Laxismo penal

Lei de drogas beneficia usuário e prejudica sociedade

Autor

2 de julho de 2007, 0h00

Laxismo penal é a tendência a propor solução absolutória, mesmo quando as evidências do processo apontem na direção oposta, ou a aplicação de punição benevolente, desproporcionada à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do infrator. Tudo sob o pretexto de que, vítima do esgarçamento do tecido social ou de relações familiares deterioradas, o delinqüente se sujeita, quando muito, à reprimenda simbólica, desconsiderando, absolutamente, o livre-arbítrio na etiologia do fenômeno transgressivo.

A nova Lei de Drogas (Lei 11.343), que entrou em vigor em 8 de outubro de 2006, trouxe profundas modificações em relação às que a antecederam no trato do mesmo assunto. Ressaltem-se duas. A primeira é a eliminação da pena de prisão para ao usuário/dependente, ou seja, quem tem posse de droga para consumo pessoal (artigo 28, caput), bem como para aquele que, com o mesmo propósito, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica (parágrafo 1º, do artigo 28). A segunda trata da distinção entre o chamado traficante profissional e o eventual, tendo, este último, com a nova legislação, direito subjetivo a uma sensível redução de pena (parágrafo 4º, do artigo 33).

No contexto do artigo 28 do diploma legal ora em comento, mister se faz distinguir, prontamente, o usuário do dependente de drogas, com intuito de se descobrir qual medida alternativa será mais adequada em cada caso concreto: advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

É cediço que nem sempre o usuário torna-se dependente. Aliás, em regra, o usuário de droga não se converte em um dependente, da mesma maneira que não se confunde com o traficante ou com o financiador do tráfico. Assim como nem todos que tomam um copo de uísque são alcoólatras, também há quem use drogas sem ser dependente. A nova lei, contudo, trata usuário e dependente praticamente da mesma forma, diferenciando-os, somente, como mencionado, quanto à medida alternativa a ser adotada.

Ocorre, entretanto, que há uma diferença abissal entre o usuário e o dependente. Enquanto os dependentes apresentam necessidade física ou psíquica muito forte, quase invencível, de consumir a droga, chegando a manifestar sintomas dolorosos decorrentes da interrupção da ingestão da substância, os usuários, imensa maioria, a consomem por opção, normalmente em momentos de lazer.

Grosso modo, pode-se dizer que o usuário mantém seu livre-arbítrio intacto com relação ao consumo da droga, enquanto o dependente não mais possui essa liberdade de escolha. É irrefutável o fato de que quem alimenta o tráfico são dependentes e usuários, pois, conforme a vetusta lei de mercado, havendo procura haverá oferta. Conseqüentemente, para diminuir o tráfico há que se diminuir o número de dependentes e usuários de drogas. Daí a pergunta: será que o abrandamento da pena de porte de droga para o uso terá o condão de reduzir ou incrementar o tráfico e todas as demais formas de criminalidade que o permeiam?

Como, brilhantemente, destacou o delegado Hebert Reis Mesquita, chefe do Serviço de Projetos Especiais da Divisão de Entorpecentes (CGPRE), em artigo veiculado na edição VIII, da revista Phoenix magazine, “se a preocupação do legislador era impedir que o usuário vá para a cadeia, desnecessárias as mudanças. Não há um só usuário preso pelo crime de porte para uso. Todos se valem de benefícios legais como proposta de aplicação imediata da pena (Lei 9.099/95), suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95), sursis (artigo 77, do Código Penal) e substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito e/ou multa”.

A novel legislação pretende que o porte de drogas para uso sequer passe pela polícia, procurando tratar usuários e dependentes como vítimas, não criminosos. Já efetuada a diferenciação entre esses dois tipos de consumidores de drogas, surge novo questionamento: serão os usuários – maioria esmagadora, vale sempre ressaltar – vítimas? Ou será a Lei 11.343/06, nesse e em outros aspectos, laxista?

O laxismo penal é a orientação doutrinária, visceralmente, em desacordo com os textos clássicos e modernos sobre direitos fundamentais do ser humano. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, inserta na Constituição Francesa, de 1795, proclamava, já no artigo primeiro, que “os direitos do homem em sociedade são a liberdade, a igualdade, a segurança, a propriedade”, acrescentando que “a segurança resulta do concurso de todos, para assegurar os direitos de cada qual” (artigo 4º). Já a Constituição Francesa de 1791, nas Disposições Fundamentais, contidas em seu título primeiro, consignava que “a liberdade nada mais é do que o poder de fazer tudo o que não prejudica os direitos alheios ou a segurança pública”.

A Constituição da República Federativa do Brasil garante “aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (artigo 5º, caput).

Uma vez que o crime de tráfico de drogas e todos os demais que estão a ele intimamente atrelados geram uma notável insegurança para toda a sociedade e, sendo a segurança um dos direitos fundamentais preconizados em diferentes textos legais desde o Iluminismo, suscitam-se novas questões.

Tendo o usuário livre-arbítrio com relação ao consumo de drogas e, sabendo que o tráfico gera imensos malefícios sociais, dentre os quais a insegurança, não estaria o usuário, com seu comportamento comissivo, violando aberta e espontaneamente a lei e colocando-se em estado de guerra contra a sociedade?

São justas e suficientes as medidas alternativas previstas pelo artigo 28, da Lei 11.343/2006, no sentido de prevenir e intimidar a sociedade e o próprio agente, cujo comportamento egoísta contribui para comprometer a segurança pública? Quem é a vítima? O usuário de drogas, que tem condições de optar entre fazer ou não uso da substância, ou a sociedade, cuja segurança fica a mercê da opção feita pelo usuário?

Outro ponto onde o laxismo penal se faz presente na Lei 11.343/06 é no parágrafo 4º, do artigo 33, que garante ao traficante o direito subjetivo a uma redução de pena de um sexto a dois terços, nos casos em que for primário, tenha bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas nem integre uma organização criminosa. O citado dispositivo parece ter sido idealizado pelo legislador com o único intuito de encorajar os primários, de bons antecedentes, a ingressar na lucrativa atividade do tráfico de drogas – principalmente aqueles conhecidos no jargão policial como “mulas”, elementos, normalmente sem passagens policiais anteriores, que se aventuram realizando o transporte da droga. Assim, o dispositivo assegura uma considerável redução de pena, no caso, pouco provável, pois é sabido que o número dos que conseguem escapar é, infelizmente, muito superior.

Diante disso, não resta outra alternativa senão vaticinar, com consternação, o incremento do crime de tráfico de drogas no Brasil, pois é impossível conter a vazão fechando-se algumas torneiras, enquanto outras são abertas.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!