Second Life

Realidade virtual traz os mesmos problemas do mundo real

Autor

  • Omar Kaminski

    é advogado e consultor gestor do Observatório do Marco Civil da Internet membro especialista da Câmara de Segurança e Direitos do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e diretor de Internet da Comissão de Assuntos Culturais e Propriedade Intelectual da OAB-PR.

24 de janeiro de 2007, 17h51

Em tempos de processo eletrônico, a internet entrou de vez no cotidiano dos advogados, juízes e promotores. Mais recentemente, a discussão sobre o bloqueio do YouTube, além das discussões sobre o Orkut, e surge a promessa de uma nova onda: o Second Life[1], criado pela Linden Lab em 2003.

Trata-se de um jogo que, no jargão dos aficionados, é chamado de MMORPG, Massive Multiplayer Online Role Playing Game. Jogo pela Internet no qual o participante pode criar um personagem virtual, à sua imagem e semelhança — ou não, chamado de avatar, e começar a levar uma “segunda vida” junto com os demais avatares que perambulam por lá.

Não se trata propriamente de novidade, podemos falar do Ultima Online, Everquest, World of Warcraft e Ragnarok, entre outros. O diferencial é que o Second Life terá uma versão em português, e está gerando uma grande expectativa naqueles que pretendem fazer do jogo um novo modelo de negócios.

É o velho Banco Imobiliário misturado com TheSims, com o plus da interação online e em tempo real. Alguns milhares de brasileiros já criaram seus avatares e estão participando do jogo, que já conta com quase 3 milhões de inscritos. Com uma ressalva: os requisitos de sistema limitam a participação de detentores de PCs populares, pois é exigida uma máquina robusta com placa 3D e conexão banda larga.

A participação inicial é gratuita, mas a coisa começa a ficar mais séria a partir do momento que você precisa obter lindens, a moeda que faz girar a economia desse território digital. Quanto mais lindens, maiores as possibilidades do seu “eu virtual”. Claro que podem ser comprados com cartão de crédito e outros meios de pagamento, como também podem ser recebidos em retribuição a uma atividade laboral do avatar, vejam só.

No Second Life o ambiente virtual é subdividido em terras, ou ilhas, onde se reúnem pessoas que falam a mesma língua, e têm interesses comuns. E consta que os brasileiros já são a quarta população que ali “habita”. Essa população tem crescido numa taxa de 50% ao mês, taxa essa de fazer inveja até mesmo à espécie dos leporídeos.

Assim, já foram criadas cidades que imitam a realidade, inclusive São Paulo e sua famosa Avenida Paulista. O preço dos terrenos é relativamente baixo e promete uma supervalorização se o jogo “pegar”. Várias empresas estão interessadas em anunciar e vender seus produtos, inclusive as agências de notícia da Reuters e da brasileira G1 já estão lá cobrindo as novidades.

Em um despretensioso passeio, seu avatar vai se deparar com produtos conhecidos no mundo real e outdoors de empresas — mesmo que em São Paulo estejam limitados, bem como adentrar seus shows-rooms, onde poderá conhecer toda a gama de produtos e serviços oferecidos por aquele fornecedor, aos próprios avatares, ou mesmo aos personagens reais que os animam, atrás dos teclados de computadores — pessoas de carne e osso, como você e eu.

Como no mundo antigo, as terras e ilhas têm donos, que vendem terrenos e garantem a ordem no pedaço. Podem vender ou ceder espaço aos seus “conterrâneos”, e impor a ordem, suspendendo, ou mesmo banindo os avatares inconvenientes. Criou-se também a hipotética figura do sem-terra ou sem-teto virtual, que poderá ficar mendigando por lindens.

É como se fosse um e-feudalismo. Mas será que o “senhor avatar feudal” poderá impor sua vontade soberanamente por muito tempo, ou será que terá de ceder a pressões da “vassalagem virtual”, ou das empresas, que estão ali gastando seus lindens? Ou mesmo da empresa detentora do jogo, lembrando que há leis “reais” que imperam sobre essa empresa.

Caso a sanha capitalista extrapole os limites do desejável no jogo, poderá acabar provocando um “nomadismo virtual”, ou e-emigração. Mas até lá, muitos lindens irão circular, e todos os participantes estarão investindo pelo menos seu tempo nessa nova brincadeira coletiva.

O que a torna mais interessante é o fato de que o programa visualizador (interface do usuário final), está sendo disponibilizado em open source[2], ou código aberto. "O código é lei”, teoria de Lawrence Lessig, encaixa-se como uma luva. Salvo algum bug ou erro de sistema, o usuário só pode fazer o que é determinado pelas linhas de código que compõem o software.

Afetando o Direito e outras áreas

Já merece reflexão a conveniência de punição das condutas tidas por contrárias aos bons modos e costumes também nos territórios virtuais. Uma vez que protestos [3][4] e outras exasperações são previsíveis, é de se esperar também que haja algum tipo de limitação. Será que apenas o avatar que será penalizado, ou seu animador, ou sua conta de cartão de crédito?

Com a possibilidade de “posse” dos bens virtuais, sua negociação e lucro, os personagens provavelmente terão de pagar impostos pelas transações e serviços ali efetuados. Terão de dar satisfações às autoridades judiciárias locais, ou será que nosso Ministério Público poderá vislumbrar a existência ali de um estabelecimento virtual da empresa real, que deverá ser processada? Ou tudo se resolverá no virtual? Mas o virtual não é a extensão do real?

Enquanto se falava de jogo MMORPG, tudo poderia ser tratado como uma brincadeira de jovens e adultos. Mas, e agora, quando pessoas reais, incorporadas em seus avatares, e empresas do mundo real ali se estabelecem, para ofertar bens como na vida real, começaremos a ter os mesmos problemas da vida real — quiçá até mesmo trabalhistas e penais. O jogo no caso mascara problemas já conhecidos do meio virtual, só que em 3D e em caráter contínuo.

Alguns colegas advogados já se adiantaram e montaram seus escritórios no Second Life. Discussões sobre ética e intenções de marketing jurídico à parte, podemos elocubrar: se essa moda pegar, será possível uma OAB e Tribunais virtuais? Delegacias? Clientes avatares? Avatares processando avatares? Caso a resposta seja positiva, muito provavelmente teremos o processo eletrônico dentro do Second Life, e quem sabe um novo tipo de Habeas Corpus, para garantir a locomoção virtual[5].

Podemos também falar no risco que representa aos profissionais da psicoterapia. Ao invés de tratar os males da psique, os indivíduos “reais” poderão preferir recomeçar sua existência, a partir de personagens “idealizados”, sem gordurinhas indesejadas, velhas frustrações e dores na alma. Ou aumentar o número de internos em clínicas de recuperação de viciados em tecnologia, que já existem no mundo real.

Já anotou o filósofo esloveno Slavov Zizek[6] que nos jogos online é possível viver uma existência sublimada: o fraco pode parecer forte, o gordo magro, o tímido ousado, o pobre pode virar rico. Será que ali estamos nos relacionando com várias pessoas, diferentes “entidades” que incorporam distintos avatares, ou não estamos nos relacionando com personalidade alguma?

Uma nova realidade

Indo um pouco mais além, temos a realidade virtual e o mascaramento dos sentidos através dos bits. Tanto William Gibson, autor de “Neuromancer” como Jean Baudrillard, de “Simulacra & Simulation” (que inspirou o filme Matrix), entre outros, anteviram o futuro e conceberam o ciberespaço, abrindo as portas da imaginação e da percepção sensorial no mundo virtual.

Como filosofou Nietzsche em Crepúsculo dos Ídolos, “para existir arte, para qualquer tipo de atividade estética ou perceptiva existir, uma certa pré-condição psicológica é indispensável: intoxicação”. O termo atualizado seria “imersão”.

Portanto, não estamos falando tão somente de mais um jogo ou de mais um modismo, mas das condutas e práticas que ocorrem na Internet rumo a uma nova realidade. Da evolução do pensamento, de como encarar essas novas tecnologias e seus efeitos no mundo fático.

E deste modo, uma das crenças mais comuns hoje, que a Internet é apenas um meio, e não um mundo à parte[7], correrá risco de obsolescência. E mais: poderemos ter não só um, mas vários mundos à parte — com reflexos claros e muitas vezes graves no mundo real.

E você, já está preparado para a realidade virtual?


– Agradecimentos ao advogado e presidente do IBDI, Luiz Fernando Martins Castro, pela colaboração e idéias.

[1] http://secondlife.com e http://www.secondlifebrasil.com.br

[2] http://lindenlab.com/press/releases/01_08_07

“Nós fomos o primeiro mundo virtual a possibilitar aos criadores de conteúdo possuir os direitos sobre a Propriedade Intelectual que eles criarem" (Philip Rosedale, CEO e fundador da Linden Lab)

[3] http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI1314983-EI4802,00.html

"Pênis voadores interrompem entrevista de milionária virtual"

[4] http://www.pirex.com.br/2006/12/04/o-jogo-imita-a-vida/

“CopyBots são scripts que permitem a quem o use copiar qualquer coisa que veja no mundo. Ou seja, com ele é possível entrar em uma loja e copiar qualquer coisa que você veja, um móvel, o prédio todo, uma textura, uma roupa, um avatar… Obviamente isso causou a fúria dos comerciantes locais, que reclamavam sua propriedade intelectual."

[4] http://www.conjur.com.br/static/text/24957,1

"Juiz indefere Habeas Corpus para garantir locomoção no ciberespaço"

[5] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0701200715.htm

"Eleger a internet como exemplo democrático é esconder diferenças sociais, institucionais e psicológicas entre as vidas "real" e "virtual"."

[6] http://www.conjur.com.br/static/text/50802,1

Artigo de autoria do jurista Amaro Moraes e Silva Neto, que sustenta: “Desde quando o surgimento de um novo meio para interagirmos pode implicar no surgimento de um novo bem jurídico?”

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    é advogado, diretor de Internet do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI) e membro suplente do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

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