados-membros. Mas considerou válida a política quanto ao IPVA, sinalizando pela constitucionalidade desse tipo de ação afirmativa.

ConJur — Do que depende a constitucionalidade de uma ação afirmativa?

Roberta — Depende da razoabilidade quanto aos critérios eleitos pelo legislador, ou seja, qual é a minoria escolhida para ser beneficiada. Por exemplo, reservar vagas em estacionamento para idosos ou deficientes físicos é uma ação válida. A partir da presunção de que eles têm uma deficiência de locomoção, a medida é adequada. O exemplo mostra que ações afirmativas devem ser analisadas mediante um contexto histórico e social específico e não de maneira universal ou absoluta. A escolha de um grupo para ser objeto de uma ação afirmativa pode ser válida em um país e não ser em outro. Como exemplo, poderíamos citar as ações afirmativas para turcos na Alemanha, para esquimós no Canadá e para chineses na Malásia. No Brasil nenhum desses grupos poderia ser alvo de ações afirmativas, já que aqui nenhum deles sofre discriminação.


ConJur — Nos Estados Unidos a ação afirmativa é uma forma de integrar os negros que foram alvo de uma política institucional de segregação. No Brasil, os movimentos negros reconhecem que não houve uma política institucional de segregação, mas que culturalmente o efeito acabou sendo o mesmo. Como responder a esse argumento?

Roberta — No Brasil, nunca houve qualquer tentativa de limitar o acesso das pessoas ao exercício de direitos por causa da raça. O fato de ser mulato, ou negro, não impediu a assunção de cargos ou de posições sociais de destaque, ainda quando vigente o sistema escravocrata. Já nos Estados Unidos, o simples fato de um cidadão ser considerado negro já significava uma barreira intransponível na sociedade, independentemente de sua posição social. Mesmo o negro rico norte-americano não possuía os direitos mais básicos, vedados por lei, como o de casar com uma pessoa de outra raça, votar, ser votado, freqüentar escolas, piscinas, parques.

ConJur — Existe um critério objetivo para dizer quem é negro?

Roberta — A forma de classificação racial é outra grande diferença entre o Brasil e os Estados. Lá, o critério de definição racial é o de ascendência. Negro é aquele que possui uma gota de sangue negro, de acordo com o critério chamado one drop rule (regra de uma gota).

ConJur — Qual é o critério usado no Brasil?

Roberta — O critério da aparência. Se usássemos o critério dos Estados Unidos, quem de nós não seria considerado negro? A única raça do nosso país é a brasileira, formada pela constante miscigenação entre brancos, negros e indígenas. Neguinho da Beija-Flor [puxador de samba] fez um teste que demonstrou que quase 70% do seu DNA é europeu. A ginasta Daiane dos Santos também tem mais ascendência européia do que efetivamente africana. Isso desmistifica a idéia de que a ascendência no Brasil pode determinar a raça que a pessoa pertence. Usamos a auto-classificação, que sempre foi induzida. Nos censos, a pessoa tem que escolher entre: branco, preto, mulato, amarelo, indígena. Em 1976, no Programa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD), o entrevistado ficou livre para determinar a cor que pertencia. O resultado foi impressionante: 135 cores diferentes no Brasil entre as quais algumas pérolas como azul-marinho, branca-suja, bronzeada, cabo-verde, café-com-leite, fogoió, galega, jambo, lilás, melada, queimada, rosada, russo, sarará e trigueira. A classificação racial está muito mais voltada a uma questão cultural e social do que genética.

ConJur — O Brasil não adota o princípio da igualdade formal, não é?

Roberta — De fato, não adota. Esse é o princípio de que todos são iguais perante a lei e o Estado não pode fazer nada para tentar minimizar as desigualdades. No Brasil, a situação precária em que se encontra o indivíduo pode perfeitamente justificar uma atuação estatal para minimizar as desigualdades. É o que acontece em relação aos deficientes físicos e idosos. A questão é que antes de se eleger um critério é preciso analisar o contexto histórico, social e econômico do país. Nos Estados Unidos, o critério racial foi o escolhido para a privação de direitos. Não importava se a pessoa fosse rica. Só de ser negra não podia estudar nas mesmas escolas que brancos, não podia freqüentar piscinas públicas, nem praias, parques. Eles tinham hospitais, bairros, religiões próprias.

ConJur — Mas o fato de ser isoladamente negro no Brasil também não é um fator para exclusão de direitos?

Roberta — Definitivamente não. Aqui a exclusão dos direitos é em relação à pobreza. Os que não têm acesso à universidade são as pessoas pobres, que não conseguem pagar boas escolas para ter a qualificação necessária para passar no vestibular. Se analisarmos a história do nosso país, o rei dom João V, em 1731, deu o cargo de procurador-geral da Coroa a um negro. Dizia que ser negro não era impedimento para uma pessoa assumir o cargo. No século XVII, o negro e ex-escravo Henrique Dias foi condecorado com o posto de herói da pátria. Não são poucos os negros que conseguiram ter ascensão social e atingir cargos de prestígio: Machado de Assis, Lima Barreto, José do Patrocínio, Conselheiro Rebouças, Tobias Barreto, dentre tantos outros. Esse fato é totalmente impensável e inimaginável na época de segregação nos Estados Unidos. Isso significa que aqui ser negro, isoladamente, não é fator para não ter acesso a bens e direitos.

ConJur — Quando se pôs fim à era da segregação institucionalizada nos Estados Unidos?

Roberta — Em 1954, na decisão Brown vs. Board of Education a Suprema Corte acabou com a segregação nas escolas, que havia sido confirmada pelo Judiciário desde o célebre caso Plessy vs. Ferguson, 1896, com a política de “iguais, mas separados”. No entanto, tamanha foi a resistência social que a decisão de Brown levou quinze anos para ser implementada. Numa das principais contendas, o governador do Arkansas, Orval Faubus, preferiu fechar uma escola do estado a cumprir a decisão judicial que mandou matricular alunos negros. Foi necessária uma intervenção com tropas federais para que a escola fosse reaberta. O critério de exclusão dos direitos foi efetivamente racial. No Brasil não é assim. Não se pode dizer que os negros, pelo simples fato de serem negros, têm direitos vedados. Existe preconceito e discriminação da sociedade em relação aos negros, mas tais fatores, somente, não legitimam uma política afirmativa.


ConJur — Então, o fato de existir preconceito e discriminação não é suficiente para uma política afirmativa?

Roberta — Só se ficar comprovado que o preconceito e a discriminação operam com tamanha força que é praticamente impossível ultrapassar a barreira para a inserção social, como era nos Estados Unidos. Não foi por acaso que a criação e implementação das ações afirmativas para negros aconteceram nos Estados Unidos. Nas décadas de 60, 70 a situação racial era tão grave no país que alguma coisa tinha de ser feita. As ações afirmativas não surgiram por acaso, mas porque a segregação imposta foi tão grave que o governo se sentiu na obrigação de fazer uma política de integração. O curioso é que os líderes negros nunca foram favoráveis a esse tipo de política.

ConJur — Não?

Roberta — Não. Uma das ironias sobre a criação das ações afirmativas é que estas foram imaginadas e colocadas em prática por alguns brancos que estavam no poder, não por negros. Os principais líderes do movimento negro organizado não se manifestaram favoravelmente à política integracionista. Martin Luther King chegou a se manifestar sobre o tema, advertindo que a adoção de políticas afirmativas seria contraproducente para o movimento negro, porque não conseguiria encontrar justificativas diante de tantos norte-americanos brancos pobres. As ações afirmativas não se originaram da observação de que era preciso desenvolver uma sociedade mais justa, mais democrática ou mais humana. Elas surgiram em um momento social marcado pela iminência de um conflito civil. Não houve uma relevante construção teórica prévia, nem dos negros, nem de brancos, nem de partidos de esquerda, nem de direita, sobre as justificativas do princípio da igualdade, a partir de considerações sobre as modalidades de justiça compensatória ou de justiça distributiva, dentre outras questões jurídico-filosóficas.

ConJur — Qual o papel da miscigenação na questão racial no Brasil e nos Estados Unidos?

Roberta — No Brasil, a miscigenação é uma constante, desde o início da colonização. Os portugueses que vieram colonizar o país chegaram sem família, sem mulheres e não tiveram outra opção a não ser se miscigenar com as negras e as índias. Os portugueses também tinham contato intenso com os negros antes da colonização, já que Portugal esteve durante 800 anos sob domínio mouro, dos povos do norte da África. Com isso, os portugueses desenvolveram adaptabilidade em relação ao convívio com outras raças, uma plasticidade social.

ConJur — E nos Estados Unidos ?

Roberta — Nos EUA, existiam leis que proibiam a mistura de raças e impediam também o casamento inter-racial. Em alguns estados, se houvesse infidelidade com uma branca, a pessoa recebia uma multa. Se fosse com uma negra, o valor era diversas vezes maior.

ConJur — De que maneira as diferenças históricas que separam o Brasil e os Estados Unidos são importantes para o desenvolvimento das relações raciais nos dois países?

Roberta — Nos Estados Unidos, quando houve a abolição, em 1865, 87,5% dos negros eram escravos, apartados do convívio social. Lá, a abolição foi precedida da guerra civil mais violenta que se teve notícia naquela sociedade. O saldo foi de 600 mil mortos. A sociedade não estava acostumada à presença do negro livre e a libertação gerou um ódio racial imenso, com o surgimento de organizações contrárias a eles, como a Ku Klux Klan. A organização adotou como política oficial a expulsão e a morte dos negros. Entre 1915 e 1920, eles contavam com cinco milhões de membros, dentre os quais, o presidente da República, governadores e congressistas em geral.

ConJur — E no Brasil?

Roberta — No Brasil, em 1887, um ano antes da abolição da escravatura, 90% dos negros já eram livres. A maioria já estava integrada na sociedade. A abolição não foi precedida de guerras, mas recebida com aclamação social, decretado feriado nacional por cinco dias e a Princesa Isabel recebeu o título de “A Redentora”.

ConJur — Onde começa o problema dos negros no Brasil, então?

Roberta — Os indicadores sociais são claros ao mostrar que a situação do negro no Brasil é bastante precária e muito pior do que a dos brancos. No entanto, quando o movimento negro faz a sua leitura dos indicadores, conclui que a única explicação possível para esse fato é o racismo. Eu contesto. Um indicador social que diz que os negros estão em situação pior do que os brancos não quer dizer necessariamente racismo. Para mim, a raiz do problema é econômica.

ConJur — A questão racial está ligada à questão social.

Roberta — Intrinsecamente ligada. O negro ganha menos do que o branco porque, sendo mais pobre, não consegue ter a qualificação necessária para conseguir ganhar mais. No Brasil, o negro rico vira branco. E o branco pobre vira negro. Esse fato não pode ser ignorado quando se fala em ações afirmativas.


ConJur — Teríamos mais resultado com um Estatuto da Igualdade Social e não da Igualdade Racial, não é?

Roberta — Sim. Por outro lado, é possível instituir ações afirmativas em que se leve em conta o critério racial. No entanto, a questão econômica deve estar atrelada. Por exemplo, conceder bolsa de estudos em cursinho pré-vestibular para negros que ganham até dois salários mínimos. Essa é uma política afirmativa que leva em conta as peculiaridades históricas. De fato, os negros no Brasil passam por um problema de exclusão. Mas insisto na tese de que essa exclusão não é por conta da cor. 70% dos pobres brasileiros são negros. Por isso, ser negro significa ser pobre. As ações afirmativas têm de contemplar essas duas vertentes.

ConJur — O projeto de criação do Estatuto da Igualdade Racial prevê políticas de saúde pública e educacionais baseados em critério raciais. Faz sentido?

Roberta — Sim. Estudos demonstram que, de fato, as pessoas que têm ascendência negra possuem determinados problemas que outras raças não têm. Em relação à política educacional, a idéia é colocar o negro em uma situação de protagonista. O negro precisa ser colocado em posição de destaque. Eles são muito importantes para a construção da identidade brasileira. Os nossos principais valores são relacionados à cultura negra, como o samba, o futebol, a capoeira.

ConJur — Das 57 universidades federais, 16 adotam o sistema de cotas e 41 não. O fato de 16 já adotarem cotas é um avanço ou o fato de 41 ainda não adotarem é um retrocesso?

Roberta — Acho que o fato de 41 não adotarem o sistema de cotas é uma coisa boa. As cotas geram discriminação reversa. O pior modelo do meu ponto de vista é o da Universidade de Brasília, apesar de eu ser egressa de lá. Além de ter instituído cotas de 20% para negros, sem atrelar à questão econômica, instituíram uma comissão para dizer quem é branco e quem é negro. A pessoa manda a foto e eles analisam. Essa é a maior violação ao princípio da igualdade que pode existir. Um retrocesso. Como é possível que uma terceira pessoa diga a que cultura eu pertenço e com que raça eu me identifico?

ConJur — Não há como estabelecer critérios objetivos para considerar quem é negro e quem não é.

Roberta — No século XIX se acreditava que as raças podiam ser determinadas geneticamente. Mas desde o século XX sabemos que isso não é possível. Se fizerem uma análise de DNA para saber quem é negro vão encontrar mais dúvidas que certezas. Brancos de aparência podem no fundo ser negros e vice-versa. A raça não é uma questão genética. O critério de auto-classificação do Brasil sempre foi louvado mundo afora. No Brasil há muita miscigenação racial com uma convivência harmônica. Uma ação afirmativa baseada na raça pode desestabilizar esse equilíbrio frágil que existe no Brasil. Políticas afirmativas mal planejadas e elaboradas de maneira apressada podem aumentar o racismo, em vez de combatê-lo.

ConJur — Por quê?

Roberta — Veja bem: o estudante é aprovado e ingressa na faculdade por meio das cotas. Depois, não consegue permanecer estudando porque não tem condição econômica. Muitos negros são pobres e precisam de ajuda financeira para continuar estudando. Então, ao invés de cotas, o ideal seria conceder bolsas de estudos para eles continuarem estudando.

ConJur — Você é loira. Já foi acusada de racista por conta das suas posições?

Roberta — Quando digo que sou a favor de ações afirmativas baseadas também no critério econômico, não agrado os principais líderes do movimento negro. Por quê? Porque a maioria é de classe média e não seria atingida pela minha proposta. A grande massa dos negros, que é pobre e não tem acesso à informação, está alheia ao debate. Quando defendi a minha tese de mestrado na UnB, parecia que eu era a pessoa mais racista do mundo. Meu carro foi pichado com os dizeres: “o mérito é burrice e você é a maior prova disso”. Isso porque fui aprovada para o mestrado por mérito, por meio de concurso público. O movimento mais radical me vê como racista, infelizmente.

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