Constrangimento ilegal

Prisão deve ser aplicada só depois de formada culpa

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26 de julho de 2007, 17h05

Com atenção aos princípios da isonomia e da não-culpabilidade, o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, concedeu Habeas Corpus para mais quatro pessoas acusadas de integrar esquema de venda de sentenças em favor da exploração ilegal de bingo e de máquinas caça-níqueis desmontado pela Operação Hurricane da Polícia Federal no dia 13 de abril.

O Habeas Corpus pedia a extensão da medida concedida ao banqueiro do jogo do bicho, Antonio Petrus Kalil, conhecido como Turcão, para responder em liberdade. A decisão alcança Carlos Pereira da Silva, delegado da Polícia Federal de Niterói; Francisco Martins da Silva, agente administrativo da Polícia Federal de Niterói; Susie Pinheiro Dias Mattos, delegada da Polícia Federal de Niterói e Marcos Antonio dos Santos Bretas, policial civil.

Eles respondem a processo em curso na 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro acusados de formação de quadrilha e corrupção. De acordo com o pedido, o decreto de prisão preventiva expedido em 20 de abril de 2007 pela primeira instância da Justiça Federal alcançara a todos os denunciados, não se restringindo àqueles contra os quais a peça acusatória teria sido recebida.

O inquérito criminal, que tem parte tramitando no Supremo Tribunal Federal por envolvimento de pessoas com foro privilegiado – como o ministro do Superior Tribunal de Jusitça, Paulo Medina – foi desmembrado e remetido para a 6ª Vara Federal do Rio de Janeiro, para que os investigados que não têm cargos com prerrogativas respondam ao processo na primeira instância da Justiça Federal.

Em sua decisão o ministro Marco Aurélio ressalta que ante o desmembramento, a prisão temporária dos que permaneceram no inquérito em andamento no Supremo foi relaxada, enquanto a daqueles que passaram a ter procedimento em curso na 6ª Vara Federal do Rio de Janeiro veio a ser transformada em preventiva.

“Presente o princípio isonômico, o quadro é gerador de perplexidade, pouco importando haver, em relação a estes, ação penal já formalizada. O fato, por si só, não respalda o ato de constrangimento extremo que é a prisão preventiva. Os acusados, com denúncia recebida, é certo, de integrar quadrilha e de cometer o crime de corrupção ativa estão submetidos, de forma precária e efêmera, sem culpa formada, à custódia do Estado. Aqueles envolvidos nos mesmos crimes, sendo o de corrupção na forma passiva, encontram-se em liberdade presente ato do Supremo”, afirma.

Ainda de acordo com o ministro, a primeira instância não considerou o princípio constitucional da não-culpabilidade fundamentando a prisão preventiva em “veementes indícios de participação nos graves crimes narrados” o que permitiria afirmar que “os acusados, além de terem a personalidade voltada para a prática de crimes, pautam sua atuação na crença de impunidade em relação aos seus atos”.

“Graves ou não os crimes, o enquadramento realizado antes da prova, antes da culpa formada, não é conducente à prisão preventiva”, argumenta o ministro, ressaltando a necessidade de apurar para impor pena ainda não formalizada.

“Atuem os segmentos da Administração Pública. Acionem os dispositivos legais visando a impedir que crimes sejam cometidos. Mas observem que, ainda em curso ação penal, descabe potencializar as imputações verificadas e, em meio a envolvimento de vulto, de diversos setores, cercear-se a liberdade de ir e vir”, conclui.

Leia a íntegra da decisão

HABEAS CORPUS 91.723-2 RIO DE JANEIRO

RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

PACIENTE(S): ANTONIO PETRUS KALIL

IMPETRANTE(S): CONCITA AYRES CERNICCHIARO E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Petição/STF nº 113.233/2007

DECISÃO

LIMINAR – EXTENSÃO – RECONSIDERAÇÃO – AMPLITUDE.

1.Eis as informações prestadas pelo Gabinete:

O impetrante, por meio da petição protocolada sob o nº 113.233, requer a reconsideração da decisão que indeferiu o pedido de extensão, em favor dos pacientes Carlos Pereira da Silva e Francisco Martins da Silva, da medida acauteladora concedida a Antonio Petrus Kalil. Afirma que a pretensão tem amparo na legislação processual penal, porquanto os pacientes se encontram presos preventivamente em virtude do mesmo título judicial que envolve o co-réu paradigma.

Esclarece, na seqüência, que a denúncia oferecida contra eles pelo Ministério Público não foi recebida em 20 de abril de 2007, por serem servidores públicos, aos quais, por expressa disposição do artigo 514 do Código de Processo Penal, é assegurado o direito à apresentação de defesa preliminar. Sustenta, no entanto, que o decreto de prisão preventiva expedido em 20 de abril de 2007 alcançara a todos os denunciados, não se restringindo àqueles contra os quais a peça acusatória teria sido recebida. Alega que a incompreensão dos limites da ordem de prisão processual decorreu “da atecnia cometida pela prolatora do decreto prisional”, que, a um só tempo, se referiu a todos os “denunciados” e “acusados”, não fazendo distinção entre os indiciados e aqueles contra os quais foi instaurada a ação penal.


A fim de comprovar estarem os acusados Carlos Pereira da Silva e Francisco Martins da Silva submetidos à custódia preventiva com base no mesmo decreto expedido contra Antonio Petrus Kalil, acompanha a petição certidão da Secretaria da Sexta Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro.

2. Mais uma vez, confirma-se a máxima constitucional segundo a qual os profissionais da advocacia são indispensáveis à feitura da almejada justiça – artigo 133 da Carta Federal. Procede o que articulado pelo impetrante, Dr. Felipe Vieira Turíbio. O título referente à prisão preventiva possui abrangência maior. A proficiente Juíza Dra. Ana Paula Vieira de Carvalho, no intróito da peça, consignou o recebimento da denúncia em relação a acusados já beneficiados pelo relaxamento da prisão. Em passo seguinte, presente o artigo 514 do Código de Processo Penal – “Nos crimes afiançáveis, estando a denúncia ou queixa em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do acusado, para responder por escrito dentro do prazo de quinze dias” –, determinou a notificação de Susie Pinheiro Dias Mattos, Carlos Pereira da Silva, Francisco Martins da Silva e Marcos Antonio dos Santos Bretas. Assentou então: “Passo a apreciar o pleito de decretação de prisão preventiva dos acusados”. Este último vocábulo implicou não só o envolvimento dos denunciados como também daqueles que foram nomeados visando à observação do estabelecido no artigo 514 do Código de Processo Penal. A resistência até aqui notada à extensão pretendida decorreu do fato de, na parte dispositiva do ato, haver-se feito alusão não ao gênero acusados mas sim à espécie denunciados: “Em razão de todo o exposto, defiro o requerimento formulado pelo MPF e decreto a prisão preventiva dos denunciados, para garantir a ordem pública e a aplicação da lei penal, nos termos do art. 312 do CPP”. Confiram com a peça de folha 2828 a 2848.

Em síntese, o decreto de prisão alcançou não só os denunciados propriamente ditos como também os acusados Susie Pinheiro Dias Mattos, Carlos Pereira da Silva, Francisco Martins da Silva e Marcos Antonio dos Santos Bretas. Já agora ante a compreensão do emprego dos vocábulos denunciados e acusados, há de se levar em conta, como ocorreu com os demais envolvidos, o disposto no artigo 580 do Código de Processo Penal. Eis as razões consignadas no ato mediante o qual foi concedida, com extensão limitada, a medida acauteladora:

Observem a necessária compatibilização do Verbete nº 691 da Súmula do Supremo com a Constituição Federal, evitando-se a tomada a ponto de, configurado ato ilícito e existindo órgão capaz de apreciá-lo, vir-se simplesmente a dizer da incompetência deste último. Aliás, ante pronunciamentos do Tribunal flexibilizando o citado Verbete, urge a revisão. Reitero o que tenho consignado sobre a referida compatibilização:

O habeas corpus, de envergadura constitucional, não sofre qualquer peia. Desafia-o quadro a revelar constrangimento ilegal à liberdade de ir e vir do cidadão. Na pirâmide das normas jurídicas, situa-se a Carta Federal e assim há de ser observada. Conforme tenho proclamado, o Verbete nº 691 da Súmula desta Corte não pode ser levado às últimas conseqüências. Nele está contemplada implicitamente a possibilidade, em situação excepcional, de se admitir a impetração contra ato que haja resultado no indeferimento de medida acauteladora em idêntica medida – Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 84.014-1/MG, por mim relatado na Primeira Turma e cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 25 de junho de 2004. É esse o enfoque que torna o citado verbete compatível com o Diploma Maior, não cabendo extremar o que nele se contém, a ponto de se obstaculizar o próprio acesso ao Judiciário, a órgão que se mostre, dados os patamares do Judiciário, em situação superior e passível de ser alcançado na seqüência da prática de atos judiciais para a preservação de certo direito.

Neste caso, há excepcionalidade a reclamar, enquanto vivo o paciente, medida acauteladora. Responde ele, é certo, juntamente com outros réus, a processo em curso na Sexta Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro considerados os crimes dos artigos 288 e 333 do Código Penal – quadrilha e corrupção. Em síntese, a denúncia formalizada – que se encontra no apenso – remete a organização criminosa “voltada à exploração ilegal das atividades de bingos e máquinas caça-níqueis no Estado do Rio de Janeiro, praticando, para tanto, diversos crimes autônomos contra a Administração Pública de forma estável, permanente e reiterada” (folha 7).

A ação penal em tramitação na Sexta Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro resultou do desmembramento, neste Tribunal, de procedimento ainda embrionário, do Inquérito nº 2.424-4/RJ, da relatoria do ministro Cezar Peluso, no qual Sua Excelência decretou a prisão temporária dos envolvidos.


Pois bem, o que ocorreu ante o citado desmembramento? A prisão temporária dos que permaneceram no inquérito em andamento no Supremo foi relaxada, enquanto a daqueles que passaram a ter procedimento em curso no Juízo referido veio a ser transformada em preventiva. Presente o princípio isonômico, o quadro é gerador de perplexidade, pouco importando haver, em relação a estes, ação penal já formalizada. O fato, por si só, não respalda o ato de constrangimento extremo que é a prisão preventiva. Os acusados, com denúncia recebida, é certo, de integrar quadrilha e de cometer o crime de corrupção ativa estão submetidos, de forma precária e efêmera, sem culpa formada, à custódia do Estado. Aqueles envolvidos nos mesmos crimes, sendo o de corrupção na forma passiva, encontram-se em liberdade presente ato do Supremo.

Indaga-se, então: não tivesse havido o desmembramento, qual seria a situação jurídica de todos os envolvidos nos lamentáveis acontecimentos? A presunção do ordinário e não do excepcional, do extravagante, bem sinaliza a ocorrência do afastamento linear, puro e simples, da prisão temporária.

Há mais. As premissas constantes do ato do Juízo não guardam sintonia com o disposto no artigo 312 do Código de Processo Penal, no que o preceito nele inserido deve ser tomado como a consubstanciar exceção, isso considerado o princípio constitucional da não-culpabilidade.

Analisem o que nele consignado. Em primeiro lugar, fez-se histórico a revelar práticas criminosas. A seguir, asseverou-se a gravidade dos crimes narrados (folha 89 do apenso):

Os veementes indícios de participação nos graves crimes narrados, bem assim a mecânica dos acontecimentos permitem afirmar que, ao que tudo indica, os acusados, além de terem a personalidade voltada para a prática de crimes, pautam sua atuação na crença de impunidade em relação aos seus atos.

Adiante se discorreu novamente sobre “os graves crimes noticiados”. Essa fundamentação parte de óptica que diz respeito às imputações em si. Graves ou não os crimes, o enquadramento realizado antes da prova, antes da culpa formada, não é conducente à prisão preventiva.

Quanto a entender-se os envolvidos como detentores de personalidade voltada para a prática de crimes, a ordem natural das coisas mostra-se como obstáculo à preventiva. A própria prisão decretada afasta a possibilidade de eles terem contra si condenações passíveis de serem acionadas visando ao cumprimento da pena, sendo que a existência de inquéritos e processos em curso não respalda a conclusão a que se chegou, sob pena de presumir-se a culpa.

Apontou-se como mais razoável presumir que, soltos, os acusados poderão voltar a delinqüir. Eis o trecho da decisão (folhas 89 e 90 do apenso):

Deveras, os graves crimes noticiados, por tudo o que foi apurado até o momento, eram praticados de forma repetida pelos acusados durante razoável espaço de tempo – a investigação em torno do grupo durou pelo menos um ano e meio e há fortes indícios de que o esquema vem de muito antes. Logo, é mais do que razoável afirmar que os mesmos, caso soltos, virão a reiterar a prática criminosa.

Esta suposição é ainda mais robustecida quando se vê que os denunciados, mesmo após o fechamento das casas de bingo, procuravam burlar decisões judiciais através da utilização de federações desportivas e empresas fictícias, que conseguiriam, novamente mediante liminares, fazer voltar a funcionar maquinário pertencente a casas de bingo fechadas pelo próprio judiciário.

Reiterados são os pronunciamentos desta Corte no sentido de se exigirem, para a configuração da periculosidade, dados robustos. A tanto não equivale, no campo de que trata a espécie – de jogos ilícitos –, a afirmação de vir-se atuando há muito tempo. O problema deságua em conclusão sobre a deficiência do poder de polícia, valendo notar que, ante a operação realizada, ante a persecução criminal, estarão os acusados sob o crivo do Judiciário e, aí sim, caso cheguem a intentar práticas condenáveis, existirá base para a custódia excepcional. O que se distancia da ordem jurídica é considerar-se o que teria acontecido até aqui, o que, se de fato procedente, apenas evidencia a falha do aparelho estatal.

Também não vinga o que consignado sob o ângulo da preservação da ordem pública. Parte-se de pressuposto discrepante do que normalmente ocorre – de que, mesmo diante da operação verificada, do processo criminal em curso, os acusados persistirão nas práticas tidas pelo Ministério Público e sob o ângulo do recebimento da denúncia, como configuradoras dos crimes. O que asseverado quanto à difusão no seio da sociedade, ao grau sofisticado de organização, à infiltração nos órgãos públicos e ao uso deturpado de funções atribuídas a servidores públicos, não é requisito para chegar-se ao acionamento do artigo 312 do Código de Processo Penal. Frente a quadra vivida, impõe-se, sim, a adoção do rigor referido no ato da cuidadosa magistrada que decretou a prisão preventiva – a Dra. Ana Paula Vieira de Carvalho -, mas tal procedimento há de fazer-se com observação irrestrita à necessidade de apurar-se para, só depois de formada a culpa, punir-se, e não caminhar-se como que para a imposição precoce de pena ainda não formalizada.


O sentimento de impunidade mencionado não é passível de afastamento com a inversão de valores, e isso ocorre quando, não sendo de excepcionalidade maior a situação, a enquadrá-la no regramento próprio – artigo 312 do Código de Processo Penal –, mitiga-se o princípio constitucional da não-culpabilidade. O mesmo deve ser dito considerada a referência à “total promiscuidade por que passam as instituições do nosso país, cuja credibilidade já se encontra fortemente abalada” (folha 91 do apenso). Avança-se no aprimoramento da vida em sociedade respeitando-se o arcabouço normativo regedor da espécie.

Compreendam a responsabilidade de todos que atuam em nome do Estado. Mais, tenham presente que o deterioramento da vida pública não serve, em verdadeira profissão de fé, à busca de imediato enquadramento jurídico penal, em antecipação à indispensável formação da culpa.

Não subsiste o que asseverado em termos de inserção dos acusados nos diversos segmentos da Administração Pública, no que teriam praticado atos em verdadeira corrupção de servidores. Eis o trecho da decisão proferida (folha 91 do apenso):

Veja-se que não se está a falar da gravidade dos crimes em tese. Está-se a analisar a gravidade em concreto dos crimes supostamente praticados, que envolvem corrupção nos mais altos escalões do Judiciário e, segundo o que venha a ser apurado em investigações ulteriores, talvez também do legislativo federal e estadual.

Atuem os segmentos da Administração Pública. Acionem os dispositivos legais visando a impedir que crimes sejam cometidos. Mas observem que, ainda em curso ação penal, descabe potencializar as imputações verificadas e, em meio a envolvimento de vulto, de diversos setores, cercear-se a liberdade de ir e vir. O afã de punir sofre os temperamentos próprios ao devido processo legal, sob pena de grassar para todos, e o chicote muda de mãos, a insegurança na vida gregária, abrindo-se margem, com o desprezo a balizas legais imperativas, ao surgimento de verdadeira época de terror. Em um Estado Democrático, em um Estado de Direito, hão de ser respeitados princípios, hão de ser observadas balizas. Eis o preço que se paga – e é módico, estando ao alcance de todos – por nele se viver.

3.Defiro o pleito de reconsideração, para estender a liminar não só aos beneficiários do requerimento Carlos Pereira da Silva e Francisco Martins da Silva como também a Susie Pinheiro Dias Mattos e Marcos Antonio dos Santos Bretas. Faço-o impondo, no cumprimento dos alvarás de soltura, as cautelas próprias, isto é, caso não estejam eles sob a custódia do Estado por motivo diverso do retratado no pronunciamento da Juíza Ana Paula Vieira de Carvalho, de 20 de abril de 2007, no Processo 2007.51.01.802985.5, da 6ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, objeto do exame acima.

4.Imprimam urgência no implemento deste ato.

5.Publiquem.

Brasília, 24 de julho de 2007.

Ministro MARCO AURÉLIO

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