Volta ao batente

Empresa devedora de ICMS não pode ser proibida de funcionar

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22 de julho de 2007, 0h00

Impedir que empresa se mantenha cadastrada como contribuinte por estar inadimplente é medida inconstitucional, por ofender os direitos da livre iniciativa e o exercício de atividade econômica das sociedades. Com esse entendimento, a juíza Flávia Poyares Miranda, da 3ª Vara Cível de São Bernardo do Campo garantiu para uma distribuidora de combustíveis que não perca a inscrição no cadastro de contribuintes de ICMS do estado de São Paulo, apesar da inadimplência.

A distribuidora, representada pelo advogado Carlos Roberto Turaça, do escritório Oliveira e Silva Júnior Advogados Associados, contestou a Portaria CAT 58, da Secretaria da Fazenda, de São Paulo. A regra proíbe que a empresa com débitos de responsabilidade da União, estado ou município, renove sua inscrição no cadastro de contribuintes. Com isso, a distribuidora corria o risco de ter as portas fechadas e estaria impedida de funcionar legalmente.

Outra imposição da portaria é a necessidade de os sócios das empresas (pessoas físicas) comprovarem regularidade da situação fiscal, também sob o risco da empresa ter a eficácia de sua inscrição no Cadastro de Contribuintes do ICMS cassada.

A defesa da distribuidora sustentou a inconstitucionalidade das imposições contidas na portaria porque impediram o exercício de direito de ampla defesa. Turaça ainda classificou como coação as imposições da Portaria CAT 58, porque gerou uma forma indireta de cobrança de créditos tributários por parte do Fisco Estadual, numa tentativa de eliminar etapas legais, como o Processo Administrativo Fiscal.

A juíza acolheu o argumento. Ela citou decisão do juiz Bonejos Demchuk, da 2ª Vara Cível de Curitiba, que em novembro de 2004 já sentenciava: “É pacífica a jurisprudência no sentido de que não se deve admitir a suspensão de inscrição de funcionamento de estabelecimento com fins de cobrança de tributo. O Poder Público deve utilizar o meio legal adequado”.

“Exigir a inexistência de tributo inscrito na dívida ativa da União, estados ou municípios em valor total superior ao seu capital social para viabilizar a inscrição cadastral é medida inconstitucional, por ofender os direitos da livre iniciativa e o exercício de atividade econômica das sociedades”, concluiu.

Processo 564.01.2006.047013-7

Leia a decisão

VISTOS. BOAINAIN INDÚSTRIA E COMÉRCIO LTDA., qualificada nos autos, impetrou o presente Mandado de Segurança preventivo com pedido de medida liminar contra ato do Senhor Delegado da Delegacia Regional Tributária de São Bernardo do Campo – SP – DRT-12 ABCD. Pretende obter a concessão da liminar com o fim de impedir a cassação da inscrição estadual da contribuinte impetrante e ao final pede a concessão da segurança para fim de declarar ilegais as exigências contidas na Portaria CAT nº 58 de 21/08/2006. Entende que o indeferimento da inscrição estadual na hipótese de existir débito configuraria uma coação para cobrança indireta do tributo.

A inicial veio acompanhada de documentos (fls.02/68). O pedido de medida liminar foi deferido a fls. 70. Informações as fls. 76/103, argüindo preliminares de nulidade da notificação, falta de interesse de agir, inexistência de ato coator, inexistência de direito líqüido e certo, impetração de mandado de segurança contra lei em tese. No mérito, refuta a tese inicial argumentando que não haveria cassação automática da inscrição cadastral, invocando a possibilidade de fiscalização pela Administração, pedindo a denegação da segurança.

Adveio parecer do nobre representante do Ministério Público (folhas 105/106) que concluiu pela desnecessidade de atuação no feito. A Fazenda Pública do Estado de São Paulo ingressou como assistente, oferecendo manifestação de fls. 112/135. Foram argüidas preliminares de falta de interesse de agir, inexistência de prova pré-constituída comprobatória do justo receio de violação a direito líqüido e certo, inexistência de ato coator, impetração de mandado de segurança contra lei em tese, inexistência de ilegalidade ou inconstitucionalidade. No mérito aduziu que os contribuintes devem ser submetidos ao poder fiscalizatório do Estado, condicionando a liberdade do exercício da profissão. Argumenta que a impetrante deveria aguardar o desfecho do procedimento administrativo para então impetrar o mandado de segurança, caso o resultado lhe fosse desfavorável.

É o relatório.

FUNDAMENTO e DECIDO.

As preliminares argüidas não merecem acolhimento. Entendo não haver nulidade na notificação da autoridade coatora, que ofereceu informações e exerceu o contraditório. A Fazenda Estadual ingressou no feito na qualidade de assistente, oferecendo manifestação. Como bem esclarece Alexandre de Moraes: “Por ampla defesa, entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois todo ato produzido pela acusação, caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.”


Trata-se de mandado de segurança preventivo, impetrado contra ato concreto de aplicação da Portaria CAT 58/06 quando do procedimento para renovação cadastral da impetrante. De acordo com as exigências ali veiculadas, em especial no artigo 3º., seria indeferido o requerimento na hipótese de existir débito inscrito na dívida ativa da União, Estados e Municípios, superior ao valor do capital social (fls.63).

No artigo 4º. da mesma Portaria, o contribuinte deveria solicitar a renovação da inscrição até o dia 31 de outubro de 2006. Assim sendo, presentes as condições da ação a justificar a impetração. Argumenta a autoridade impetrada que inexiste prova documental pré-constituída nos autos, sendo insubsistente o direito líqüido e certo a ser amparado na via mandamental.

Todavia, a impetrante demonstrou que deveria obter a renovação de sua inscrição cadastral, encontrando exigências contidas na Portaria CAT 58/06 que implicariam em restrição indevida a sua atividade profissional. Ora, diante das exigências previstas na Portaria CAT 58/06 a impetrante decidiu impetrar o presente mandado de segurança, uma vez que não está obrigada a esgotar a via adminstrativa.

Não se trata, por outro lado, de impetração de mandado de segurança contra lei em tese. A impetrante estava na iminência de ver cancelada a sua inscrição cadastral, com aplicação concreta da Portaria CAT 58/06. Aplicável o seguinte julgado: “MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO – SUJEIÇÃO A FUTURO ATO JURÍDICO DE EFEITO CONCRETO – HIPÓTESE DE IMPETRAÇÃO CONTRA LEI EM TESE NÃO-VERIFICADA – INDEFERIMENTO DA INICIAL – APELO PROVIDO – Dá-se provimento ao apelo aviado contra o indeferimento de petição inicial, formulada em sede de segurança preventiva, para que se processe regularmente o feito em primeira instância, onde deverá ser julgado o mérito da impetração e, inclusive, o pedido de concessão de medida liminar, se verificado que o reclamo dessa natureza, ocorreu contra ato futuro e de efeito concreto, dito inconstitucional, a despeito de violar os princípios fundamentais da recorrente, assim, consubstanciadas as hipóteses de não-admissibilidade dos recursos administrativos ou de declaração da respectiva deserção, se não forem apresentados, desde logo, mediante o comprovante de recolhimento do valor da multa cominada à impetrante apelante. (TJMS – AC 2002.011059-0/0000-00 – Campo Grande – 4ª T.Cív. – Rel. Des. Elpídio Helvécio Chaves Martins – J. 16.12.2003)”.

Quanto às preliminares de inexistência de ato coator, inexistência de ilegalidade ou inconstitucionalidade, inexistência de direito líqüido e certo, as mesmas se confundem com o mérito e com ele serão analisadas. No mérito, reconheço a existência de direito líqüido e certo da impetrante, provado documentalmente de plano. Realmente, de acordo com a referida Portaria, no caso de existência de débito inscrito na dívida ativa seria indeferida a inscrição cadastral, ao arrepio do disposto nas Súmulas 70, 323 e 547 do Colendo Supremo Tribunal Federal Aplicáveis os seguintes julgados:

“REEXAME NECESSÁRIO – MANDADO DE SEGURANÇA – Pedido de inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS negado sob a alegação da existência de débitos junto a Fazenda Estadual – Sócio da empresa com dívida ativa registrada no estado relativa a outra empresa do qual também era sócio – Impossibilidade – Ato abusivo e ilegal – Cerceamento ao direito da livre atividade econômica – Inteligência do artigo 170, § único da Carta Política – Precedentes jurisprudenciais – Sentença mantida em grau de reexame. (TJPR – ReNec 0161553-0 – (24270) – Curitiba – 2ª C.Cív. – Rel. Des. Bonejos Demchuk – DJPR 08.11.2004)”. “AGRAVO INTERNO – DECISÃO MONOCRÁTICA – ART. 557, §1º DO CPC – ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL DOMINANTE – NÃO PAGAMENTO DE IMPOSTO – SUSPENSÃO DE INSCRIÇÃO ESTADUAL – MEIO COERCITIVO INDIRETO – ILEGALIDADE – Recurso improvido.

1. O ora agravante interpôs recurso de agravo de instrumento objetivando a reforma da decisão que, nos autos da ação mandamental impetrada pela ora agravada, determinou que a indigitada autoridade coatora reativasse a inscrição estadual desta nos cadastros da secretaria da fazenda. Em decisão monocrática, negou-se provimento ao referido recurso, em virtude de entendimento jurisprudencial dominante deste egrégio tribunal, no sentido de ser vedada a suspensão da inscrição estadual de contribuinte como meio coercitivo para pagamento de tributo.

2. Conforme já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, afronta a Carta Magna a imposição, pelo poder público, de restrições, ainda que fundadas em Lei, destinadas a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo e que culminam, quase sempre, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção utilizada pelo estado, por inviabilizar o exercício, pela empresa devedora, de atividade econômica lícita. 3. Recurso improvido. (TJES – AGInt-AI 011049000521 – 2ª C.Cív. – Rel. Des. Álvaro Manoel Rosindo Bourguignon – J. 12.09.2006)”. ‘AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO – SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO – INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF)


É pacífica a jurisprudência no sentido de que não se deve admitir a suspensão de inscrição de funcionamento de estabelecimento com fins de cobrança de tributo. O Poder Público deve utilizar o meio legal adequado. Firma-se o entendimento esposado nas Súmulas 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal que não modificou o seu entendimento. (TJES – AgRg-AI 011059000841 – 3ª C.Cív. – Rel. Des. Ronaldo Gonçalves De Sousa – J. 29.11.2005)” REMESSA EX OFFICIO – 1) PAGAMENTO DE TRIBUTO – MEIO COERCITIVO – SUSPENSÃO DE INSCRIÇÃO ESTADUAL – VEDAÇÃO – OFENSA AO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 170, DA CF/88 – 2) RECUSA AO RESTABELECIMENTO DA INSCRIÇÃO ESTADUAL – ATO ADMINISTRATIVO ILEGAL – OFENSA A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS – ENTENDIMENTO – VIOLAÇÃO Á LEGALIDADE – INOCORRÊNCIA – APELO VOLUNTÁRIO IMPROVIDO – REMESSA PREJUDICADA

1) mostra-se inadmissível a utilização pelo Fisco de meios coercitivos tendentes a forçar o contribuinte ao pagamento de tributo, a exemplo da retenção desmedida de mercadorias (vedada pelo enunciado da Súmula nº 323, do STF) ou, como sói acontecer, a suspensão de sua inscrição estadual, o que, em última análise, ofende o disposto no parágrafo único do artigo 170, da Constituição Federal de 1988.

2) o ato administrativo consubstanciado na recusa ao restabelecimento da inscrição estadual da impetrante, embora focado nos arts. 43, da Lei nº 7.000/2001 e 51, I, do Decreto nº 1.090-r/2002, afigura-se ilegal, uma vez ofender a Carta Magna não só no dispositivo acima transcrito – Tradutor de princípio geral da atividade econômica -, como também nas garantias individuais do due process of law (art. 5º, inciso LIV) e dos consectários da ampla defesa e do contraditório (idem, inciso LV), assim não se configurando como meio de resguardo da coisa pública – Como falivelmente se poderia sustentar -, senão como meio arbitrário de coerção ao pagamento do tributo respectivo. Apelo voluntário improvido. Remessa prejudicada. (TJES – REO 024040012429 – 3ª C.Cív. – Rel. Des. Adalto Dias Tristão – J. 22.11.2005)”. Grifos meus.

Ora, todas as sociedades que pretendem iniciar atividades econômicas no Estado de São Paulo, cujas operações ou serviços sujeitar-se-ão à incidência do ICMS, deverão requerer previamente a sua inscrição no Cadastro de Contribuintes. É o caso da impetrante.

Exigir a inexistência de tributo inscrito na dívida ativa da União, Estados ou Municípios em valor total superior ao seu capital social para viabilizar a inscrição cadastral é medida inconstitucional, por ofender os direitos da livre iniciativa e o exercício de atividade econômica das sociedades, que pretendem inscrever-se no Cadastro de Contribuintes do Estado de São Paulo para iniciarem ou continuarem suas operações, esses previstos nos arts. 5º, inciso XIII e 170, caput c/c parágrafo único da Constituição Federal de 1988.

Ante o exposto, CONCEDO a segurança pleiteada, e o faço para declarar a ilegalidade da exigência de inexistência de tributo inscrito na dívida ativa da União, Estados ou Municípios em valor total superior ao seu capital social para obtenção da inscrição cadastral prevista no artigo 3º. § 1º. item 9 da Portaria CAT nº 58 de 21/08/2006, tornando definitiva a liminar concedida a fls.70, expedindo-se o necessário e arquivando-se os autos após o trânsito em julgado.

Sem ônus sucumbenciais (Súmula 105 do STJ). Sentença sujeita ao reexame necessário. P. R. I. São Bernardo do Campo, 19 de junho de 2007.

FLÁVIA POYARES MIRANDA

Juíza Substituta

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