Pobreza não tem raça

Modelo de política racial americano não serve ao Brasil

Autor

  • Roberta Fragoso Menezes Kaufmann

    é procuradora do Distrito Federal professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo na Escola da Magistratura do DF e no Instituto de Direito Público. É autora do livro Ações Afirmativas à Brasileira: necessidade ou mito? Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil lançado pela Livraria dos Advogados.

10 de julho de 2007, 0h01

O tema das Ações Afirmativas desperta muitos debates e é alvo de discussões nem sempre pautadas pela racionalidade e pela cientificidade. Difícil se torna, então, falar sobre um tema quando este já vem impregnado de diversas pré-compreensões, acompanhadas, no mais das vezes, por uma postura passional e extremista. Com este trabalho, propõe-se abandonar as posturas já assumidas sobre o assunto, para a partir daí realizar uma releitura, desta feita interligando áreas de conhecimento distintas, como são o Direito, a História e a Sociologia.

O trabalho pretende analisar se existe de fato uma real necessidade em se adotar políticas públicas afirmativas no Brasil em que a raça esteja entre um dos fatores a ser considerados, ou, então, em que funcione como o critério exclusivo. Ou se, do contrário, essa discussão nos é estranha e apenas decorre de um deslumbramento em relação ao modelo adotado alhures, muitas vezes esquecendo as diferenças estruturais entre o país que inspirou a criação das políticas positivas — Estados Unidos — e aquele em que se pretende adotá-las — Brasil.

Para tanto, faz-se mister estudar o contexto histórico e sociológico em que as ações afirmativas foram criadas e se desenvolveram. Daí a razão pela qual faremos uma abordagem comparativa entre os Estados Unidos, país onde o programa teve início, e o Brasil. Isto nos leva, entretanto, ao estudo e à análise de um passado longínquo, que não interessa diretamente ao assunto, mas que se faz imprescindível para reconstituir o quadro das relações raciais brasileiras e norte-americanas.

O estudo enfocará de maneira prioritária as ações afirmativas destinadas aos negros, porque foram para estes que originariamente tais medidas foram criadas nos Estados Unidos. A ampliação dos programas positivos para as outras minorias, como as mulheres, os índios, os deficientes físicos e os imigrantes, decorreu de justificativas diferentes das que embasaram a criação dos programas para os negros e que fogem ao trabalho que nos propomos.

Com a quantidade de livros publicados sobre o tema, principalmente nos Estados Unidos, poder-se-ia acreditar que o assunto estaria praticamente esgotado, e que restava aos pesquisadores brasileiros fazer uma ligeira adaptação do material já publicado — como de fato é o que vem sendo feito até agora. Entretanto, a justificativa para uma nova abordagem afigura-se-nos assustadoramente fácil, porque a necessidade de uma nova perspectiva, na qual se enfoque a história das relações raciais nos dois países paradigmas desse estudo, Brasil e Estados Unidos, parece-nos deveras óbvia, quando se trata de ações afirmativas. Entretanto, nada ainda havia sido escrito sob tal enfoque, especialmente no meio jurídico. Há asserções soltas e sugestivas de que o contexto brasileiro difere do norte-americano, sem que os autores de tais afirmativas procedam, contudo, à análise de quão profundas são essas diferenças. A quase totalidade dos muitos artigos e poucos livros escritos no Brasil não renova os argumentos[1] e analisa os programas positivos como se estes fossem os resultados de uma evolução lógica da concretização do princípio da igualdade, partindo do Estado Liberal ao surgimento do Welfare State — Estado do bem-estar social. Ora, pesquisar é trazer à tona algo novo, questionando as posições tidas por consolidadas. Este estudo propõe-se a fazer cócegas na inteligência do leitor, convidando-o a participar de uma nova visão dos fatos, de uma forma diferente do que vem sendo escrito até então.

Os defensores das ações afirmativas no Brasil tomam por base o modelo político instituído nos Estados Unidos, como se este fosse impermeável e acima de qualquer tipo de crítica. Argumentam, de forma enfadonha e repetitiva, que os norte-americanos encaram o problema e que no Brasil o racismo é muito pior, porque camuflado, ocultado, escondido. Viver-se-ia aqui uma hipocrisia racial, baseada em um mito, o da democracia racial, de modo que só teríamos a aprender com os americanos do norte. Curioso é perceber que, ao tentar promover a resolução dos problemas brasileiros, grande parte da militância pró-ações afirmativas finge desconhecer a história do próprio país e acata, de forma passiva e subserviente, os métodos e mecanismos de resolução para a problemática racial pensados alhures.


As ações afirmativas surgiram e prosperaram nos Estados Unidos, país cujo contexto histórico difere em muito do brasileiro. Para proceder a um estudo sério acerca do assunto, vários tópicos não podem fugir à análise do pesquisador, dentre os quais o exame de como se desenvolveram as relações entre brancos e negros[2] nos Estados Unidos antes da imposição das ações afirmativas, de que maneira o Estado lidava com essas manifestações inter-raciais, se havia uma política legal a dar suporte à discriminação, de que modo a Suprema Corte atuava, se as decisões buscavam impedir ou fomentar o ódio racial. Tudo isso deve ser analisado de uma maneira comparativa com o Brasil, para que possamos avaliar os riscos quanto à adoção de medidas afirmativas e o grau de eficácia do instituto.

Por outro lado, pretende-se realizar um estudo comparativo sobre como se desenvolveram as relações raciais nos dois países, desde o início da colonização. Nesse sentido, ainda que de maneira resumida, serão analisadas as características dos povos colonizadores – Portugal e Inglaterra –, a forma como se originou o povoamento, o motivo do emprego da mão-de-obra escrava negra, a existência ou não de miscigenação entre as raças, as causas da abolição, o modo pelo o qual se desenvolveram as relações raciais após a extinção do trabalho escravo. Com isso, observar-se-ão as conseqüências originadas dos diferentes processos históricos, para, alfim, proceder-se às conclusões sobre a necessidade de medidas afirmativas para os negros no Brasil.

Antecedentes históricos. As diferentes formas de colonização efetuadas no Brasil e nos Estados Unidos. O surgimento das ações afirmativas.

As diferentes formas de colonização realizadas no Brasil e nos Estados Unidos geraram conseqüências importantes sobre como se desenvolveram as relações raciais em cada um dos países. A colonização realizada por Portugal nos fez herdar características já presentes naquele reino, em todos os aspectos da vida social. Não havia em Portugal excedente populacional apto a promover a colonização no Brasil. Quando esta foi finalmente efetuada, realizou-se apenas por homens brancos, já que os portugueses não trouxeram consigo as famílias. Esse fato deu ensejo à relativa falta de mulheres brancas na colônia, e conseqüente caldeamento dos portugueses com as índias e com as escravas negras. Essa conjunção de raças favoreceu a formação de um povo altamente miscigenado, como é o brasileiro[3].

Nos Estados Unidos, por sua vez, a colonização feita por ingleses foi no intuito de povoar a terra, originando núcleos familiares. À época, mudanças estruturais haviam ocorrido na Inglaterra. O estabelecimento das incipientes manufaturas teve como conseqüência o cercamento dos campos e a expulsão dos camponeses. Tal fato, aliado aos conflitos religiosos — período da contra-reforma católica à religião protestante — fez com que houvesse uma multiplicidade de pessoas ávidas a sair do país. O sucesso de tal empreitada colonizadora pode ser explicado ainda por outros fatores, como a glorificação da ética do trabalho e a recompensa ao esforço individual, típicas do protestantismo.

As condições em que se desenvolveu a colonização nos Estados Unidos geram uma série de ilações no que tange à questão racial. Com efeito, a colonização efetuada por famílias fez com que não houvesse nos Estados Unidos uma forte miscigenação entre as raças, da maneira como foi conhecida no Brasil — não havia carência de mulheres brancas. Por sua vez, o estabelecimento da mão-de-obra escrava negra alhures somente teve início efetivo a partir do século XVIII; até então, contava-se com o trabalho dos trabalhadores temporários brancos. Ademais, a religião protestante admitia o divórcio, de modo que às mulheres era garantido o direito de se divorciarem dos maridos que, eventualmente, praticassem a infidelidade com as negras, o que dificultou a miscigenação.

Outro fator histórico que traz conseqüências para as relações raciais contemporâneas é o fato de os portugueses já serem acostumados com a presença dos negros desde antes do descobrimento do Brasil. Portugal era um país altamente miscigenado antes mesmo do início da colonização brasileira. No entanto, o mesmo não pode ser afirmado no que tange à Inglaterra. A despeito de a Grã-Bretanha ter desempenhado papel de destaque para fazer ressurgir a escravidão e o tráfico de escravos, devido aos vultosos ganhos comerciais que se originavam com a magnífica frota de navios negreiros saídos principalmente de Liverpool, o trabalho servil nunca fora considerado mão-de-obra efetiva para os ingleses, de modo que a Inglaterra não conheceu a miscigenação tal como já experimentara os países Ibéricos. Isso explicará, em parte, porque nos Estados Unidos a miscigenação foi largamente desestimulada.


Por outro lado, a plasticidade do povo português, acostumado a oito séculos de dominação moura, fez gerar em terras tupiniquins uma estrutura social extremamente maleável, o que garantiu a alguns negros, mesmo na época do Brasil Colônia ou do Império[4], em que vigente o sistema escravocrata, a possibilidade de alcançar postos de destaque. Deste modo, o negro livre no Brasil possuía status social definido, antes mesmo da abolição da escravatura.

Outra distinção relevante decorre do modo segundo o qual se lidou com a liberdade dos negros antes da abolição. No Brasil, a possibilidade de alforria, além de em alguns casos derivar de expressa disposição normativa, poderia também ser obtida por determinação dos senhores, por disposições de última vontade, ou então pela compra da liberdade pelo próprio escravo. Já no contexto norte-americano, houve a edição contínua de leis visando a evitar a existência de negros livres nos estados escravistas, o que decerto dificultou a interação racial[5].

Com efeito, ainda que as limitações à aquisição da liberdade antes da abolição da escravatura não fossem absolutas nos Estados Unidos, serviram para impedir a formação de uma numerosa classe de negros livres, o que trouxe conseqüências graves para o desenvolvimento das relações entre as raças naquela sociedade. Nos anos imediatamente anteriores à abolição da escravatura norte-americana, apenas 12,5% dos negros eram livres. Já no Brasil, a relativa facilidade para aquisição da alforria fez com que os brancos já estivessem acostumados à presença dos negros livres na sociedade antes da abolição, de modo que os escravos, quando libertos, não encontraram uma resistência social organizada. Calcula-se que os escravos constituíam apenas 5% da totalidade da população brasileira em 1887, sendo que a esmagadora maioria dos negros, 90%, já era livre.

A par desse aspecto, é importante destacar que no Brasil a abolição da escravatura não foi precedida de guerras nem conflitos. Do contrário, foi permeada por sentimentos de exaltação nacionalista. Decretou-se no país feriado por cinco dias e a Princesa Isabel foi agraciada com o título de “A Redentora”. Já nos Estados Unidos, a abolição da escravatura foi precedida da mais violenta Guerra Civil que se tem notícia, que resultou na morte de 600.000 pessoas. Os negros foram considerados os verdadeiros culpados do conflito, o que acirrou a violência praticada contra eles[6].

O ódio que se originou do fosso racial nos Estados Unidos implicou a formação de duas comunidades distintas, a partir da segregação institucionalizada, qual seja, incentivada e patrocinada por meio de políticas públicas e promovidas por meio de leis, de decisões administrativas e da jurisprudência. Por meio dela, os negros foram proibidos de freqüentar as mesmas escolas que os brancos, proibidos de ter propriedades, de viver em certas vizinhanças, de obter licenças para trabalhar em algumas profissões, de casar com brancos, de votarem, de testemunharem. Não podiam dirigir nas mesmas estradas, sentar nas mesmas salas de espera, usar os mesmos banheiros ou piscinas, comer nos mesmos restaurantes, ou assistir a peças nos mesmos teatros reservados aos brancos. Aos negros, era simplesmente vedado o acesso a parques, praias e hospitais[7].

Não podemos olvidar que o sistema segregacionista estadunidense foi não somente admitido, mas sobretudo fomentado com as decisões da Suprema Corte. Nesse sentido, mencione-se o famoso precedente Plessy v. Ferguson — 163 U.S 537 (1896), quando a Suprema Corte declarou a constitucionalidade do Estatuto da Lousiana de 1890, por meio do qual se determinava que o transporte em estradas de ferro deveria ser feito por acomodações iguais, mas separadas entre os brancos e os negros (a famosa máxima equal, but separated). Assim, seria perfeitamente constitucional que os negros fossem barrados, se porventura quisessem viajar nas áreas destinadas aos brancos, porque à época a idéia de igualdade não significava que brancos e negros pudessem dividir o mesmo espaço físico.


Observa-se, desse modo, que nos Estados Unidos a segregação não fora promovida apenas por organizações particulares, mas, espantosamente, foi incentivada pelo próprio Estado. Na medida em que o próprio governo institucionalizou a discriminação entre as raças, fez surgir no imaginário nacional a idéia de que a separação entre brancos e negros era legal e legítima, de que não era correto haver relações entre as raças, nem mesmo de cordialidade. Assim, despertou a consciência das pessoas para a diferença, em vez de procurar promover a igualdade.

Naquela sociedade, as modificações no sistema segregacionista surgiram somente após muita luta. As décadas de 1960 e de 1970 foram marcadas pelo auge do movimento negro organizado, com os líderes Martin Luther King e Malcolm X, e ainda as manifestações contínuas de diversas organizações[8]. Na esfera política, programas de combate à discriminação começaram a surgir, nos governos de Kennedy e Johnson[9], mas mesmo com tais medidas, a miscigenação entre negros e brancos permanecia verdadeiro anátema social.

No entanto, uma série de eventos principiou a mudança de direção das políticas públicas relativas aos negros. Observou-se que apenas proibir a discriminação não demonstrou ser suficiente[10]. Na década de 60, explodiram inúmeros eventos ligados aos conflitos raciais, difundindo o medo, o terror e a confusão na sociedade. A situação se agravava porque a polícia respondia com intensa brutalidade, o que acirrava ainda mais o caos social instalado. Para se ter uma idéia da magnitude da questão, o problema racial foi capa da Revista Time por três semanas consecutivas. Em 31 de julho de 1967, a capa do U.S News and World Report foi “Os Estados Unidos serão capazes de se auto-governarem?”. Destaque-se que as manifestações dos negros tornaram-se mais violentas a partir do assassinato, em 1968, do líder Martin Luther King, quando este organizava uma grandiosa manifestação contra a pobreza. Não fora coincidência o título escolhido para publicação, em 1968, do livro sobre a temática racial nos Estados Unidos, de Garry Wills — The Second Civil War: Arming for Armageddon[11].

Assim, já então sob o comando de Richard Nixon (1969-1974), o governo estadunidense compreendeu que já não bastava o comprometimento oficial com as políticas de combate à discriminação. Era preciso fazer mais. Haviam sido criadas as condições específicas e propícias para o desenvolvimento de uma política afirmativa, que reconhecesse a necessidade de adotar medidas inclusivas para inserir os negros na sociedade, sob pena de, em assim não o fazendo, implodir a segunda guerra civil. Os motins urbanos ocorridos na década de 60, aliados ao relativo fracasso das medidas antidiscriminatórias[12], provocaram o ambiente necessário ao surgimento de uma política afirmativa cujo objetivo maior era o de tentar eficazmente promover a integração. No entanto, é importante observar que a política desenvolvida por Nixon não foi acompanhada de argumentos pela concretização do princípio da igualdade ou pela efetivação da justiça. Do contrário, procurou especificamente diminuir a quantidade de conflitos e evitar que os próprios brancos pudessem sofrer mais danos, físicos ou materiais[13].

Desse modo, percebe-se que uma das ironias sobre a criação das ações afirmativas é que estas foram imaginadas e colocadas em prática por alguns brancos que estavam no poder. Do contrário, os principais líderes do movimento negro organizado não se manifestaram favoravelmente a uma política integracionista, mas lutaram apenas para combater a discriminação institucionalizada. Martin Luther King chegou a se manifestar sobre o tema, advertindo que a adoção de políticas afirmativas seria contraproducente para o movimento negro, porque não conseguiria encontrar justificativas diante de tantos norte-americanos brancos pobres. Com efeito, nunca houve uma marcha para Washington em favor dessas medidas, nem mesmo pressão política consistente e relevante a favor de cotas ou de mecanismos de integração[14].


Como se denota, tais medidas não se originaram da observação de que era preciso desenvolver uma sociedade mais justa, mais democrática ou mais humana. As ações afirmativas surgiram em um momento social marcado pela iminência de grave conflito civil. Não houve relevante construção teórica prévia, nem dos negros, nem de brancos, nem de partidos de esquerda, nem de direita, sobre as justificativas do princípio da igualdade, a partir de considerações sobre as modalidades de justiça compensatória ou de justiça distributiva, dentre outras questões jurídico-filosóficas. Mesmo porque, o primeiro Presidente dos Estados Unidos que efetivamente adotou política pública concretizadora da integração, Richard Nixon, era um republicano cujo maior apoio na campanha adveio dos eleitores conservadores dos estados sulistas, contrários às medidas de integração. Enquanto os democratas Kennedy e Johnson nada fizeram em termos integrativos, coube a um republicano conservador adotar essas medidas[15].

Com efeito, ainda hoje muitos autores discutem o tema considerando que as ações afirmativas surgiram da evolução do princípio da igualdade, do Estado partindo de uma situação de neutralidade até o advento do Estado Social, com a implementação de políticas públicas. No entanto, essa conclusão nos parece apressada e apenas parcialmente correta. Ademais, seria um verdadeiro paradoxo se a explicação das ações afirmativas estivesse vinculada à concretização do princípio da igualdade, a partir do Estado Social, considerando que o país no qual as ações afirmativas foram criadas — Estados Unidos — talvez seja o exemplo que mais se assemelhe, no mundo, ao modelo de Estado eminentemente Liberal.

Sob a administração de Nixon, as ações afirmativas iniciaram nova fase, sobretudo a partir de decisões favoráveis da Suprema Corte e da criação de agências governamentais para implementar tais medidas. Nas décadas de 70 e 80 eclodiram ações afirmativas no âmbito estadual, municipal, em empresas privadas, no comércio, no sistema educacional e em associações. Entretanto, a partir dos governos Reagan (1981—1989) e Bush (1989—1993) tais programas foram reduzidos sensivelmente. Ainda durante a campanha presidencial, Reagan já sinalizara contrariamente à adoção de medidas afirmativas, por acreditar que tais programas representavam uma intervenção do Estado na economia privada, o que não mais seria admissível, linha esta de entendimento também seguida pelos sucessores.

Atualmente, a adoção de ações afirmativas vem se enfraquecendo nos Estados Unidos. Observa-se tal limitação por meio da política restritiva desenvolvida no atual governo de George W. Bush. No Judiciário, elegeu-se o exame judicial rigoroso no que tange às medidas positivas. A sociedade, por sua vez, vem dando demonstrações cada vez mais freqüentes de que não está mais suportando a política de benefícios para determinados grupos, observando-as com aversão[16]. Em junho de 2003, o julgamento pela Suprema Corte sobre a política afirmativa posta em prática pela Universidade de Michigan, no sentido de que a raça não pode ser considerada fator decisivo para o ingresso, retomou o debate do tema pela sociedade. A conclusão sobre o assunto, todavia, ainda está longe de acontecer e se revela, quando muito, apenas mais um capítulo na luta pela democracia racial estadunidense.

Uma vez analisado o modelo de ações afirmativas implementado nos Estados Unidos, ainda que de maneira concisa, cumpre-nos esclarecer que no Brasil, até o momento, os debates que vêm sendo estabelecidos se limitam, no mais das vezes, à observação do modelo norte-americano e à conseqüente conclusão pela cópia do sistema no Brasil. Para chegar à ilação de que viveríamos problema semelhante, os defensores das medidas afirmativas utilizam-se dos indicadores sociais, que demonstram a precária situação dos negros no País. Assim, a equação formada pela leitura precipitada e superficial do modelo estadunidense, conjugada com os índices sociais desfavoráveis para os negros no Brasil, foi suficiente para que a implementação de ações afirmativas se tornasse, momentaneamente, o debate do dia[17].


Observa-se, desse modo, que profundas diferenças históricas e sociais separam as relações raciais desenvolvidas no Brasil e nos Estados Unidos, o que inviabiliza, decerto, a simples importação do modelo praticado alhures. Como vimos até aqui, a adoção de programas afirmativos nos Estados Unidos foi uma resposta ao sistema de segregação institucionalizada que teve início posteriormente à abolição da escravatura. O fato de não termos tido esse sistema no Brasil, por óbvio, não obsta à adoção de políticas públicas afirmativas. Todavia, os paradigmas que nos servirão de análise são outros, diferentes dos que inspiraram a adoção das medidas alhures. No Direito Brasileiro, a análise das ações afirmativas deve ser feita a partir da observação da nossa realidade, visando a combater as razões que efetivamente impediram e impedem o negro de se integrar socialmente, e como forma de efetivação de certos direitos fundamentais, conforme destacaremos a seguir.

Conceito. Objeto. Objetivos das Ações Afirmativas

Antes de vislumbrarmos quais devam ser os critérios a nortear as ações afirmativas à brasileira, cumpre-nos, inicialmente, conceituar as ações afirmativas. Com efeito, trata-se de instrumento temporário de política social, praticado por entidades privadas ou públicas, nos diferentes poderes e nos diversos níveis, por meio do qual se visa a integrar certo grupo de pessoas à sociedade, objetivando aumentar a participação desses indivíduos sub-representados em determinadas esferas, nas quais tradicionalmente permaneceriam alijados por razões de raça, sexo, etnia, deficiências física e mental ou classe social. Procura-se, com tais programas positivos, promover o desenvolvimento de uma sociedade plural, diversificada, consciente, tolerante às diferenças e democrática, uma vez que concederia espaços relevantes para que as minorias participassem da comunidade.

É importante destacar que a adoção de políticas afirmativas deve ter um prazo de duração, até serem sanados ou minimizados os efeitos do preconceito e da discriminação sofridos pelas minorias desfavorecidas. Se as ações afirmativas visam a estabelecer um equilíbrio na representação das categorias nas mais diversas áreas da sociedade, quando os objetivos forem finalmente atingidos, tais políticas devem ser extintas, sob pena de maltratarem a necessidade de um tratamento equânime entre as pessoas, por estabelecerem distinções não mais devidas.

Para ser sujeito passivo das ações afirmativas, é preciso ainda demonstrar que a discriminação contra aquele grupo determinado atua de maneira poderosa e decisiva, a impedir ou a dificultar substancialmente o acesso das minorias a determinadas esferas sociais, como ao mercado de trabalho e à educação. Deve-se, ainda, comprovar que não há uma projeção de integração natural de determinada minoria em um futuro próximo, de modo que se nada for feito, não haverá qualquer tipo de mudança social relevante, dentro de um espaço razoável de tempo.

Os defensores dos programas afirmativos procuram justificar a opção por tais programas a partir, basicamente, de duas teorias: a da Justiça Compensatória e a da Justiça Distributiva. Apesar de ambas procurarem inserir os desfavorecidos, são, de fato, teorias distintas: enquanto a teoria distributiva é um pleito de justiça no presente, a compensatória quer buscar a justiça pelo passado. A Justiça Compensatória baseia-se na retificação de injustiças ou de falhas cometidas contra indivíduos no passado, ora por particulares, ora pelo governo. O fundamento deste princípio é relativamente simples: quando uma parte lesiona a outra, tem o dever de reparar o dano, retornando a vítima à situação que se encontrava antes de sofrer a lesão. Propriamente dita, a teoria compensatória é a reivindicação para que se repare um dano ocorrido no passado em relação aos membros de determinado grupo minoritário. Por meio desta teoria, assevera-se que o objetivo dos programas afirmativos para os negros seria o de promover o resgate da dívida histórica, e que tal dívida teria sido o período de escravidão à que foram submetidos.


O problema da adoção dessa teoria para justificar a imposição de políticas afirmativas é que se afigura deveras complicado responsabilizar, no presente, os brancos descendentes de pessoas que, em um passado remoto, tiveram escravos. Além disso, revela-se bastante difícil conseguir identificar quem seriam os corretos beneficiários do programa, já que os negros de hoje não foram vítimas da escravidão[18]. Dessarte, culpar pessoas inocentes, responsabilizando-as pela prática de atos dos quais discordam seriamente parece promover a injustiça, em vez de procurar alcançar a eqüidade. Assim, a teoria compensatória não poderia ter espaço quando os indivíduos que são tratados como grupo – seja daqueles que promoveram a escravidão, seja dos descendentes dos antigos senhores escravocratas – não endossaram as atitudes em relação às quais serão responsabilizados ou, então, não exerceram qualquer tipo de controle em relação a elas[19].

Ademais, haveria ainda o problema de identificar quem seriam os possíveis beneficiados da política compensatória. Todos os descendentes de africanos? E os negros que imigraram para o País recentemente, teriam direito? Por outro lado, em um País miscigenado como o Brasil, saber quem é ou não descendente de escravos se afigura uma missão praticamente impossível. O País adotou a mão-de-obra escrava por um período de 300 anos, mas durante todos os 500 anos, desde o início da colonização, houve uma miscigenação constante entre as raças. Como o Brasil nunca conheceu leis que proibissem o relacionamento inter-racial, ou o casamento entre negros e brancos, essa prática foi amplamente difundida, e muitas vezes até motivada.

Outro fundamento para a aplicação de medidas positivas seria a teoria da Justiça Distributiva, que, por sua vez, diz respeito à redistribuição de direitos, benefícios e obrigações pelos membros da sociedade. A teoria distributiva diz respeito à promoção de oportunidades por meio de políticas públicas para aqueles que não conseguem se fazer representar de maneira igualitária. Nesse sentido, o Estado passaria a redistribuir os benefícios aos cidadãos, de maneira a tentar compensar as desigualdades que o preconceito e a discriminação efetuaram no passado e continuam a efetivar no presente[20]. Assim, procura-se minimizar a exclusão na sociedade de certos grupos minoritários, tendo em vista a necessidade de promover a concretização e efetivação do princípio da igualdade, como direito fundamental.

É importante destacar que apesar de as medidas inclusivas raciais não visarem, especificamente, à desqualificação dos não-beneficiados, de qualquer modo a implementação dessa política pode gerar prejuízos para aqueles que não foram contemplados. É a chamada discriminação reversa, que ocorre quando as políticas afirmativas reservam vagas específicas para grupos beneficiados. E é por isso que se deve ter cautela na escolha dos critérios a ensejar uma política afirmativa, haja vista que a eleição de fatores não justificáveis pode ofender os princípios da igualdade e da proporcionalidade, além de não serem considerados legítimos.

Os defensores das ações afirmativas sugerem ainda que tais políticas seriam benéficas para toda a sociedade por promoverem a inserção de representantes de diferentes minorias em ambientes nos quais, normalmente, não teriam acesso, possibilitando o surgimento de uma sociedade mais diversificada, aberta, tolerante, miscigenada e multicultural. No entanto, essa linha de raciocínio mais uma vez demonstra a necessidade de o tema, no Brasil, ser tratado de maneira própria e com cautela. Isto porque, segundo nos parece, assertivas em favor da diversidade podem fazer mais sentido em países como os Estados Unidos, no qual até a década de 1970 praticamente não havia um só local em que negros e brancos pudessem interagir de forma pacífica[21]. Já no Brasil, argumentos nesse sentido dificilmente seriam defensáveis. Isto porque, neste País, não há como se defender a existência de uma cultura paralela formada pelos negros, à qual os brancos só tenham acesso muito raramente[22]. No Brasil, a existência de valores nacionais, comuns a todas as raças parece quebrar o estigma da classificação racial maniqueísta. Encontram-se elementos da cultura africana em praticamente todos os ícones do orgulho nacional, seja na identidade que o brasileiro tenta construir, seja na imagem do País difundida no exterior, como samba, carnaval, futebol, capoeira, pagode, chorinho, mulata e molejo. A unidade do Brasil não depende da pureza das raças, mas antes da lealdade de todas elas a certos valores essencialmente panbrasileiros, de importância comum a todos. E mais. a participação crescente de negros e mulatas em propagandas, em programas de televisão, atuando inclusive como protagonistas, encenando membros de famílias de classe média, representando o Brasil em concursos internacionais de beleza, sugere que, esteticamente, a concepção de boa aparência no Brasil está mudando, acompanhando a tendência mundial de valorização do tipo africano. Ainda se poderia mencionar que a tendência crescente de criação de produtos de beleza específicos para os negros funciona, ao menos, como um forte indicativo de que o negro está sendo visto pelas empresas como uma fatia relevante do mercado consumidor, a merecer atenção especial, destacada e autônoma.


Observação importante no que se refere às modalidades de programas positivos é que estas não podem ser reduzidas à fixação de cotas. As cotas são apenas um dos mecanismos existentes na aplicação das políticas públicas de proteção às minorias desfavorecidas, e podem aparecer não somente com a reserva de vagas em universidades, mas também na estipulação de determinada porcentagem de empregos reservada para determinados grupos. É preciso destacar, no entanto, que existem diversas outras modalidades de medidas positivas, como bolsas de estudo, reforço escolar, programas especiais de treinamento, cursinhos pré-vestibulares, linhas especiais de crédito e estímulos fiscais diversos. Por sua vez, o sistema de cotas é bastante criticado, porque provoca a discriminação reversa, atingindo diretamente o direito de outros, que não promoveram a discriminação. A escassez dos bens sociais, como o acesso às Universidades e a aos concursos públicos, faz com que a reserva de vagas seja observada como uma ofensa ao tratamento igualitário. Em larga medida, a política de cotas fere o princípio da igualdade, porque os não-beneficiados acabariam por ser tratados de maneira desigual, na medida em que se delimita o direito de acesso a todos, com a redução no número das vagas disponíveis. Assim, pessoas inocentes terminariam sofrendo as conseqüências de atos – o preconceito e a discriminação que impediram o acesso das minorias – para os quais não deram causa, e em relação aos quais, em tese, podem divergir profundamente.

Se as ações afirmativas adotadas não forem numericamente fixadas por meio de cotas, os efeitos da política positiva seriam diluídos entre toda a sociedade e, assim, não haveria o risco de discriminar reversamente alguém. E se porventura houvesse a necessidade de adotar uma política afirmativa mais agressiva, ao menos que fosse a partir de um plano de metas, que funcionam como ideal a ser perseguido. É de se ressaltar que, nos Estados Unidos, o sistema de cotas para acesso às Universidades nunca foi considerado constitucional[23].

A concretização de ações afirmativas para negros pode ainda suscitar outros problemas. De início, haveria o afastamento do critério republicano meritocrático, o que poderia, perigosamente, aumentar o racismo, ao incitar o ódio entre as raças. Nessa linha, poder-se-ia gerar hostilidade em relação aos beneficiados, com possíveis efeitos negativos sobre o reconhecimento social e a auto-estima daqueles a quem supostamente se favorece[24].

A raça a ensejar Ações Afirmativas no Brasil

A palavra raça pode ser empregada nas mais diferentes maneiras. Pode ter um sentido de fenótipo, a revelar um conjunto de características físicas, como cor da pele, cor e textura do cabelo, cor e formato dos olhos, formato do nariz e espessura dos lábios. Pode, ainda, significar uma região específica do planeta, como por exemplo, quando se fala em raça africana, raça oriental, raça ocidental. Ou, além, pode ter um sentido biológico, como a reunião de pessoas em grupos de indivíduos que possuam características específicas e distintas dos outros grupos. Até o final do século XIX, os cientistas promoveram diversas tentativas de classificar biologicamente as pessoas em raças distintas. Mas como afirma o geneticista Cavalli-Sforza: “Os resultados, muitas vezes contraditórios, constituem um bom indício da dificuldade do empreendimento. Darwin compreendeu que a continuidade geográfica frustraria toda tentativa de classificar as raças humanas. Ele observou um fenômeno recorrente ao longo da história: diferentes antropólogos chegaram a contagens totalmente discrepantes do número de raças — de três a mais de cem”[25].

O interesse científico em classificar os homens em raças biologicamente distintas chocava-se com a mobilidade com que as características raciais mudavam. Nesse sentido, o geneticista Sérgio Pena explicou que a espécie humana é “demasiadamente jovem e móvel para ter se diferenciado em grupos tão distintos[26]”. E, ainda que se quisesse fazer uma aproximação da quantidade de raças existentes no mundo, os números poderiam ultrapassar um milhão de raças distintas[27]. Nessa óptica, o mapeamento do genoma humano confirmou a impossibilidade de divisão dos homens em raças[28]. Assim, poder-se-ia indagar sobre o que levaria à permanência do interesse em utilizar-se do critério racial? Por que a insistência nesse enfoque divisório?


Na verdade, o conceito de raça subsiste, atualmente, porque, a despeito de não poder ser analisado sob o espectro biológico, permanece o interesse pela construção cultural do tema. O fato de, biologicamente, não ser possível classificar as pessoas segundo as raças, não quer dizer que o conceito cultural de raça inexista. A importância da classificação advém do aspecto social, para estudarmos o modo como cada comunidade classifica seus indivíduos e analisarmos as razões que justificaram a opção pelos critérios eleitos em cada sociedade.

Nesse sentido, o estudo sobre a maneira como se procedeu à classificação das raças na sociedade norte-americana e na brasileira será de importância reveladora, porquanto exibirá as diferenças que presidem as relações raciais nos Estados Unidos e no Brasil.

Sistemas de classificação racial

a) O sistema birracial norte-americano

Nos Estados Unidos, para que o sistema segregacionista se efetivasse, e os norte-americanos pudessem dividir as atividades sociais proibidas para os negros e as reservadas apenas para os brancos, fez-se necessário aplicar um sistema de classificação racial bastante excludente. Não bastava tentar classificar as pessoas segundo a cor que aparentavam, era preciso adotar um critério por meio do qual se alijasse a maior quantidade de pessoas possíveis. Assim, para poder delimitar ao máximo aqueles que pudessem ser considerados brancos, a sociedade segregacionista norte-americana criou um critério de classificação racial segundo a ancestralidade do indivíduo. Naquela sociedade, diferentemente do Brasil, nunca existiu um percentual muito grande de negros, já que escravidão era uma instituição regional, havia se limitado praticamente aos estados do sul e desenvolvera-se tardiamente.Dessa forma, nos Estados Unidos, seriam consideradas negras as pessoas que possuíssem quaisquer ascendentes africanos, mesmo que estes fossem antepassados longínquos. Em alguns casos, o Judiciário Estadual limitou a fixação da ascendência em trinta e dois graus; em outros, em dezesseis e até em oito graus, mas, como regra geral, não havia limitação. Tal critério tornou-se conhecido como a regra da uma gota de sangue, ou one drop rule.

A classificação empreendida nos Estados Unidos tem importância fundamental nesse estudo, porque mostra como a sociedade norte-americana faz uma profunda distinção entre os negros e os brancos. Enquanto o critério da aparência é feito subjetivamente, o critério da ancestralidade procura aspectos mais objetivos para classificação. E mais. A definição a partir da ancestralidade nos Estados Unidos somente se aplicou para os negros, e não para os demais grupos sociais, ainda que considerados minoritários, como hispânicos e índios[29]. Implementou-se nos Estados Unidos uma sociedade birracial, ou seja, uma comunidade na qual somente havia a possibilidade de a pessoa ser enquadrada como branca ou como negra. Não havia a categoria dos morenos, dos mulatos, ou dos pardos, como no Brasil[30]. Decerto, por meio desse sistema, tornou-se mais simples identificar os sujeitos da política segregacionista, bem como, posteriormente, foi menos complicado instituir programas afirmativos em que a raça fosse o único critério levado em consideração. Apenas uma gota de sangue negro, enegrecia a pessoa, ainda que, aparentemente, o indivíduo fosse branco. Mesmo com a adoção da regra do one drop rule, os negros atualmente nos Estados Unidos compõem apenas 13% da população.

Talvez por tais razões se perceba que, na sociedade norte-americana, negros e brancos não compartilham dos mesmos valores, nem da mesma identidade como povo. Existem lugares praticamente destinados para negros, como o Harlem, em Nova Iorque, além de ritmos específicos, como o blues e Igrejas reservadas, como as Batistas. Não se desenvolveram valores comuns para a comunidade negra e para a branca, apesar de, obviamente, poderem dividir certos gostos. As essências de ambas as culturas são distintas. Se eventualmente um negro tentar se passar por branco, estará renegando toda a sua comunidade. Nessa linha, já advertira o sociólogo brasileiro Oracy Nogueira que o fenômeno do passing nos Estados Unidos pode ocasionar profundos conflitos mentais, de pessoas que tiveram de mudar de nome, de cidade, de estado, para tentar apagar o passado e, assim, conseguir viver como branco, o que lhe garantiria direitos que aos negros eram negados, devido ao sistema segregacionista.


Pelas razões expostas, pode-se concluir que o sistema birracial norte-americano, ao determinar a existência de apenas duas categorias raciais distintas — negros e brancos —, aliado à institucionalização da política de preconceito e de segregação, facilitou, em muito, a adoção de programas afirmativos para negros. A justificativa para uma ação governamental afirmativa era latente, pois as medidas de exclusão que haviam sido perpetradas durante décadas contra os negros foram, sobretudo, impostas pelo governo. Ademais, diante da regra da uma gota de sangue, a implementação de ações afirmativas certamente não recairia no dilema, tipicamente brasileiro, de conseguir identificar aqueles que seriam os beneficiados do sistema.

b) O sistema multirracial brasileiro

Para que as ações afirmativas sejam implementadas no Brasil de modo a não maltratarem o princípio da igualdade, faz-se mister uma prévia análise das nossas relações raciais, para que, finalmente, cheguemos a adotar um critério próprio para a resolução dos nossos problemas. Não basta copiarmos o modelo implementado pelos Estados Unidos, porque, conforme procuramos demonstrar, a nossa realidade racial é outra. Múltiplos fatores precisam ser considerados para a adoção de ações afirmativas à brasileira: o fato de nos constituirmos em um País cuja miscigenação inter-racial foi e é uma constante, desde o início da colonização, além de nunca termos desenvolvido um critério legal, lógico e preciso sobre a definição de quem é negro no País[31]. Sobre esse ponto, talvez, resida uma das principais diferenças no modo de lidar com a questão racial nos Estados Unidos e no Brasil, e é o que vamos analisar nesse momento[32].

No Brasil, nunca houve qualquer tentativa de objetivamente limitar o acesso das pessoas a determinadas atividades por causa da raça, ou de classificar a raça das pessoas a partir de critérios objetivos preestabelecidos. A base de divisão racial somente foi usada, aqui, quando muito, para fins de pesquisas estatísticas, para sabermos quais são as cores que compõem a população. De qualquer sorte, registre-se que nem todos os Censos brasileiros indagaram sobre a raça, mas, naqueles em que tal fator foi considerado, sempre se adotou o sistema de autoclassificação, ora mediante a apresentação das raças delimitadas pelo instituto de pesquisa com posterior escolha pelo entrevistado, ora a atribuição da cor fora deixada ao livre-arbítrio do indivíduo[33].

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios — PNAD, realizada em 1976, demonstra como a solução dessa questão se revela tormentosa, no Brasil. Com efeito, neste PNAD, deixou-se livre ao pesquisado realizar uma autoclassificação. À pergunta: Qual é a cor do(a) senhor(a)?, caberia ao entrevistador apenas anotar a resposta, ainda que esta lhe parecesse estranha. Por conseqüência, identificaram-se espantosas 135 cores no País[34]. Os dados censitários revelam-nos muito sobre o problema da adoção da cor como critério a nortear a adoção de ações afirmativas no Brasil, porque nos mostram a grande variação com que o brasileiro é capaz de se identificar.

Pode-se, então, afirmar que o sistema de classificação racial no Brasil difere do norte-americano porque aqui existe uma multirracialidade, ou seja, há várias raças intermediárias entre os brancos e os negros. No sistema determinado atualmente pelo IBGE, utilizam-se cinco possibilidades de classificação racial: brancos, pretos, amarelos, pardos e indígenas. Pesquisas, no entanto, indicam que há uma rejeição muito grande ao termo pardo: cerca de 71% dos que se classificam como pardos, preferem utilizar o termo moreno. Se em vez de pardo se adotasse moreno, este grupo certamente formaria a maior parte da população, e, dessa forma, o percentual de morenos no Brasil seria superior ao de brancos.


Talvez uma das interpretações possíveis para a quantidade de classificações raciais existentes no Brasil seja a intensa miscigenação ocorrida ao longo da história. E as múltiplas categorias de cor, aliadas à falta de objetividade na definição de uma pessoa como negra ou parda, remete-nos a um dos pontos de maior controvérsia nas propostas afirmativas em que a raça é o fator levado em consideração: saber quem é negro no Brasil[35]. Tal questão inviabiliza a legitimidade dos programas afirmativos em que a raça seja o único critério levado em consideração, uma vez que, com o sistema de autoclassificação, haverá sempre a possibilidade de fraude, abrindo espaço para a má-fé de pessoas que, não sendo negras, assim se declarem com a finalidade de assegurar participação nas cotas estabelecidas[36]. Não se pode perder de vista as ponderações realizadas pelo professor Sérgio Pena, quando chegou à conclusão de que, além dos 44% dos indivíduos autodeclarados negros e pardos, existem no Brasil mais 30% de afro-descendentes, dentre aqueles que se declararam brancos, por conterem no DNA a ancestralidade africana, principalmente a materna. Desse modo, os afro-descendentes constituiriam, no Brasil, a maioria da população, com 62,2%, e os brancos seriam apenas 37,8% do povo brasileiro[37].

Nesses termos, a intensa miscigenação brasileira terminaria por colocar em dúvida a eficácia de programas afirmativos nos quais a raça funcione como critério exclusivo de integração do negro à sociedade, porque não haveria como determinar quem, efetivamente, é o destinatário da política. Retroceder à utilização de critérios objetivos para determinar a ancestralidade, com coleta de sangue e determinação do grau de ancestralidade africana, por outro lado, parece-nos totalmente fora de consideração. A política afirmativa que viesse a ser adotada no Brasil teria de vencer o desafio da legitimidade e suportar as críticas de não conseguir definir racionalmente quem seriam os beneficiados.

Para se tentar flexibilizar este debate praticamente insolúvel — saber quem é negro no Brasil —, ao mesmo tempo em que também se procura combater outra barreira, talvez a principal a impedir a ascensão do negro, faz-se necessário um novo modelo de ações afirmativas, próprio para a realidade brasileira. Desse modo, acreditamos que somente a conjugação de fatores, o racial e o social, poderiam garantir uma maior legitimidade ao debate, a menor possibilidade de utilização da má-fé, a diminuição da possibilidade de discriminação reversa, e, finalmente, o melhor atendimento aos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Assim, o problema da relativa falta de integração do negro às camadas sociais mais elevadas pode tentar ser resolvido no Brasil sem despertar manifestações de ódio racial extremado ou violento. Isso somente se torna possível porque, no âmbito social, a nossa comunidade foi capaz de se desenvolver a partir da interpenetração das culturas as mais diversas e, na esfera biológica, houve uma forte miscigenação entre as raças. Tal fato não pode ser olvidado quando da adoção de políticas públicas pelo governo. Tentar implementar ações afirmativas em que a raça seja o único critério levado em consideração poderá, de alguma forma, afetar esse relativo equilíbrio existente entre as raças que compõem o País, e, em vez de promover a inserção dos negros, criar esferas sociais apartadas, daqueles que são beneficiados pelas cotas e dos que não são.

Os negros, no Brasil, passam por sérios problemas de exclusão. São os que apresentam os piores indicadores sociais. Todavia, o que se quer demonstrar é que talvez o preconceito arraigado na sociedade não se constitua no fator exclusivo a impedir a representatividade dos negros nas classes sociais mais elevadas. Fortes indícios demonstram que o verdadeiro anátema do negro se localiza na precária situação econômica em que se encontram, tornando-os despreparados para uma competição justa no mercado de trabalho e na educação. Não se quer adotar uma teoria reducionista e diminuir a problemática racial à questão econômica. Quer-se, apenas, sugerir que as ações afirmativas a serem implementadas no Brasil não fujam desse binômio: raça e pobreza, porque assim se estaria atacando as duas principais mazelas que impedem a ascensão dos negros nas esferas sociais[38].


Como já mencionado, políticas afirmativas que adotem somente o critério racial, isoladamente, sem conjugá-los com a baixa renda, terminariam por beneficiar, sobretudo, a classe média negra, que já conseguiu obter um mínimo de qualificação necessária e não seria a mais carente dos benefícios. Por outro lado, políticas afirmativas universalistas que não levem o fator racial em consideração dificilmente alcançariam os objetivos desejados, o de integrar os negros, escurecendo a elite, a curto ou médio prazo. Assim, a raça deve ser um fator levado em consideração, mas não de forma excludente.

O fato de em ambos os países existir preconceito e discriminação não significa que a origem do preconceito esteja no mesmo fato: a origem africana. No Brasil, muitas vezes a ascendência africana pode ser suavizada, outras vezes esquecida, seja por questões econômicas – a assertiva de que no Brasil negro rico vira branco e pobre branco vira preto[39], seja pelo fenótipo apresentado, a chamada válvula de escape do mulato. Por outro lado, não há dúvidas de que a falta de preparo adequado pode ser associada às precárias condições econômicas dos negros e à necessidade de estudar em escolas públicas, nas quais o ensino fundamental e médio, na maioria das vezes, é de qualidade inferior à do ensino privado. Reconhecer esse ciclo vicioso — escolaridade insuficiente ou precária, falta de preparo para ingressar em uma boa instituição de ensino superior e ausência de oportunidades para conquistar melhores empregos é desmistificar a cor da pele como a única ou a principal causa da exclusão social no Brasil[40]. Despiciendo se torna demonstrar a relação entre a quantidade e a qualidade dos anos de estudos com os salários percebidos[41]. Em um mercado de trabalho extremamente competitivo, quem não possui as qualificações necessárias, simplesmente tem de aceitar trabalhos menos qualificados, cujos salários são menores.

É preciso destacar que os estudos promovidos pelo IPEA, ou nas estatísticas demonstradas pelos índices do IBGE, não objetivam demonstrar a existência de racismo, como ódio entre as raças, mas sim a existência de profundas desigualdades sociais entre negros e brancos. Nem a passagem do tempo, tampouco as políticas assistencialistas promovidas ao longo dos anos, pelos mais diferentes governos, conseguiram dar resposta satisfatória à necessidade de inclusão dos negros. Evidencia-se, assim, a exigência da formulação de políticas públicas ou privadas em que haja a opção consciente em relação à raça. Não bastam políticas assistencialistas, haja vista que são praticamente inexistentes os índices de melhora das condições dos negros em relação aos brancos ao longo dos anos. Por sua vez, é de se compreender que as estatísticas não são auto-explicáveis, de modo que os resultados podem ser elucidados a partir de causas diversas. O fato de os negros no Brasil ocuparem a base da pirâmide social, revelando uma inferioridade econômica em relação aos brancos, pode ter diversas interpretações possíveis, sendo o racismo apenas uma delas[42]. Desse modo, faz-se imperioso reconhecer a interferência também de fatores econômicos nessa tormentosa questão.

A par desse aspecto, é preciso ressaltar que a sociedade brasileira vem demonstrando avanços significativos na área do controle social no que tange ao combate à discriminação e ao resgate da auto-estima dos negros[43]. A conjunção desses fatores demonstra que a sociedade brasileira atingiu um nível de maturidade racial a ponto de praticamente não mais tolerar qualquer tipo de manifestações de preconceito ou de discriminação contra os negros, além de permitir que debates, como este que por ora se apresenta, da criação de políticas afirmativas para negros no Brasil, ocorram sem que haja transtornos sociais relevantes e separatistas.

A análise de programas afirmativos à luz dos princípios da igualdade e da proporcionalidade


O princípio da igualdade não funciona, em tese, como limitador à adoção de programas afirmativos. Entretanto, a constitucionalidade ou não de programas positivos não pode ser diagnosticada em abstrato, devendo ser analisada no caso concreto, a partir de cada medida específica. Em princípio, sabe-se que é próprio das normas estabelecerem critérios diferenciadores entre as pessoas, desde que a eleição de tais critérios seja justificável. O desafio de interpretar o alcance do princípio da igualdade reside justamente em impedir certas diferenciações que não possuem fundamento razoável e que, assim, transgrediriam a igualdade, por serem desproporcionais[44].

Para sabermos se, em determinado caso concreto, a política afirmativa adotada ofende ou não o princípio da isonomia, deve-se analisá-la sob a ótica da proporcionalidade. Nesse diapasão, o princípio da proporcionalidade funciona como princípio constitucional interpretativo, por oferecer subsídios para a melhor hermenêutica da Constituição, principalmente quando se estiver diante de delimitações ou restrições aos direitos constitucionalmente previstos[45].

Para que o critério a ser adotado na política afirmativa brasileira não fira o princípio da igualdade, deve passar pelo crivo da proporcionalidade, a partir da análise dos seus subprincípios. O primeiro deles seria o da conformidade ou da adequação dos meios (Geeingnetheit), por meio do qual se examinaria se o critério adotado seria apropriado para concretizar o objetivo visado, com vistas ao interesse público. Assim, para que atenda ao subprincípio da adequação, faz-se necessário que a política afirmativa a ser implementada seja adequada aos nossos próprios problemas raciais e não simples transposição de ações desenvolvidas para outra realidade. Por sua vez, para atender ao segundo subprincípio da proporcionalidade, é necessário que o critério afirmativo adotado seja exigível ou o estritamente necessário (Erforderlichkeit). Assim, não se deve extravasar os limites da consecução dos objetivos determinados, procurando sempre o meio menos gravoso para atingir a missão proposta. A partir dessa análise, o intérprete constitucional deve observar se, no caso, não existiriam outros meios menos lesivos que pudessem, da mesma forma, atingir os objetivos propostos, a um custo menor aos interesses dos demais indivíduos. Paulo Bonavides registra que esse cânon é também chamado de princípio da escolha do meio mais suave[46]. É de se ressaltar que o subprincípio da exigibilidade tem, praticamente, a mesma carga normativa do critério narrowly tailored — estreitamente desenhado — eleito pela Suprema Corte norte-americana como base para análise da constitucionalidade de qualquer programa afirmativo em que a raça seja um critério considerado.

Desse modo, a implementação de ações afirmativas para negros comprovadamente pobres atenderia ao objetivo visado, que é o de permitir o ingresso em estratos sociais sub-representados, e, por outro lado, constituir-se-ia em política melhor desenhada, porque mais específica, diminuindo, ainda que um pouco, a margem de pessoas reversamente discriminadas – os brancos pobres. Desse modo, as medidas seriam as mais limitadas possíveis, visando a atender ao objetivo de integração, porquanto não ampliariam o programa demasiadamente, para negros ricos ou de classe média alta.

O último subprincípio é o da proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit), também chamado de regra da ponderação. Procura-se, a partir dele, perquirir se os resultados obtidos pela política afirmativa seriam proporcionais à intervenção efetuada por meio de tais medidas. Parte-se para um juízo de ponderação entre os valores que estão em jogo: de um lado, a necessidade de programas afirmativos para integrar o negro, de outro lado, os demais cidadãos que não foram beneficiados com essas medidas.


Alertando sobre a problemática da intervenção estatal nos direitos fundamentais dos cidadãos, aduziu Robert Alexy: “Quanto mais grave é a intervenção em um direito fundamental, tanto mais graves devem ser as razões que a justifiquem”[47]. Assim, seria justificável um programa que beneficiasse negros ricos, por exemplo, em um País em que brancos pobres também não têm a igualdade de oportunidades? Acreditamos que não. Além do que, a união do critério racial com o social, traria maior legitimidade ao debate, na medida em que o programa receberia maior apoio popular, diminuindo os focos de tensões que a implementação dos programas afirmativos poderia gerar. E, de qualquer modo, se a maioria dos pobres são negros — 70% — apenas uma pequena parcela deles não estaria sujeita ao programa.

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[1]A observação desse fenômeno não é peculiar ao Brasil. Os argumentos usados por aqueles que escrevem sobre as ações afirmativas repetem-se de maneira tão estrondosa, mesmo nos Estados Unidos, que chegam a ser ridicularizados, conforme demonstra Gabriel Chin: “A literatura é, também, impressionantemente repetitiva. Os mesmos temas básicos são expostos repetidamente; os fatos do caso Bakke, por exemplo, foram recontados tantas vezes que Stephen King escreveu, no seu best-seller Christine, sobre um casal que ‘poderia contar capítulo e versículo sobre o caso Allan Bakke até adormecer’. Com a habilidade de inventar este tipo de história arrepiante, não é de se impressionar que King é conhecido como o mestre do horror”. Tradução livre. CHIN, Gabriel J. (1998:p. IX).


[2] O termo negro nesse trabalho é usado na maioria das vezes representando tanto a categoria racial preta, quanto a parda. Os momentos de diferenciação entre eles, quando acontecerem, serão explicitados no texto.

[3] Nesse sentido, bem afirmou Gilberto Freyre: “A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre os vencedores e os vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações — as dos brancos com as mulheres de cor — de ‘superiores’ com ‘inferiores’ e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro dessas circunstâncias e sobre essa base. A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala”. FREYRE, Gilberto. (2002: p. 46). Destaque-se que a tese de Freyre sobre a miscigenação, duramente criticada por tanto tempo, recentemente foi resgatada e assumida. O professor Sérgio Danilo Pena, da UFMG, e a sua equipe, realizaram pesquisa a propósito dos 500 anos do País na qual procuraram desvendar os mistérios da miscigenação brasileira. A conclusão não poderia ser diferente: somos um dos povos mais miscigenados do mundo. Assim falou o professor: "Os dados que obtivemos dão respaldo científico a essa noção [de miscigenação] e acrescentam um importante detalhe: a contribuição européia foi basicamente por meio de homens e a ameríndia e africana foi principalmente por meio de mulheres. A presença de 60% de matrilinhagens ameríndias e africanas em brasileiros brancos é inesperadamente alta e, por isso mesmo tem grande relevância social" Ver matéria em LEITE, Marcelo. (2000: p. 26 a 28).

[4] Com efeito, a história é pródiga em demonstrar que a cor não se constituiu, isoladamente, em fator impeditivo para a assunção de cargos públicos ou posições sociais de prestígio. Nessa linha, cite-se a Ordem de 1731, emanada por D. João V, que conferiu poderes ao Governador da Capitania de Pernambuco, Duarte Pereira, para que empossasse um mulato no cargo de Procurador da Coroa, de grande prestígio à época, afirmando que a cor não lhe servia como um impedimento para exercer tal função. E destaque-se que tal determinação ocorreu 157 anos antes da abolição da escravatura. Diversos são os exemplos a apontar a presença de negros nas classes sociais mais elevadas, como Henrique Dias, o Conselheiro Rebouças, Luís Gama, José do Patrocínio, Machado de Assis, Cruz e Souza. Perdigão Malheiro, ao mencionar tal fato, em obra publicada em 1867, já fazia a distinção entre o preconceito praticado no Brasil e o dos Estados Unidos. Afirmou: “Ali [nos Estados Unidos] a questão não era só de escravidão, era também de raça; questão esta que no Brasil não é tomada em consideração pelas leis, e também pelos costumes. Ser de cor, provir mesmo de Africano negro, não é razão para não ser alguém, no nosso país, admitido nas sociedades, nas famílias, nos veículos públicos, em certos lugares nas igrejas, aos empregos, etc.; longe disto, o homem de cor goza no Império de tanta consideração como qualquer outro que a possa ter igual; alguns têm até ocupado e ocupam os mais altos cargos do Estado, na governança, no Conselho de Estado, no Senado, na Câmara dos Deputados, no Corpo Diplomático, enfim, em todos os empregos; outros têm sido e são distintos médicos, advogados, professores ilustres das ciências mais elevadas; enfim, todo o campo da aplicação da atividade humana lhes é, entre nós, inteiramente franco e livre”. PERDIGÃO MALHEIRO, Agostinho Marques. (1867: p. 124). Assim, pode-se afirmar que nos causa certo espanto a atribuição conferida a Gilberto Freyre de ter criado o mito da democracia racial no Brasil, em Casa-Grande & Senzala. Perdigão Malheiro já o havia sugerido, com pelo menos 60 anos de antecedência!

[5] Com efeito, nos estados do Mississipi, no Alabama e em Maryland, a concessão da liberdade aos escravos por meio de testamento era nula; na Geórgia, lei de 1818 impunha uma multa de mil dólares ao senhor que tentasse conceder a liberdade ao escravo. Na Carolina do Norte, norma de 1830 previa que o senhor que quisesse conceder a liberdade ao escravo deveria primeiro fazer um seguro de mil dólares contra atos de vadiagem que este viesse a praticar. Além disso, o ex-escravo deveria deixar imediatamente o estado e nunca mais voltar. No Tennessee, para que o escravo fosse considerado livre, era preciso que se lhe nomeasse um fiador, além do consentimento do Tribunal estadual e da expulsão do negro do estado. Na Virgínia, em 1691, determinou-se que nenhum negro poderia ser liberto, ao menos que se lhe pagasse o transporte para outro país. No mesmo estado, lei de 1782 determinou a nulidade de qualquer tipo de libertação voluntária dos escravos e, em 1793, proibiu-se o ingresso na Virgínia de negros livres. Os que lá residiam, antes da proibição, foram expulsos, e, acaso permanecessem, seriam novamente submetidos à escravidão. No estado do Mississipi, lei de 1831 determinou que todos os negros livres com mais de 16 e menos de 60 anos deveriam deixar o estado, exceto se pudessem obter um certificado de boa conduta a ser apresentado pelos Tribunais do Condado. Nesse sentido, ver em TANNENBAUM, Frank. (1992: p. 70 e ss).


[6] Entre 1882 a 1903, mais de dois mil negros morreram linchados, sendo que, somente em 1890, foram quase 200 execuções. As autoridades públicas do país não procederam às punições cabíveis. Explodiram movimentos extremistas organizados contra os negros, como o Conselho dos Cidadãos Brancos e a Ku Klux Klan – que chegou a angariar quase cinco milhões de membros nos Estados Unidos, na década de 20, dentre os quais Presidentes da República, governadores, prefeitos, senadores, e outras autoridades.

[7] Como afirma o historiador norte-americano Chin: “Para muitos americanos, desde o hospital onde nasceram até o cemitério onde foram enterrados, todas as principais instituições sociais eram rigidamente segregadas pela raça”. Tradução livre. CHIN, Gabriel J. (1998: p. XV)

[8] Por oportuno, podemos citar a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, os Mulçumanos negros, a Associação de Melhoramentos de Montgomery, a Comissão Estudantil de Coordenação Não-Violenta, o Congresso de Igualdade Racial, as Panteras Negras, dentre outras.

[9]Como se observa dos textos das Ordens Executivas nº 10.925 e 11.246, os governos de Kennedy e Johnson não iniciaram as ações afirmativas conforme as entendemos hoje. Originalmente, o conceito de ação afirmativa significava uma política institucionalizada de combate à discriminação e não medidas de inclusão propriamente ditas. É que, à época, acreditava-se que o simples fato de o governo deixar de apoiar a discriminação, em uma sociedade desenvolvida sob os auspícios do sistema segregacionista, já sinalizava vultosos ganhos para a comunidade negra.

[10] Refresquemos a memória para os fatos: em 1963, a explosão de uma bomba em uma Igreja Batista matou 4 crianças negras. Kennedy, primeiro defensor de políticas para negros, morreu brutalmente assassinado no mesmo ano; em 1964, eclodiu enorme onda de violência contra os negros, principalmente no norte dos Estados Unidos, o que levou James Farmer, Diretor Nacional do Congresso Nacional de Igualdade Racial a liderar manifestação para sensibilizar a opinião pública. O resultado, todavia, foi a sua prisão, com mais 293 pessoas. Ao ser libertado, entretanto, lançou a ameaça de que aquele seria o maior e mais quente verão que o país já tivera, e complementou: “Agora é o tempo do ódio”. Sobre a violência e a magnitude que havia tomado conta das ruas dos Estados Unidos na década de 60, Skrentny afirmou: “Assim era vida em meados da década de 60 na América urbana. As violências pretas misteriosas continuaram explodindo em centenas de cidades pela América, aparentemente ao acaso. Doug McAdam, em um dos poucos estudos do movimento de direitos civis que vão além da legislação promulgada em 1964 e em 1965, contou 290 ‘explosões hostis’ no período de 1966 a 1968. 169 pessoas foram assassinadas na violência, 7.000 ficaram feridas, e mais de 40.000 foram presas. E esta projeção é conservadora. A Câmara de Compensação sobre a Desordem Civil na Universidade de Brandeis registrou 233 desordens somente em 1967, e 295 desordens nos primeiros quatro meses de 1968. McAdam afirma que ‘não seria um exagero sustentar que o nível de desafio aberto para a ordem econômica e política estabelecidas foi maior durante este período do que em qualquer outro da história desse país, salvo a Guerra Civil”. SKRENTNY, John David. (1996: p. 71).

[11] Tradução livre: “A Segunda Guerra Civil — Armando-se para o final dos tempos”.


[12] Afirmou Rosenfeld: “Uma vez que o Estado havia praticado a segregação racial, um mero retorno à política cega à cor, todavia, não seria suficiente para conduzir à integração”.Tradução livre.ROSENFELD, Michel.(1991:p.163).

[13] Assim justificava Nixon a concessão de algumas vantagens para os negros: “Pessoas que possuírem as próprias casas não irão incendiar a nossa vizinhança”. Tradução livre. Apud SKRENTNY, John David. (1996: p. 101). Na esfera judicial, quatorze anos após a célebre decisão do caso Brown v. Board of Education (1954), que havia posto fim à doutrina do iguais, mas separados, a Suprema Corte ainda discutia a velocidade com que a extinção da política segregacionista deveria ser colocada em prática. Na verdade, ínfimo havia sido o progresso social diante da decisão do caso Brown, pois muitos governantes simplesmente se recusaram a extinguir o modelo segregacionista.

[14] Nessa linha, afirma Skrentny: “Embora grupos de direitos civis e afro-americanos possam ter apoiado ações afirmativas como medidas preferenciais de direitos civis desde, pelo menos, a década de setenta, a política [de ações afirmativas] foi largamente uma construção da elite branca masculina, a qual tradicionalmente tem dominado o governo e os negócios”. Tradução livre. SKRENTNY, John David. (1996: p. 5).

[15] Não deixa de ser outra ironia o fato de as ações afirmativas terem sido implementadas por aquele que era conhecido como o inimigo dos Direitos Civis. Nixon era tão criticado pelos liberais que o cientista político Charles Hamilton escreveu um ensaio intitulado “O que Nixon está fazendo conosco?” no qual enumerou as traições do governante, por ter enfraquecido a Lei dos Direitos de Voto, recusado ajuda aos movimentos urbanos e declinado apoio aos movimentos civis. Apud SKRENTNY, John David. (1996: p. 178).

[16] Como exemplo, poderíamos citar lei de 1996, do Estado da Califórnia, por meio da qual se determinou que nenhuma instituição estadual poderia discriminar ou garantir preferências para qualquer indivíduo, tomando por base raça, sexo, cor, grupo étnico ou origem nacional, em setores públicos como empregos, educação ou contratos. Medida similar também foi adotada por Washington, em 1998, e em outros estados norte-americanos. Ver mais em DWORKIN, Ronald. Op. cit. p. 386. Como afirma Skrentny: "Uma análise recente das atitudes públicas em relação às ações afirmativas demonstrou que a opinião pública vai além de rejeitá-las simplesmente. A essência da idéia de preferência racial teve um efeito negativo nas atitudes de americanos brancos relativas aos pretos, parecendo provocar uma antipatia generalizada". Tradução livre. SKRENTNY, John David. (1996: p. 5).

[17] Nessa óptica, compartilhamos as observações realizadas pelo sociólogo Jessé Souza, quando afirma: “Duas pressuposições, altamente duvidosas, são implicitamente assumidas nesse movimento. Primeiro, que os Estados Unidos são um modelo cultural acima de ambigüidades e crítica. Segundo, que não existem peculiaridades no Brasil que possibilitem pensar um modelo cultural que, embora tributário da mesma herança ocidental que possibilita a democracia política e a autonomia moral individual, seja visto como um desenvolvimento alternativo ao americano, com as perdas e ganhos que toda escolha cultural envolve”. SOUZA, Jessé. (1997: p. 24).


[18] Nesse sentido, Fiscus: “Mais especificamente, há duas objeções relacionadas ao argumento da justiça compensatória para as ações afirmativas. Elas são fundamentadas nos princípios complementares de que a compensação deveria ser paga à pessoa prejudicada e de que deveria ser pago por aquele que ocasionou o dano. Programas de ações afirmativas baseados na justiça compensatória podem fracassar, pelo primeiro princípio, de várias maneiras (…). Sustentar que os descendentes de milhões de pretos lesionados ao longo de nossa história têm direito à compensação, pelo prejuízo ocasionado aos seus ancestrais em um passado longínquo, é violar o primeiro princípio da justiça compensatória, que os sujeitos da compensação sejam aqueles prejudicados”. FISCUS, Ronald J. (1992: p. 9 e 10).

[19] Nessa linha, bem adverte Fiscus: “Que os programas de ações afirmativas freqüentemente foram justificados em termos de justiça compensatória é um fato extremamente infeliz. Essa justificativa é problemática, nestes casos, e suas vulnerabilidades foram agarradas pelos críticos — inclusive, e talvez de modo mais importante, pelos Justices da Suprema Corte — para desacreditar as ações afirmativas. Argumentos de justiça compensatória, no contexto das ações afirmativas, vão de encontro à nossa forte e arraigada oposição geral às responsabilidades de grupo e aos direitos de um grupo — castigando ou recompensando um indivíduo simplesmente porque ele ou ela pertence a um determinado grupo”. Tradução livre. FISCUS, Ronald J. (1992: p. 9).

[20] Assim confirma Fiscus: “De maneira simplificada, para nossa proposta, a justiça distributiva, como uma questão de igual proteção, é a exigência que um indivíduo ou grupo possui quanto aos benefícios, vantagens e posições que teriam conseguido, acaso estivessem sob condições justas — condições estas identificadas aqui como a ausência de discriminação odiosa”. Tradução livre. FISCUS, Ronald J. (1992: p. 8).

[21] Um dos principais defensores dessa linha de argumentação é o jusfilósofo Ronald Dworkin. O autor, justificando o argumento da diversidade no corpo estudantil ¾ e combatendo as críticas segundo as quais se acreditava que para promover efetivamente a diversidade, seria melhor escolher os estudantes negros pobres, ou então os que possuíssem características culturais específicas, a ter de admitir negros ricos que tivessem hábitos parecidos aos dos brancos, por tais não propiciarem verdadeiro espaço multicultural ¾ afirma que o maior benefício da mistura entre as raças é justamente o de atenuar o ódio racial nos Estados Unidos. Alega: “Essa objeção perde o aspecto da diversidade posto em questão, que não é o que a raça poderia ou não demonstrar, mas a raça em si. Infelizmente, os piores estereótipos, suspeitas, medos e ódios que ainda envenenam a América, são codificados pela cor, e não pela classe ou pela cultura. É crucial que negros e brancos passem a se conhecer, e a melhor apreciarem-se uns aos outros”. Tradução livre. DWORKIN, Ronald. (2000: p. 403). Ora, será que tais argumentos podem ser aplicados à situação brasileira?

[22] A tese de que as políticas afirmativas deveriam ser impostas para efetivar um ambiente multicultural encontra opositores até mesmo nos líderes de esquerda, que, certamente, não poderão ser tachados de conservadores. Nessa linha, Aldo Rebelo, analisando a importação de modelos norte-americanos para a nossa realidade, afirmou: “Os ensaios de Gilberto Freyre nos servem ainda hoje de frondosa vassoura de piaçaba para tanger do nosso terreiro o lixo ideológico que, na forma de multiculturalismo, ensandece a cabeça dos que tentam aportar no Brasil com modelos norte-americanos de combate ao racismo”. REBELO, Aldo. (2000: 29).


[23] Nesse sentido, afirmaram Nowack e Rotunda: “No julgamento da constitucionalidade de programas positivos, uma distinção precisa ser extraída dentre as duas formas básicas de ação afirmativa. Pode-se fixar uma cota, por meio da qual se reserve um número específico de lugares para os representantes das minorias, e um número específico para os demais. Alternativamente, podem ser fixados padrões separados de tratamento, por meio dos quais se conceda um tratamento preferencial a minorias, sem para tanto ser necessário o uso de uma cota”. E, assim, concluíram: “Programas de cota são difíceis, se não impossíveis, de defender. Quando o governo distribui benefícios sob um sistema de cotas rígido, desconsidera totalmente as circunstâncias individuais, e, além disso, sobrecarrega os membros das raças minoritárias”. Tradução livre. NOWACK, John E.; ROTUNDA, Ronald D. (1995:p. 694).

[24] Nesse sentido, George Reid Andrews advertiu que a instituição de ações afirmativas nos Estados Unidos aumentou ainda mais o racismo contra os negros. E assim afirma “Pesquisas indicam que a mera menção às ações afirmativas pode provocar a expressão de atitudes e comportamentos mais racistas entre os brancos do que na ausência de uma menção de tais programas”. A conseqüência de tal fato, no sistema norte-americano, foi a vitória de candidatos republicanos, conservadores e contrários à adoção das políticas positivas, nas campanhas eleitorais de 1980 e 1990. E o resultado dessas vitórias foi a redução não somente de programas afirmativos, mas também a diminuição do empenho do governo federal com as políticas sociais como um todo. Alfim, conclui o autor que os ônus das políticas positivas foram demasiadamente elevados, enfatizando, sobretudo, que as medidas beneficiaram especificamente a classe média negra norte-americana: “As conquistas da classe média negra nos anos de 1970 e 1980 exigiram um custo muito alto, na forma do agravamento dos conflitos e tensões raciais no país”, deixando à margem do programa justamente aqueles que deles mais precisavam: os negros pobres. Ver em ANDREWS, George Reid. (1997:p. 139).

[25] CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca.(2003: p. 37).

[26] PENA, Sérgio et. al. (2000: p. 17-25).

[27] CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca.(2003: p. 52).

[28] Sobre o tema, destaquem-se as considerações feitas pelo professor Kevin Boyle: BOYLE, Kevin. (2001:p. 490). Tradução livre: “Reconhecemos hoje que a classificação biológica de seres humanos em raças e hierarquias raciais — no topo da qual obviamente estaria a raça branca — era produto da pseudociência do século XIX. No momento em que nós mapeamos o genoma humano, prodigiosa pesquisa que envolveu o uso de material genético de todos os grupos étnicos, sabemos que só há uma raça — a raça humana. Diferenças humanas em aspectos físicos, cor da pele, etnias e identidades culturais não são baseadas em atributos biológicos. Aliás, a nova linguagem dos mais sofisticados racistas abandona qualquer fundamento biológico em seus discursos. Eles agora enfatizam supostas diferenças culturais irreconciliáveis como justificativa para seus pontos de vista extremistas”.

[29] O critério adotado nos Estados Unidos muitas vezes causa confusão e perplexidade para terceiros. O professor de sociologia da Universidade de Illinois, James Davis, conta-nos a história de uma candidata negra ao concurso de Miss América. Durante muito tempo, as negras não puderam se candidatar, mas na década de 80 essa restrição foi retirada. Em 1984, a candidata Vanessa Williams, considerada negra pela regra do one drop rule, mas branca na aparência, ganhou o concurso e foi intitulada como a primeira negra norte-americana a se tornar Miss América. Tal fato despertou certa comoção nacional, porque ninguém acreditava que ela realmente fosse negra. A situação ficou tão constrangedora que os organizadores do concurso, para tentar legitimar o slogan de a primeira negra a vencer o Miss América, anularam a vitória de Vanessa, alegando que ela havia posado para fotos sensuais antes do concurso, e elegeram a segunda colocada como vencedora, Suzette Charles, que, aparentemente, era um pouco mais negra do que Vanessa. Ver em DAVIS, F. James. (2001: p. 2). Outros casos são contados pelo professor, como o do líder do movimento negro, Reverendo Adam Clayton Powell Jr., que era loiro, dos olhos azuis e de nariz aquilino. O Reverendo Powell chegou a liderar uma marcha de 6.000 pessoas até a Prefeitura de Nova Iorque, mas, dentro da organização, era visto com certa desconfiança. Por outro lado, as atrizes negras pela regra da ascendência, mas brancas na aparência, viviam um verdadeiro dilema, nos Estados Unidos, haja vista a determinação de que não poderiam interpretar brancas — estariam ofendendo o sistema Jim Crow. Todavia, somente conseguiam papéis como negras se tivessem de pintar a pele, para que aparentassem uma cor que não possuíam. Uma das artistas que sofreu os ônus desse sistema foi Lena Horne, atriz e cantora norte-americana da década de 60. Os pais de Lena eram muito brancos, assim como ela. A aplicação da regra do one drop rule fez com ela fosse considerada negra por causa da sua tataravó materna, que era uma negra vinda de Angola. Lena ingressou em uma escola para negros, mas, a todo o tempo, sofria discriminações. Os negros a chamavam de yellow bastard — bastarda amarela. James Davis conta que a atriz logo cedo aprendeu que: “Ter uma pele clara implica ilegitimidade, e, aliado a pais que pertençam à classe social mais baixa, significava uma vergonha na comunidade negra”. Tradução livre. DAVIS, F. James. (2001: p. 3).


[30] Nesses termos, de extraordinária clareza são os esclarecimentos do professor Carl Degler sobre o critério birracial. Em capítulo intitulado Quem é negro?, explica como o critério é aplicado nos Estados Unidos: “Até agora a palavra Negro tem sido usada sem definição, e, todavia, a fonte mais fértil de confusão, senão de erro, na comparação das relações raciais entre os Estados Unidos e o Brasil é que o conceito de negro difere nos dois países. Historicamente, nos Estados Unidos, qualquer pessoa com ancestrais negros seria considerada negra, ainda que parecesse branca. Nos dias da escravidão e enquanto perdurou a segregação legal, um negro era definido por lei e pelos costumes como qualquer um que tivesse uma certa quantidade de ascendência negra — aproximadamente um oitavo. Mas já ocorreram casos no século XX em que qualquer quantidade de sangue negro levaria a que a pessoa fosse considerada, legalmente, como negra. Assim, um estatuto na Virgínia, elaborado em 1924 visando à votação de uma lei antimiscigenação, definia como branca ‘… a pessoa que não tenha qualquer traço de sangue que não seja caucasiano; mas pessoas que tenham um-dezesseis avos ou menos de sangue índio americano e nenhum outro sangue não-caucasiano seja serão consideradas pessoas brancas’. Como a aparência não decidia o assunto, pessoas de olhos azuis, pele clara e cabelos claros ou loiros, como Walter White, durante muitos anos dirigente da NAACP, podiam ser consideradas negras. O simples fato de White reconhecer sua ascendência negra, a despeito de sua aparência, tornava-o negro. Também por causa dessa definição, brancos poderiam, de repente, tornarem-se ‘Negros’, como aconteceu não somente em obras de ficção, como Kingsblood Royal, de Sinclair Lewis, mas também na vida real. Por essa definição genética ou biológica, milhares de negros também ‘passam’ para o mundo dos brancos, a cada ano, lá permanecendo enquanto desejarem, ou conseguirem manter o seu segredo. Historicamente, palavras como mulato, quadroon ou octorron nos Estados Unidos — todas elas descrevendo diferentes graus de ascendência negra — já foram usadas. Mas, na verdade, elas são apenas descritivas, não implicam qualquer significado social ou legal. Há apenas duas qualidades no padrão racial dos Estados Unidos: branco e preto — o indivíduo ou é um ou outro, não há posição intermediária”. Tradução livre. DEGLER, Carl. (1986: p. 101 e 102).

[31] Roberto Da Matta conta uma história interessante que aconteceu nos Estados Unidos, em 1968, na Universidade de Harvard, quando estava cursando o doutorado em antropologia. Carente de contatos com a pátria, ao saber da visita de um grupo de estudantes brasileiros, foi direto ao local em que se realizaria uma reunião, com a temática dos movimentos negros. Após o discurso dos norte-americanos, que enfatizaram as conquistas realizadas pelos negros nos Estados Unidos, os estudantes brasileiros iniciaram uma série de perguntas provocativas, em que ressaltaram que as modificações não afetaram a estrutura do capitalismo, que permanecia calcada na exploração do trabalho. Os brasileiros acreditavam que era preciso mudar o sistema, por meio de uma revolução. Após tal impasse ideológico, os palestrantes estadunidenses resolveram endurecer, e falaram: “Curioso que vocês cobrem tanto do nosso sistema. O fato é que estamos trabalhando com o que podemos, para mudar as relações raciais aqui. Vocês, que se dizem uma democracia racial, são muito piores, em termos práticos. Pois vejam só: no meio de mais ou menos oitenta estudantes brasileiros, eu vejo apenas sete ou oito negros. A grande maioria é branca. Onde está a tal ‘democracia racial’ de vocês?”. Da Matta destaca que, alfim do encontro, o que mais havia chocado os brasileiros era saber, dentre a comitiva, quem eram os sete ou oito negros a que os estudantes norte-americanos haviam se referido porque, na contagem deles, somente haveria um ou dois. DA MATTA, Roberto. (1997: p. 71). Também Antônio Guimarães preocupa-se com a definição de quem pode vir a ser considerado negro no Brasil. Afirma: “A questão que se levanta não é superficial. Se não se pode definir formalmente, sem margem a dúvidas, o beneficiário de uma política pública, então sua eficácia será nula”. GUIMARÃES, Antônio. (1997:p.240).


[32] Thomas Skidmore atenta para esse problema, e afirma: “Em suma, o Brasil é multirracial, não birracial. Isso torna as relações raciais mais complexas do que nos Estados Unidos, e mais complexas do que a maioria dos europeus imagina”. SKIDMORE, Thomas. (2001: p. 152). Também em SKIDMORE, Thomas. (1992: p. 1).

[33] A larga utilização do termo afro-descendente, atualmente, no Brasil, significa mais uma cópia subserviente desta mentalidade de colônia que, muitas vezes, nos é peculiar. Enquanto preto, pardo e negro têm uma acepção morfológica ligada à cor e ao fenótipo do indivíduo, o conceito de afro-descendente revela um sentido de ancestralidade, a perquirir a origem da pessoa, tal qual o modelo birracial norte-americano, do one drop rule.

[34] Não se pode deixar de reconhecer que essa amostra divulga um verdadeiro tratado de antropologia nacional. Observe-se a lista de cores que os brasileiros se classificaram: Acastanhada, Agalegada, Alva, Alva-escura, Alvarenta, Alvarinta, Alva-rosada, Alvinha, Amarela, Amarelada, Amarela-queimada, Amarelosa, Amorenada, Avermelhada, Azul, Azul-marinho, Baiano, Bem-branca, Bem-clara, Bem-morena, Branca, Branca-avermelhada, Branca-melada, Branca-morena, Branca-pálida, Branca-queimada, Branca-sardenta, Branca-suja, Branquiça, Branquinha, Bronze, Bronzeada, Bugrezinha-escura, Burro-quando-foge, Cablocla, Cabo-verde, Café, Café-com-leite, Canela, Canelada, Cardão, Castanha, Castanha-clara, Castanha-escura, Chocolate, Clara, Clarinha, Cobre, Corada, Cor-de-café, Cor-de-canela, Cor-de-cuia, Cor-de-leite, Cor-de-ouro, Cor-de-rosa, Cor-firma, Crioula, Encerada, Enxofrada, Esbranquecimento, Escura, Escurinha, Fogoio, Galega, Galegada, Jambo, Laranja, Lilás, Loira, Loira-Clara, Loura, Lourinha, Malaia, Marinheira, Marrom, Meio-amarela, Meio-branca, Meio-morena, Meio-preta, Melada, Mestiça, Miscigenação, Mista, Morena, Morena-bem-chegada, Morena-bronzeada, Morena-canelada, Morena-castanha, Morena-clara, Morena-cor-de-canela, Morena-jambo, Morenada, Morena-escura, Morena-fechada, Morenão, Morena-parda, Morena-roxa, Morena-ruiva, Morena-trigueira, Moreninha, Mulata, Mulatinha, Negra, Negrota, Pálida, Paraíba, Parda, Parda-clara, Polaca, Pouco-clara, Pouco-morena, Preta, Pretinha, Puxa-para-branca, Quase-negra, Queimada, Queimada-de-praia, Queimada-de-sol, Regular, Retinta, Rosa, Rosada, Rosa-queimada, Roxa, Ruiva, Russo, Sapecada, Sarará, Saraúba, Tostada, Trigo, Trigueira, Turva, Verde, Vermelha. Nesse sentido, ver em VENTURI, Gustavo; TURRA, Cleusa. (1995:p. 33 e 34).

[35] Carlos Hasenbalg já chamara a atenção para esse problema, em seminário realizado sobre as ações afirmativas: “As experiências de ações afirmativas até agora desenvolvidas em outras partes do mundo se deram em países em que as fronteiras ou divisas entre grupos étnicos e raciais estão claramente definidas. Esse não parece ser o caso do Brasil. Nos últimos vinte anos, cientistas sociais que estudam as relações raciais no país, entre os quais me incluo, bem como militantes do movimento negro, têm usado sistemas de classificação racial dicotômicos: brancos/negro ou branco/não-branco. Ao mesmo tempo, pesquisas como o PNAD-1976 e a mais recente da Folha de São Paulo, em 1995, surpreendem pela variedade de termos usados pela população para identificar-se em matéria de cor ou raça. Esta é uma das ambigüidades do sistema racial do Brasil e dos demais países da América Latina que deve ser encarada na hora de estabelecer o conjunto de regras que permita identificar quais são os indivíduos ou grupos que podem beneficiar-se com os programas de ação afirmativa”. HASENBALG, Carlos. (1997: p. 67.).

[36] A experiência das cotas na UERJ demonstrou que muitas pessoas, que se consideravam brancas, declararam-se negras para concorrer às vagas destinadas aos negros. Reportagens publicadas à época trouxeram depoimentos de alunos brancos que confirmaram ter agido de má-fé. Semelhante problema também foi identificado com a imposição de cotas na UnB, onde houve inúmeras fraudes – candidatos que sempre se classificaram como brancos, após meses de sol intenso, passaram a se classificar como negros apenas para tentar pleitear vagas por meio das cotas.


[37] O percentual de indígenas, por ser muito baixo e somente ter ingressado no sistema de classificação racial em 1991, foi desconsiderado.

[38] Nesse sentido é o pensamento de Marvin Harris, quando afirma que o verdadeiro dilema no Brasil não é somente o racial, mas também o econômico. E aduz: “Um brasileiro nunca é simplesmente um ‘homem branco’ ou um ‘homem de cor’; ele é um rico, bem educado homem branco, ou um pobre, ignorante homem de cor; um rico, bem educado homem de cor ou um pobre, ignorante branco. O resultado dessa qualificação de raça por educação e nível econômico determina a identidade de classe à que o indivíduo pertence. É a classe à que ele pertence e não a raça que determina a adoção de atitudes subordinadas ou superiores entre os indivíduos específicos nas relações face a face. É a classe que determina quem vai poder entrar em determinado hotel, restaurante ou clube social; quem receberá o tratamento preferencial nas lojas, igrejas, clubes noturnos e nos meios de transporte. (…). A cor é um dos critérios para identidade racial, mas não o único”. Tradução livre. HARRIS, Marvin. (1974: p. 60 e 61).

[39] Nessa linha, o pensamento de Marvin Harris, antropólogo norte-americano que estudou as relações raciais no Brasil: “Um Negro é qualquer um dos seguintes: Um branco miserável; um mulato miserável; um mulato pobre; um negro miserável; um negro pobre; um negro classe média. Um Branco é qualquer um dos seguintes: Um branco rico; um branco classe média; um branco pobre; um mulato rico; um mulato classe média; um negro rico”. Tradução livre. HARRIS, Marvin. (1952: p. 72). Como também já previu Roberto Da Matta, em relação ao Brasil: “a raça (ou a cor da pele, o tipo de cabelo, de lábios, do próprio corpo como um todo etc.) não é o elemento exclusivo na classificação social da pessoa. Existem outros critérios que podem nuançar e modificar essa classificação pelas características físicas (que são definidas culturalmente). Assim, por exemplo, o dinheiro ou o poder político permitem classificar um preto como mulato ou até mesmo como branco”. DA MATTA, Roberto. (1987: p. 81).

[40] Ao prefaciar livro, Peter Fry explica que existem três idéias básicas sobre as relações raciais brasileiras: “1)é impossível compreender as relações raciais no Brasil sem levar em consideração as relações de classe; 2)a taxinomia racial no Brasil é extremamente complexa, senão ambígua, e o processo de classificação dos membros da sociedade se dá não só segundo sua aparência física, mas também segundo sua posição de classe; e 3)apesar da existência de uma ideologia de ‘democracia racial’, há uma correlação entre raça e classe social, os mais escuros sendo os mais pobres”. In: MAGGIE, Yvonne; REZENDE, Cláudia Barcellos. (2002: p. 8). Dados do PNAD/IBGE demonstram que aproximadamente 70% dos indigentes no Brasil são negros, e, dentre os pobres, a proporção de negros é de 64%. A média da renda dos negros é de 2,2 salários mínimos, enquanto a dos brancos é de 4,5 mínimos. Entre as pessoas mais ricas do país, há nove brancos para cada negro. Como, então, se poderia desvincular o critério econômico como um fator relevante a ser levado em consideração nas políticas afirmativas? A sub-representatividade dos negros brasileiros está diretamente relacionada às profissões nas quais se faz necessário maior investimento financeiro, seja pelo alto valor das mensalidades cobradas nas universidades, seja pelos gastos com o material utilizado na profissão — dentistas, médicos, veterinários — seja na aquisição de livros — juristas, médicos, engenheiros. A representação dos negros (considerados neste estudo tanto os pretos como os pardos) no ensino superior é de aproximadamente 21% dos estudantes. A representação no curso de Odontologia é inferior a 10%, em Medicina é inferior a 15%, em Medicina Veterinária também inferior a 10%. Já no curso de História, a representação é de aproximadamente 38%, no curso de Letras, aproximadamente 29%, no de Matemática, 33%. O que se pretende demonstrar é que nos cursos que requerem maior disponibilidade de recursos, por envolverem custos mais altos, com a utilização de material a ser adquirido pelo aluno, a representação do negro é menor. Já nos cursos mais teóricos, em que os alunos não precisam de equipamentos sofisticados, além dos livros, há uma maior representatividade dos negros. A exceção parece ficar por conta do curso de Direito, que é eminentemente teórico, mas a concorrência muito alta termina por afastar a população menos preparada. A representação negra no curso de Direito fica em torno de 14%. Os dados são do Provão, de 2002.


[41] Mesmo assim, trazemos os dados do IBGE, na Síntese dos Indicadores Sociais de 2002: da classe que possuía até 4 anos de estudo para a que contava com 5 a 8 anos de estudo, o rendimento-hora elevava-se em até 31,6%. Já a diferença desta classe para a que possuía entre 9 a 11 anos de estudo era de 56% e desta para a classe que contava com mais de 12 anos de estudo, a variação de renda era de 189,7%.

[42] Nesse sentido, é exemplar a lucidez do argumento de Lynn Walker Huntley, ao prefaciar livro sobre o racismo no Brasil: “Seria um simplismo analisar a desigualdade racial e a concentração de pobreza como tendo uma ou outra raiz, ou seja, como uma questão apenas de cor, ou apenas de classe. No mundo real, tanto a questão de classe como a questão racial, como também outros fatores — momento, relação familiar, o fator sorte, o fator geográfico, interesse, talento, momento econômico, etc. —, interagem para criar as oportunidades de vida de cada um. Todos nós temos uma identidade de múltiplos aspectos e todos esses aspectos têm influência sobre nossas vidas”. Também já afirmou Florestan Fernandes, “o ‘dilema racial brasileiro’ reside mais no desequilíbrio existente entre a estratificação racial e a ordem social vigente, que em influências etnocêntricas específicas e irredutíveis” HUNTLEY, Lynn; GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. (2000: p. 13). FERNANDES, Florestan. (1977: p. 124 e 125).

[43] Com efeito, diversas medidas favoráveis à integração do negro poderiam ser citadas, como a criação de delegacias especializadas contra o racismo, a demonstração de rigor na realização e na aplicação das leis para punir condutas discriminatórias, o surgimento da Secretaria especial de políticas e promoção da igualdade racial, em nível de Ministério. Atualmente, inúmeras são as palestras, seminários e conferências sobre o tema; criou-se a universidade Zumbi dos Palmares, especificamente destinada aos negros, com dotações públicas e particulares, também houve a elevação de Zumbi à categoria dos heróis da pátria, cujo nome repousa no panteão da praça dos três poderes, em Brasília, a transformação do dia 20 de novembro no dia da consciência negra, a determinação de que o estudo da História da África e dos Negros deve ser ministrado no ensino fundamental e médio.

[44] Nesse sentido, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello é bastante precisa: “Se o tratamento diverso outorgado a uns for justificável, por existir ‘correlação lógica’ entre o fator de discrímen tomado em conta e o regramento que lhe deu, a norma ou a conduta são compatíveis com o princípio da igualdade; se pelo contrário, inexistir esta relação de congruência lógica ou — o que ainda seria mais flagrante — se nem ao menos houvesse um fator de discrímen identificável, a norma ou a conduta serão incompatíveis com o princípio da igualdade”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. (1993: p. 81 e 82).

[45] Acompanhamos o professor Gilmar Mendes, quando este afirma: “A doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade”. MENDES, Gilmar Ferreira. (1998: p. 68). Ver ainda BONAVIDES, Paulo. (2001: p. 386 e 387).

[46] BONAVIDES, Paulo. (2001: p. 361).

[47] ALEXY, Robert. (1999: p. 78).

Autores

  • Brave

    é procuradora do Distrito Federal, professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo na Escola da Magistratura do DF e no Instituto de Direito Público. É autora do livro Ações Afirmativas à Brasileira: necessidade ou mito? Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil, lançado pela Livraria dos Advogados.

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