Crise das instituições

Sociedade busca solução própria para segurança pública

Autor

  • Rodrigo Camargo Barbosa

    é advogado coordenador do Núcleo de Administrativo-Cível do Cezar Britto Advogados Associados graduado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pós-graduando em Direito Sindical no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb).

12 de julho de 2007, 17h24

Panorama da conjuntura histórico-política do Estado e o contexto do caos social

A natureza dos problemas da segurança pública no país está no trespasse entre a questão da política criminal, sociedade civil e Direito Penal (dogmática jurídico-penal).

A conjuntura política em sede criminal, nitidamente, envolve nuances em que se evidencia e predomina o crescente envolvimento da sociedade com a causação (natureza) e prescrutação (prevenção e repressão) das infrações penais lato sensu.

Antes da existência de um poder regulador estatal, a resolução dos conflitos de interesses no seio da sociedade mediava-se por meio de particulares que, de certa forma, cingiam-se através de um juízo, essencialmente, parcial e de força (autodefesa e auto-composição).

Surge, portanto, a necessidade de se buscar uma solução para os conflitos de modo que, por fim, a sociedade possa pacificar-se e almejar uma harmonia em conluio com seus direitos individuais e fundamentais (artigo 5º, CF, e outros dispositivos concernentes). Essa pretensão em compor os choques de direitos, no dizer de Carnelutti, aparece “quando uma das partes afirma contra uma outra, que se compete, em um conflito de interesses, a proteção do direito”.

De sorte que o Estado, perante seus três poderes independentes e harmônicos entre si, trouxe consigo um aparato fecundo para a composição dos conflitos erigidos no âmago de uma sociedade desarticulada pela falta de um ente reparador imparcial. Diante dos vértices opostos entre o jus libertatis e o jus puniendi, desponta-se o poder público como órgão regulador e carreado por princípios que norteiam o jus persequendi, dentre um dos precípuos o da reserva legal (artigo 5º, inc. XXXIX, CF/88).

Sem embargo, insta pontuar uma das instituições essenciais à função jurisdicional do Estado: o órgão do Ministério Público, com sua proteção ao regime democrático, ordem jurídica, interesses metaindividuais e demais escopos estabelecidos nas legislações pertinentes.

A imprescindibilidade de um ente político-jurídico afere-se nas palavras do professor Tourinho, quando leciona que “o Estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em conservar sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringir o jus libertatis com a inflição da pena”.

Pois bem, quando salientamos no intróito deste texto, que a sociedade faz parte da natureza, prevenção e repressão em seara de segurança pública e política criminal no país, em nada deixa de ter sua veracidade.

Vejamos exemplos estruturais e normativos que nos direcionam para esta tese:

Quanto à natureza, a tese passa por uma análise político-histórica de uma sociedade que, moldada na lógica racional-positivista, abaliza-se em um neoliberalismo que, invariavelmente, necessita de uma sustentação estrutural do aparato estrangeiro. Nesse sentido, a CF/88 acaba sendo um protocolo de intenções frente ao avanço tecnológico privilegiador do desenvolvimento, sem progresso social. Há de se frisar que nem todo desenvolvimento vem acompanhado com o progresso humanitário, mas sim a contramão do dito, pelo menos, ensejaria um alcance preliminar dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Quanto à prevenção, dentre outros exemplos atinentes, temos aquele em que o legislador nos conduz à interpretação normativa sistêmica (Lei 11.343/06) para que a sociedade compartilhe, juntamente com o Estado, dos princípios do Sisnad (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas). Refere-se tal atividade a uma responsabilidade compartilhada entre Estado e sociedade, reconhecendo a importância da participação social nas atividades do Sisnad.

Trata-se de princípio em que, no intuito preventivo e fiscalizatório, a sociedade também participe das atividades públicas, in casu, o controle sobre a política de drogas no país.

Ainda no âmbito preventivo, outro exemplo é o conflito de interesses incrustados no seio da sociedade civil, cujas soluções deverão ser tentadas, primeiramente, por intermédio de um viés conciliatório (preventivo de lides). Significa que todo e qualquer acordo prévio à entrada judicial há de se buscar. Cuida-se, assim, de evitar um sufocamento do Judiciário e do aparelho burocrático estatal, bem como da rápida composição das divergências sociais disponíveis. Exemplo prático desse parágrafo é o dever do advogado em prevenir, sempre que possível, a instauração de litígios (Código de Ética e Disciplina da OAB, artigo 2º, inciso VI).

Não deixando apartado tal exemplo de grande significância e evidência atual, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990) nos remonta ao entendimento que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação de direitos referentes à proteção integral do menor.


De outra sorte, quanto à repressão, podemos nos abraçar no exemplo da possibilidade/faculdade do cidadão dar voz de prisão em flagrante delito, nos termos do artigo 301, 1ª parte, do Código de Processo Penal.

Além disso, o requerimento do ofendido ou representante, dirigido à autoridade policial, Ministério Público ou autoridade judiciária, para instauração de inquérito policial, a representação no intuito de dar condição de procedibilidade para que o Ministério Público (dominus litis) promova ação penal e a ação penal privada, proposta pela própria vítima, são exemplos típicos de condutas repressivas oriundas da própria sociedade a fim de coibir a criminalidade, vigente de forma opressora no país.

Podemos também citar a denúncia anônima como exemplo do entendimento acima.

Ocorre que, a sociedade não consegue enxergar no Estado Democrático atual uma instituição que consiga prover o problema da segurança pública. Não há a imparcialidade nessa composição de conflitos. Chama-se a Força Nacional para uma intervenção nos estados federados para essa tentativa, no entanto a nuvem desse cataclismo, chamada violência, se mantém ou até mesmo majora-se, especialmente nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.

O Estado, como ente abstrato, por sua vez, não consegue cumprir sua missão, postulada em sua própria criação. Não se estanca o germe que brota da sociedade, com o puro e nítido reflexo na atual desigualdade social. Vivemos, então, a fase da crise das instituições públicas.

Em decorrência, evidente, uma vez que o Estado não dirime todas essas demandas, o particular (individual ou coletivamente) assume e avoca para si as funções que outrora eram exclusivamente típicas do poder público, como a segurança pública. Só que nem sempre essas ações da sociedade civil detêm um cunho legal, ou seja, nem sempre a natureza das ações particulares ou por meio de associações para defesa de direitos difusos e coletivos amolda-se dentro da legalidade. Surge, portanto, o caos social.

Reflexo imediato de tudo isso são as concentrações de poderes em núcleos emanadores de Direito (vide Wolkmer ). Exemplos genéricos: ONGs, associações da sociedade civil, como de bairros, de categorias profissionais, favelas, movimentos sociais, dentre outros. Há, portanto, uma estampada inversão de funções entre o Estado e o particular (sociedade), esse buscando, sobretudo, os escopos positivados na Carta Política de 1988 que, por natureza, seriam atividades típicas da administração pública. É como o inverso dos pólos do contrato social (vide comentários: Jean-Jacques Rousseau, in Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens – 1.755).

Sabemos que essas informações detêm um alargado âmbito de incidência teórica. Há uma gama de assuntos interdisciplinares, tanto jurídica quanto político-social. No entanto, em que pese essa diversidade e quantidade suscitada, necessário se faz para que possamos nos ater, agora, em como os entes políticos e a própria sociedade civil, incluindo a comunidade jurídica, estão reagindo a esse processo que chamamos de crise das instituições democráticas.

Da Teoria Geral da Imputação Objetiva

Prescinde-se alegar, evidentemente, que o presente capítulo não trata da completa apresentação da teoria em comento, uma vez que fugiria do núcleo temático a que se propõe o trabalho.

Almejamos, tampouco, esmiuçar seus elementos componentes segundo as diretrizes doutrinárias de alguns de seus consagrados pensadores, como Claus Roxin e Günther Jacobs.

O que se denota, portanto, é o liame entre a crise das instituições públicas no país, principalmente em decorrência da majoração da criminalidade, e como a sociedade (e os jurisconsultos) respondem a tanto, já que o Estado não produz o resultado constitucional de modo eficaz.

O laureado professor Antonio Luiz Chaves Camargo considera que “a complexidade social exige que, nos riscos que lhe são inerentes, o Direito Penal encontre um instrumento capaz de selecionar estes riscos”. De acordo com o autor, hodiernamente, a imputação objetiva seria esse instrumento.

Com efeito, no que tange a gênese do estudo da teoria da imputação objetiva, o alemão Richard Honig, em meados de 1930, aprofundando-se no elemento do fato típico imputação, preconizou os passos iniciais do que hoje chamamos de Teoria Geral da Imputação Objetiva.

Segundo o autor, a questão da imputação perpassa estritamente por critérios jurídicos, ou seja, o operador do direito e/ou o legislador teriam que se abalizar para fixar a causalidade não por pontos exatos normativos (teoria da equivalência dos antecedentes ou teoria da causalidade adequada), mas por parâmetros do justo, do socialmente relevante às ciências humanas e ao papel do Direito Penal. É o reflexo do que ele denomina de controle do curso causal, semente frutífera da Teoria da Imputação Objetiva.


Sua relevância atual perpetra-se pelo motivo dessa teoria alargar a vista valorativa sobre a conduta do agente. Em que pese sua finalidade de limitar o alcance da chamada teoria da equivalência dos antecedentes (adotada pelo Código Penal vigente), jamais deixa de abrir mão desta última. Por isso a imputação objetiva também pode ser chamada de teoria sincrética.

Melhor dizendo, já que a sociedade enfrenta índices excessivos de criminalidade, discute-se a atuação da teoria da imputação objetiva, por causa da possibilidade de aferir juízos à conduta do criminoso, fugindo-se da imputação estritamente normativa, e dentre esses juízos o do risco permitido e o risco proibido.

Nasceu, então, a idéia de limitar o nexo causal, conferindo-lhe um conteúdo jurídico, e não meramente naturalístico. Destarte, não bastaria mais o simples elo físico ditado pelas leis da causa e efeito, pois se o nexo causal não tiver relevância jurídica na sistemática cotidiana da coletividade, não haverá imputação.

É patente o grau político que a imputação objetiva carrega em seu bojo. Os conceitos de risco permitido e risco proibido, principais incrementos advindos da imputação objetiva, são dinâmicos em relação à cada sociedade em que se adota a teoria em alusão.

No Brasil, como a onda criminosa é latente, os riscos permitidos seriam os mais trabalhados na medida em que, claramente, restringidos, assim como os riscos proibidos tornar-se-iam mais alargados, tipificando-se mais condutas (ação e omissão) incriminadoras (preceitos primários). E daí um dos grandes anteparos em que parte da sociedade, melhor dizer os operadores do Direito, debruçam-se para sua aplicação hodierna.

Possibilitar-se-ia incluir, desse modo, a adequação social como elemento normativo do tipo penal. No entanto, toda estruturação da imputação objetiva não deixa de percorrer um item subjetivo, inclusive no incremento do risco, com institutos ainda não definidos precisamente e, ademais, uma possibilidade nefasta de se punir sem a reserva legal prévia (nullum crimen nulla poena sine lege).

Não diverge da compreensão do professor Sídio Mesquita, transcrita infra:

“Diante da manutenção de critérios pouco precisos, inclusive com a inclusão de elementos subjetivos, a teoria mantém os mesmos casuísmos da relação de causalidade ”.

Além disso, outras teorias já colaboram integralmente com a busca da solução na maioria dos fatos concretos subsumidos à lei abstrata e enfrentados pela sociedade, tal qual a teoria social da conduta com contribuições de Hans Welzel, que incute em seu ventre categorias adotadas pela própria imputação objetiva. Ainda assim, a gama de institutos jurídico-penais compilados no ordenamento já é apta a satisfazer a demanda (Vide: Nogueira, José Wagner Guedes. A teoria da imputação objetiva como solução para a crise do dogma da causalidade; Vieira, Vinícius Marçal. A desnecessidade da teoria da imputação objetiva).

Elucidando o exposto, imaginemos o exemplo trazido a lume:

Um mestre de obras bem conceituado e gabaritado, especializado na construção de andaimes de grande porte, ordena que seu subordinado, um operário, erija um andaime segundo seus cálculos que incluía altura, tipo de material usado, quantidade de material, ferros e madeiras específicos, forma de sustentação e angulação. Feita a armação, precisamente de acordo com o que o mestre propusera, o operário sobe no andaime para o trabalho e, após concluir a escalada, o mestre pede para que o operário inclua mais uma tora de madeira para apoio e sustentação de um último andar, a título de aproximação maior do prédio paralelo em construção. Cumprida a tarefa, verificou-se em laudo pericial que a construção tivera a angulação variada e isso fez com que não suportasse o trabalhador, que desabou juntamente com todo o aparato estrutural do andaime, sofrendo lesões na sua integridade física de modo letal.

No exemplo aludido, tranquilamente constatamos que o fato seria atípico por ausência de previsibilidade objetiva, ou seja, não é exigível do homem médio agir de maneira diversa. Todavia, o mestre de obras era engenheiro civil com especializações, títulos e de grande idoneidade, tendo conhecimentos mais que suficientes para prever o resultado fatal. Inobstante, segundo a sistemática tradicional, o fato seria atípico devido à ausência de previsibilidade objetiva. Ou melhor, quando perguntamos se um homem prudente e de discernimento, colocado na situação do agente, teria mandado incluir o material de sustento (tora de madeira), apenas para título de apoio, a resposta é positiva. Logo, não existe dever de cuidado necessário objetivamente previsível.

Novamente, segundo a doutrina tradicional, nos crimes culposos, verificada a ausência do requisito da previsibilidade objetiva (substituição hipotética do agente, no caso concreto, pelo homo medius) o fato será considerado atípico. Contudo, caso esta esteja presente (e, em conseqüência, a tipicidade da conduta), verifica-se se o agente tinha capacidade de prever o resultado de acordo com alguns fatores, como a sua cultura, nível educacional, acuidade, dentre outros (previsibilidade subjetiva). Estando ausente esta, afasta-se sua culpabilidade.


Ainda que seja um exemplo distante do cunho da criminalidade crescente objeto do presente artigo, e por mais que possam ocorrer injustiças no exemplo em comento, é despiciendo o amparo na teoria da imputação objetiva para alcançar corretivos e soluções.

Sendo o suposto delito praticado na modalidade culposa e adotando-se a teoria da imputação objetiva, não há fato típico se praticado pela pessoa mais qualificada tecnicamente, embora, por suas condições, pudesse prever o resultado e operar com maiores cuidados do que os exigidos do homem comum.

É a mesma conclusão que se chegaria ao adotarmos os elementos do fato típico para o delito culposo, tais quais a quebra do dever de cuidado objetivo e a previsibilidade objetiva do resultado. Zaffaroni conclui: “A previsibilidade subjetiva é, para nós, elemento psicológico (subjetivo) do tipo culposo ”.

Retiramos do exposto, entretanto, uma maior acuidade e atenção quanto à teoria da imputação objetiva apenas no que se refere aos delitos praticados através de uma conduta omissiva, aos delitos de perigo, culposos, impossíveis e também quanto ao instituto da aberratio ictus.

Conclusão

O que nos remonta, agora para finalizar, é que a imputação objetiva, embora pareça deter uma natureza totalmente diversa da adotada no Brasil atual, em nada inova demasiado no ordenamento jurídico. O que se resolve com a imputação objetiva, resolve-se também com a equivalência dos antecedentes e outros institutos do ordenamento jurídico-penal pátrio, como exemplo o artigo 13, CP.

Na realidade, a crise das instituições públicas leva a sociedade a se apoiar em várias manifestações que busquem uma solução para o insustentável grau de criminalidade atual, com maior rigidez e imperatividade na aplicação da lei penal. É o que decorre também dos operadores jurídicos favoráveis à implementação mais sólida da teoria da imputação objetiva.

Mais arrazoado, portanto, seria o ecletismo dentre as variadas teorias sobre o elemento do fato típico: imputação. Visto que, além de não sair do critério subjetivo (embora traga o nome imputação objetiva), a culpa jurídica não pode coincidir com a moral da sociedade em que vivemos em todas as relações jurídicas decorrente dessa convivência.

Uma alteração no âmago do Direito Penal, agora, além de ensejar elevado risco de percepções emocionais, teria que envolver até mesmo a atividade do legislador, a fim de que não se puna previamente sem lei anterior que preveja a conduta delituosa.

O ilustre professor José Henrique Pierangeli chama a atenção para os vários desdobramentos da teoria. De acordo com o autor, “não existe uma teoria de imputação objetiva voltada numa única direção, unívoca, constituindo um critério único que procure resolver todos os problemas da imputabilidade”.

Ante o alegado, leva-nos a entender que não se pode falar da imputação objetiva como uma teoria, mas, sim, como um movimento, que, como tal, deve ter suas questões remetidas à política criminal, distanciando-se, assim, da dogmática jurídico-penal.

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