Overbooking questionado

Anac tem de fiscalizar ostensivamente todos os aeroportos

Autor

  • Marco Fábio Morsello

    é juiz de Direito em São Paulo. Professor e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Autor da obra “Responsabilidade civil no transporte aéreo” Ed. Atlas 2006.

20 de julho de 2007, 0h00

Diante da recente notícia de iniciativa de regulamentação do instituto do overbooking, por parte da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), cumpre tecer algumas considerações, à luz da experiência da União Européia e Estados Unidos da América, atrelada ao princípio de proteção ao usuário do transporte.

O overbooking consiste em aceitação, pelo transportador, de reservas para determinado vôo em quantidade superior à capacidade da aeronave. Desse modo, refere-se à promessa por parte do transportador de efetuar sua prestação em um momento determinado, junto a um número de usuários manifestamente superior aos meios colocados à disposição.

Sua ocorrência tem gênese na análise de inúmeras variáveis, com especial destaque à rota fixada, à época do vôo, com as correlatas repercussões vinculadas à alta e baixa estação, que propiciam exame de probabilidade quanto à falta de apresentação no balcão da companhia para fins de embarque no dia e hora determinados. Fenômeno conhecido no jargão da aviação de no-show, considerado pelas transportadoras a causa do problema.

Levando em conta todo esse contexto, aliado ao mercado competitivo, as transportadoras generalizaram a prática alegando risco de vôos com grande número de assentos vazios, que seria a ruína econômica. No entanto, como é evidente no âmbito da teoria do risco do empreendimento, não se justificaria a negativa de embarque a passageiro com reserva confirmada, com fundamento em conduta de terceiros que não tenham qualquer vínculo com referido passageiro.

Observa-se, o efetivo desvirtuamento da figura do overbooking, dando-se prioridade aos passageiros com “tarifa cheia”, o que fragiliza a pretendida eximente escudada em no-show, além de vulnerar a boa-fé objetiva como regra de conduta.

Outra causa ensejadora da referida ocorrência, cada vez mais freqüente, coaduna-se com falhas nos sistemas eletrônicos ou de outra natureza, programados para a reserva e confirmação de lugares, que caracteriza, sob nossa ótica, força maior intrínseca inescusável perante o consumidor. Sobreleva acrescentar, por oportuno, que não está regulamentado pela Convenção de Montreal e Sistema de Varsóvia, no transporte aéreo internacional, nem tampouco, no bojo do Código Brasileiro de Aeronáutica, na seara do transporte aéreo doméstico.

De fato, trata-se de inexecução de contrato, o que torna desnecessária a análise de eventual antinomia dos mencionados diplomas com o sistema consumerista, já que haveria aplicação imediata do Direito comum, sem prévio patamar-limite indenizável.

Conclui-se, portanto, que, uma vez verificado o comparecimento tempestivo do usuário do transporte aéreo, com a reserva ou bilhete confirmado, impõe-se ao transportador o implemento de sua obrigação contratual, não se afigurando justificável a denegação de embarque do passageiro pontual, com suposto fundamento em no-show de outrem.

Desse modo, a iniciativa da Anac visando sua regulamentação, pautando-se nos exemplos dos Estados Unidos da América (Oversales Act, part. 250) e União Européia (Regulamento CE 261/2004), deverá contemplar algumas prerrogativas expressas como núcleo protetivo indisponível, sob pena de vulneração do sistema consumerista, a saber:

No caso de preterição de passageiro, na seara do overbooking involuntário, nos moldes do Regulamento (CE) 261/2004, da União Européia, os créditos compensatórios deverão caracterizar mero piso mínimo, constando ressalva expressa, independentemente de aceitação, no que se refere à viabilidade de pleitos ressarcitórios em montante superior, por meio de ação autônoma, caso comprovado o dano correlato. Entendimento em contrário, permitiria acomodação do fornecedor, com institucionalização legal indevida do instituto.

A negociação efetuada no balcão apresentou diversas problemáticas no âmbito prático em países que regulamentaram o instituto, de modo que, a par da necessidade de menção expressa de opção exclusiva do passageiro quanto à eventual substituição por outro bilhete aéreo ou upgrade, nas hipóteses de pagamento, este deverá ser operacionalizado por meio de transferência eletrônica imediata, como preconizado pela Carta dei diritti del passeggero, em vigor na Itália, e que elucidou de forma prática alguns pontos obscuros do Regulamento 261/2004.

A Anac deverá fiscalizar ostensivamente em todos os aeroportos, de forma ininterrupta, a inexistência de abusos, tais como, a utilização de slots para agrupamento de vôos, com manutenção fictícia do mesmo número original, bem como tentativas de transformação do overbooking em mero atraso ou cancelamento fictício de vôos.

Nesse contexto, sobreleva acrescentar a rica experiência dos Estados Unidos da América, impondo divulgação de listagens com freqüência semanal de todos os sistemas computadorizados de reservas.

A sanção pecuniária proposta na hipótese de infração às condições elencadas em minuta de Resolução se afigura ínfima, não adimplindo princípio basilar da responsabilidade civil moderna, ou seja, a prevenção e o valor-desestímulo correlato, molas propulsoras do aperfeiçoamento dos serviços prestados pelo fornecedor robustecendo o princípio de proteção ao consumidor.

Autores

  • é juiz de Direito em São Paulo. Professor e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Autor da obra “Responsabilidade civil no transporte aéreo”, Ed. Atlas, 2006.

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