Machas de deficiência

Julgamento de Saddam maculou imagem da Justiça do Iraque

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22 de janeiro de 2007, 19h34

A pena de morte imputada ao ex-ditador iraquiano Saddam Hussein e executada no último dia 30 de dezembro gerou muitos questionamentos dentro da comunidade internacional quanto à legalidade de seu processo judicial e, principalmente, quanto à forma como foi cumprida sua sentença.

Imagens e fotos de seu enforcamento foram divulgadas pelos cinco continentes, por meio de gravações feitas por telefones celulares introduzidos “clandestinamente” no patíbulo, o que transformou os últimos momentos de vida de Saddam Hussein em um espetáculo de horrores com alto teor de vingança que destoa do tom solene e grave que deveria caracterizar uma execução de pena de morte.

Quase em tempo real, as pessoas puderam presenciar em seus lares todos os detalhes de seu enforcamento, como se fosse um capítulo a mais da longa tragédia a que o Iraque está submetido desde 20 de março de 2003, quando as tropas lideradas pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha, invadiram aquele país.

Desde então, a televisão tem sido a grande protagonista desta guerra, em ambos os lados. Tanto as cadeias de televisão norte-americanas quanto a televisão estatal iraquiana apresentam diariamente os fatos relacionados com os conflitos no Iraque, em noticiários que nem sempre se esmeram na imparcialidade e objetividade que devem prevalecer no trabalho jornalístico.

No entanto, a presença dos meios de comunicação tem provocado um forte impacto na opinião pública dentro e fora das fronteiras iraquianas, pois não somente mostram a realidade crua dos enfrentamentos e atentados ocorridos diariamente, como também são instrumentos eficazes na delação dos abusos cometidos pelos militares aliados nas prisões sob comando estadunidense.

Desde o início da contenda, foram constantes os bombardeios mediáticos de informações e imagens que, na maioria das vezes, foram repassadas ao público sem qualquer respeito às normas internacionais de direitos humanos, apesar de representar uma quebra dos preceitos da 3ª Convenção de Genebra (1949), destinada à proteção geral tanto de vítimas como de prisioneiros de guerra.

A 3ª Convenção, em seu artigo 12, responsabiliza o país invasor pelo tratamento dado ao prisioneiro de guerra. Além disso, o artigo 13 obriga que se dê proteção em tempo integral aos prisioneiros para que não sofram qualquer ato de violência ou intimidação; não recebam insultos; ou ainda sejam motivo de curiosidade pública.

Atualmente, nenhum desses dispositivos vem sendo respeitado pelas autoridades norte-americanas, embora estas tenham sido extremamente críticas com relação às imagens divulgadas de seus soldados detidos por grupos armados rebeldes ou, em outros casos, com a cobertura jornalística dos caixões enfileirados, cobertos pela bandeira americana, que guardavam os corpos de seus combatentes.

Donald Rumsfeld, secretário de Defesa norte-americano que comandou o ataque ao Iraque e deixou o cargo em novembro do ano passado, foi, sem dúvida, o principal alvo de uma série de críticas quanto aos métodos adotados no Iraque para a custódia de prisioneiros de guerra.

Enquanto as forças militares americanas estavam sob seu comando, revelou-se o escândalo envolvendo a prisão de Abu Ghraib, nos arredores de Bagdá, que foi usada como locação para cenas de tortura e maus-tratos de prisioneiros iraquianos pelas forças do Exército americano. Fotos e vídeos dos abusos cometidos chegaram à imprensa em 2004 e imediatamente foram divulgados, chocando a opinião pública. Antes disso, Rumsfeld já havia descumprido a Convenção de Genebra ao autorizar filmagens e fotografias dos corpos de Uday e Qusay, filhos de Saddam, mortos pelas tropas americanas em um tiroteio em julho de 2003.


Vários organismos internacionais, como <I>Human Rights Watch</I> e Anistia Internacional, têm denunciado a violação constante das regras internacionais de defesa dos direitos humanos. Também se manifestaram contrários aos procedimentos judiciais em curso no Iraque e críticos quanto à falta de informações de caráter público acerca do julgamento de Saddam e seus colaboradores.

Segundo notas oficiais distribuídas por essas duas organizações humanitárias, o julgamento feito pelo Alto Tribunal Penal Iraquiano contrariou as normas internacionais sobre julgamentos justos. O juízo, dizem as entidades, foi viciado do começo ao fim por falhas procedimentais e substantivas que comprometeram a independência e a imparcialidade do tribunal. Criticou-se a condução do processo, a proteção às testemunhas e aos advogados de defesa[1], a falta de acesso da defesa às provas e a forte interferência e manipulação políticas sofrida pelos juízes.

Para Malcolm Smart, diretor do Programa para o Oriente Próximo e Norte da África da Anistia Internacional, “o julgamento de Saddam Hussein deveria ter servido como contribuição básica para o restabelecimento da justiça e da verdade, para que prestasse contas das violações contra os direitos humanos perpetradas durante seu governo. Contudo, o que se viu foi um julgamento pleno de falhas. Muitas pessoas guardarão a impressão de um julgamento que corresponde apenas à ‘justiça do vencedor’, e não como marco para a erradicação da onda de homicídios políticos que se alastrou no Iraque”[2].

Embora contasse com uma cobertura jornalística sem precedentes na história das recentes democracias mundiais, com a transmissão ao vivo de toda a fase oral do processo propiciada pela TV estatal iraquiana, o julgamento não cumpriu as expectativas de ordem legal[3], por assim dizer. Houve transparência televisiva, mas faltou outro ingrediente fundamental à formação da opinião pública em uma ordem democrática: o respeito das instituições aos direitos fundamentais e ao devido processo legal.

No entanto, para o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, a execução de Saddam Hussein na forca — como declarou recentemente à imprensa — foi um “marco” importante na trajetória do país para se tornar uma democracia governada pelo império da lei.

Não é fácil descobrir a que tipo de “democracia” ele se refere, mas certamente esta é bem diferente da idealizada pelos defensores do Estado de Direito, que desde o final do século XVIII já exigiam a realização do devido processo legal, com respeito pleno à dignidade humana e a aplicação da lei com todas suas garantias. E não um espetáculo ameaçador e aterrorizante como foi visto por telespectadores de todo mundo[4].

Como foi dito anteriormente, além das irregularidades detectadas ao longo do julgamento, a fase final trouxe ainda outros pontos polêmicos que, se não são ilegais, no mínimo, são inconvenientes, considerando-se o momento delicado no qual se encontra o Iraque.

A escolha da data da execução em pleno feriado religioso para os muçulmanos[5] e os insultos proferidos ao condenado durante seu enforcamento[6] — que foram registrados por testemunhas por meio de telefones celulares e divulgados pela internet — mostram a falta de compromisso com o princípio de legalidade que deve imperar num Estado de Direito. As fotos e o vídeo piratas fazem a execução parecer mais uma vingança sectária ao invés de um ato determinado pela Justiça.


Ademais, a força ocupante não pode se imiscuir da responsabilidade que tem sobre o tratamento dispensado a seus prisioneiros de guerra mesmo quando estes são entregues à custódia das autoridades judiciais do país ocupado. Afinal, Saddam estava preso sob esta condição e deveria ter sido acompanhado por observadores norte-americanos no momento de seu enforcamento, como regem o estatuto de prisioneiros de guerra e as normas internacionais[7].

Portanto, as deficiências do julgamento e a inadequação do cumprimento da sentença macularam a imagem da Justiça iraquiana e comprometeram, sobremaneira, a credibilidade de futuros juízos que estão em andamento.

Além disso, a morte de Saddam Hussein antes da conclusão dos diversos processos a que responde, impede, assim, a revelação da verdade sobre o que ocorreu durante seu governo e inviabiliza o acesso de todos os iraquianos a possíveis versões sobre seu recente passado histórico, para que cada um pudesse analisar os fatos e tirar suas próprias conclusões a respeito. Seria uma excelente oportunidade para que o Alto Tribunal iraquiano demonstrasse aos cidadãos do país que pode julgar com autonomia e que seus julgados merecem a confiança das comunidades iraquiana e internacional.


[1] Três advogados de Saddam Hussein foram assassinados durante o processo. Saadoun Nasouaf al-Janabi (ou, Saadun Ansar Nazif al-Yenabi como vi em outra citação), Adel al-Zubeidi e Khamis al-Obeidi,

[2] Comunicado à imprensa, divulgado no dia 30 de dezembro de 2006 pelo site http://www.br.amnesty.org com o título “Iraque: A Amnesty International deplora a execução de Saddam Hussein”.

[3] O julgamento de Saddam Hussein foi comparado, em importância e magnitude, aos julgamentos de Nuremberg (Alemanha), como ficaram conhecidos os processos levados a cabo pelos aliados, pós Segunda Guerra Mundial, contra as principais figuras do regime nazista. Os julgamentos aconteceram entre 1945 e 1949 e os acusados, em sua maioria, foram condenados por crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

[4] Ver a obra do filósofo e historiador francês Michel Foucault – “Vigiar e Punir” – na qual demonstra o tratamento dispensado ao criminoso ao longo da evolução humana. Ele divide seu livro em quatro partes: suplício, punição, disciplina e prisão e, em todas elas, mostra como as mortes tinham o caráter de espetáculo ameaçador e aterrorizante perante o condenado e perante a sociedade.

[5] A pena de morte foi executada no primeiro dia do feriado de Eid al-Adha: período de perdão e clemência na religião muçulmana que dura quatro dias. Segundo os funcionários do governo iraquiano, Saddam morreu antes do amanhecer de sábado (dia 30 de dezembro), antes, portanto, do começo oficial do feriado.

[6] Um vídeo mostra Saddam sendo provocado por testemunhas xiitas e seus carrascos durante a execução, apesar dos apelos do promotor de Justiça do caso para que respeitassem o condenado. Muitos especialistas da imprensa árabe afirmam que a gravação faz a execução parecer uma vingança sectária ao invés de um ato determinado pela Justiça.

[7] Principalmente porque a execução foi efetuada em uma base militar estadunidense localizada na “Zona Verde”: área que serviu de sede do serviço secreto iraquiano e que foi palco de torturas e outras atrocidades cometidas pelo regime de Saddam Hussein.

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