Show da vida

Globo não terá de indenizar advogados de Suzane Richthofen

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24 de janeiro de 2007, 19h04

Advogados de Suzane Richthofen, condenada por matar os pais, falharam na tentativa de obter indenização por danos morais e materiais da TV Globo. Os irmãos Mário de Oliveira Filho e Mário Sérgio de Oliveira, que cuidaram da defesa de Suzane, alegavam que a entrevista dada por ela à emissora e divulgada pelo Fantástico, em julho do ano passado, prejudicou a imagem dos dois, que acabaram perdendo clientes por causa disso.

Na reportagem, Suzane apareceu infantilizada, com roupas e voz de criança. Tentou chorar, mas gravação da conversa dela com seus advogados mostrou que tudo fazia parte de uma estratégia da defesa. A pedidos dos advogados, o trecho em que Suzane parece recebendo orientação dos seus advogados foi retirada da fita anexada aos autos como prova da acusação, por ordem da 5ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Mesmo assim, os advogados recorreram à Justiça para que a Globo fosse obrigada a pagar indenização para eles. Alegaram que a reportagem foi editada, desrespeitando acordo feito entre eles e a emissora. O argumento não foi aceito pelo juiz Jomar Juarez Amorim, da 3ª Vara Cível Central de São Paulo.

Farsa à vista

Para o juiz, uma vez que a emissora constatou que o papel desempenhado por Suzane durante a entrevista não passou de uma estratégia da defesa, para que a adolescente tida como cruel e fria se tornasse numa menina frágil e influenciável, o seu papel era mostrar isso para o telespectador. É o direito-dever de informar.

“A liberdade jornalística, pela sua dimensão constitucional, sobrepõe-se ao sigilo profissional e também prevalece sobre a suposta privacidade de uma conversa, inadvertida e de bastidores, sem qualquer conteúdo sobre a vida dos interlocutores.” Para o juiz Amorim, a vida pessoal dos advogados não foi prejudicada. Houve apenas crítica à conduta profissional. “A crítica da imprensa é não só lícita como necessária ao regime verdadeiramente democrático.” Dentro desse contexto, para o juiz, “a edição é prerrogativa inerente à atividade jornalística”.

A Globo foi defendida pelo advogado Marcelo Habis, do escritório Camargo Aranha Advogados. Já os irmãos Mário foram representados pelo advogado Marcus Vinícius de Abreu Sampaio.

O crime

Suzane, seu namorado, Daniel Cravinhos, e o irmão dele, Christian Cravinhos, confessaram ter matado os pais dela, Marisia e Mandred Von Richthofen, com golpes de barra de ferro, na casa em que a família morava, em outubro de 2002.

Em julho do ano passado, Suzane e Daniel foram condenados a 39 anos e seis meses de prisão e Christian, a 38 anos e seis meses.

Veja a decisão do juiz Jomar Juarez Amorim

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

Autos 583.00.2006.173977-9 – 3ª Vara Cível Central

Autores: MÁRIO DE OLIVEIRA FILHO e MÁRIO SÉRGIO DE OLIVEIRA

Ré: GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES S.A.

Trata-se de ação de responsabilidade civil. Aduziram os autores, em suma, que são advogados criminalistas há mais de vinte e cinco anos e assumiram a defesa de Suzane Von Richthofen, acusada do assassinato dos pais.

Acertaram com a ré entrevista da cliente, sob condições: a reportagem não seria acrescida de imagens de arquivo; gravação acompanhada por qualquer pessoa indicada pelos advogados; o material não seria editado.

No entanto, no programa Fantástico exibido no dia 9 de abril de 2006, houve “montagem de falas e imagens”, “edição maliciosa”, “com o intuito de criar situações inverídicas”. A jornalista afirmou injustamente que os autores armaram uma farsa e orientaram a cliente a chorar.

Alegaram que sua atitude era legítima e que a ré violou a privacidade da conversa (Constituição da República, art. 5º, inc. X) e sigilo profissional (Lei nº 8.906/94, art. 7º, inc. II).

Foram tachados de inescrupulosos e sofreram prejuízos à imagem.

Instaurada sindicância na OAB, foi arquivada depois do parecer de três renomados juristas.

Houve retaliações de clientes. Daí o pedido condenatório — ilíquido — por danos materiais e morais.

A lide foi precedida de medida cautelar (autos 583.00.2006.148461-4, em apenso), visando à exibição de documento — fita contendo o material bruto de gravação.

Em resposta (fls. 52-75) se alegou previamente a plena vigência da Lei de Imprensa, cujo art. 58 prevê somente a conservação do que é divulgado ao público, portanto não há o dever jurídico-legal de exibir.

Argüida ilegitimidade ad causam de Mário de Oliveira Filho, por não aparecer na reportagem.

No mérito foi negada a obrigação.

A conversa entre advogado e cliente foi captada ao acaso e a ré decidiu divulgá-la, expondo os acontecimentos na ordem cronológica verdadeira por prevalência do interesse público.


Houve apenas animus narrandi, no exercício de liberdade jornalística de informar (Constituição da República, art. 220, § 1º), pois não poderia ser conivente com a farsa montada pelos autores e sua cliente. A crítica, ainda que contundente, não caracteriza abuso (Lei nº 5.250/67, art. 27, inc. VIII).

Pugnou a ré, enfim, pela rejeição do pedido.

Houve réplica (fls. 82-91).

Esse o relatório.

Fundamento e decido.

Conheço diretamente da lide, nos termos do art. 330, inc. I, do Código de Processo Civil, pois inútil a abertura da fase instrutória.

Há nos autos o suficiente para formar convicção sobre os fatos.

A demanda é improcedente. Basta assistir ao programa para concluir que a conduta da ré não merece qualquer sanção civil. Incontroverso que os autores aconselharam a cliente a submeter-se à entrevista a fim de melhorar sua imagem perante a coletividade, considerando a iminência do julgamento pelo Tribunal do Júri.

Também não se questiona o interesse público que permeou a realização da reportagem, haja vista a repercussão geral do crime no país.

Está evidenciado, com o exame da fita trazida no processo preparatório, que o intento foi criar mesmo um personagem distanciado o mais possível da insensibilidade ínsita à conduta delituosa imputada a Suzane Von Richthofen. A roupa infantil e as pantufas, os passarinhos, o penteado, o tom de voz, a postura ingênua, tudo preparado no afã de penalizar os telespectadores. Mas a inverossimilhança da composição confirmou-se pelo choro e emoção mal expressados e o registro (fosse premeditado ou não, não importa) dos diálogos entre a cliente e seus advogados.

Afigurava-se então legítimo à ré, ainda que não conservada a íntegra da gravação, repudiar com veemência o propósito inconfessável de induzir todos a erro sobre qualidades da entrevistada, de manipular a opinião pública.

A liberdade jornalística, consubstanciada no direito-dever de informar, pela sua dimensão constitucional (Constituição da República, art. 220, §1º), sobrepõe-se ao sigilo profissional (Lei nº 8.906/94, art. 7º, inc. II). E também prevalece sobre a suposta privacidade de uma conversa (Constituição da República, art. 5º, inc. X), inadvertida e de bastidores, sem qualquer conteúdo sobre a vida dos interlocutores, e relacionada unicamente à entrevista que se desenrolava, com orientação de um dos advogados para que a cliente chorasse e encerrasse o ato.

Não era exigível do veículo de comunicação que simplesmente ignorasse aquele contexto; estava apoiado em justa causa para selecionar as imagens na elaboração do programa.

Demais disso, a edição é prerrogativa inerente à atividade jornalística, é da economia interna da corporação e não cabe interferir na escolha dos dados e imagens, mormente porque a responsabilidade se baliza pelo teor do que é divulgado.

Nesse ponto, não há obrigação legal estrita (Constituição da República, art. 5º, caput; Lei nº 5.250/67, art. 58, caput) de manter o material bruto à disposição por tempo determinado e por isso a recusa em apresentá-lo, para além de fundada na sua inexistência, não enseja a presunção prevista no art. 359 do Código de Processo Civil.

Houve intenção de meramente narrar ou criticar. Em verdade, porque puseram-se voluntariamente naquela posição os envolvidos, e acreditavam que lhes conviria de algum modo mais exposição da cliente, a pretensão denota suscetibilidade sem qualquer efeito no âmbito jurídico-positivo.

Não houve qualquer devassa da sua vida privada, mas sim crítica a conduta profissional, a que todos estão sujeitos. E a crítica da imprensa, ainda que por vezes acerba, é não só lícita como necessária ao regime verdadeiramente democrático.

Não se cuida mais acertada a idéia que Cavour teria manifestado no Parlamento Italiano, de que à imprensa basta a autolimitação. Cediço que a liberdade não é absoluta, assim como não há direito absoluto.

Nos tempos atuais vige o relativismo no conhecimento humano e no plano ético-jurídico. Afinal, como ensina o grande Miguel Reale, não obstante assevere a pessoa como valor-fonte, os demais valores se qualificam pela sua implicação recíproca: “O mundo da cultura é sempre um mundo solidário, no sentido da interdependência necessária de seus fatores, mas não no sentido da coexistência pacífica dos interesses, que é um ideal a ser atingido. A solidariedade ética, que a justiça objetiva alcançar, implica antes uma tensão viva nos quadrantes da História, sendo o direito uma força decisiva na sempre almejada composição social de valores.” (Filosofia do Direito, São Paulo: Saraiva, 1998, pág. 190).

Ter direito é ter deveres. Jus et obligatio sunt correlata, disseram os juristas romanos. Ao direito de informar é correlato o dever de fazê-lo conforme a verdade. No Estado de Direito nenhuma liberdade é ilimitada e todas convivem, ao lado dos chamados direitos humanos, numa relação dialética. Cabe também rememorar a noção kantiana, de que a liberdade pressupõe o dever (e por isso indissociável da responsabilidade).


Precisamente no que toca à garantia individual de informação, anota José Afonso da Silva: “A liberdade de informação não é simplesmente a liberdade do dono da empresa jornalística ou do jornalista. A liberdade destes é reflexa no sentido de que ela só existe e se justifica na medida do direito dos indivíduos a uma informação correta e imparcial. A liberdade dominante é a de ser informado, a de ter acesso às fontes de informação, a de obtê-la. O dono da empresa e o jornalista têm um direito fundamental de exercer sua atividade, sua missão, mas especialmente têm um dever. Reconhece-se-lhes o direito de informar ao público os acontecimentos e idéias, mas sobre ele incide o dever de informar à coletividade tais acontecimentos e idéias, objetivamente, sem alterar-lhes a verdade ou esvaziar-lhes o sentido original, do contrário, se terá não informação, mas deformação.” (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 1995, pág. 240, destaques do original).

Mas a livre comunicação, mesmo relativa, é essencial ao regime democrático. Sem conhecimento não há democracia e a imprensa inegavelmente exerce essa função, que é fundamental à formação de opinião em geral e, no particular representado nos autos, foi importante para sedimentação do senso comum da população, houvesse ou não infração ético-disciplinar. Claro que o juízo sobre a existência dessa infração e cabimento de penalidade é reservado exclusivamente ao órgão de classe, entretanto isto não elide a admissibilidade da crítica, que é salutar à vivência democrática.

Segundo Darcy Arruda Miranda, Maurice Hauriou advertiu que a liberdade da imprensa serve de corretivo ao sufrágio popular, é complemento indispensável na organização do Estado, por propiciar a fiscalização dos atos oficiais: “Bem por isso a imprensa deve ser considerada como esculca incansável da civilização, almenara vigilante e impretérita dos direitos dos povos, pálio sagrado de todas as liberdades.

Mas, para que a imprensa alcance a plenitude do seu valor e represente, na vida de cada país, o seu verdadeiro papel de guia e fulcro dos interesses nacionais, há que seguir, irrestritamente, aquela sábia lição de Rui: ‘Três âncoras deixou Deus ao homem: o amor da pátria, o amor da liberdade, o amor da verdade. ‘Cara nos é a pátria, a liberdade mais cara; mas a verdade mais cara que tudo. Patria cara — carior Libertas, Veritas carissima (Lieber, Reminescences, p. 42). Damos a vida pela pátria. Deixamos a pátria pela liberdade. Mas pátria e liberdade renunciamos pela verdade. Porque este é mais santo de todos os amores. Os outros são da terra e do tempo. Este vem do céu, e vai à eternidade.” (Comentários à Lei de Imprensa, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, pág. 47).

Aqui é forçoso concretizar o exercício legítimo do jornalismo crítico pela ré, preponderante sobre o sentimento dos autores, considerando o fim social do Direito. E, eventualmente admitindo algum exagero na reportagem, fica relegado apenas ao aspecto estético, com preservação da escolha popular.

Em síntese, não se vislumbra qualquer animus injuriandi nem, portanto, a conseqüência jurídica colimada pelos autores.

Pelo exposto, julgo improcedente o pedido, apreciado o mérito das lides com fundamento no art. 269, inc. I, do Código de Processo Civil.

Custas e despesas corrigidas de cada desembolso. Honorários advocatícios fixados, para as duas demandas, em sete mil reais, na forma do art. 20, § 4º, do Código de Processo Civil.

P.R.I.

São Paulo, 10 de janeiro de 2007.

JOMAR JUAREZ AMORIM

Juiz de Direito

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