‘Discovery judiciário’

Interrogatório pela TV é ilegal e inconstitucional

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22 de janeiro de 2007, 11h40

Respeitável público, senhor contribuinte, vai começar a sessão. Instalem-se todos para assistir ao magistrado, ao promotor, ao defensor, ao assistente, à vítima. Desliguem as luzes, ajeitem-se com as formalidades que o espetáculo requer. Desliguem os celulares, cuidado com a interferência com outros aparelhos. É proibida qualquer reprodução de imagens. Afastem os menores da sala de estar. Vai começar o cinema? Um teatro? Uma ópera? Uma conferência? Não. É o moderníssimo processo penal que prevê a teleconferência entre o magistrado e o aprisionado, distantes seguros quilômetros.

A assombrosa ousadia da modernidade amparada em argumentos de fundo financeiro são profundamente sedutores. Diz respeito ao custo do deslocamento e o aparato de segurança que demanda várias movimentações de risco entre a penitenciária e o fórum. O segundo fundamento informa à sociedade da celeridade processual que seria produzida com a possibilidade da comunicação à distância, evitando-se adiamento, atraso, suspensões enfim, toda a gama de inconvenientes.

Há muitos outros fundamentos para o “processo telepático”, mas os dois primeiros — o econômico e o burocrata — já são suficientes para emplacar a medida na mídia, fornecendo a plêiade de dados que legitimam a medida junto à opinião pública.

Em Mato Grosso e São Paulo, a Ordem dos Advogados do Brasil teve oportunidade de discutir detidamente o tema. Chegou-se à conclusão mais óbvia, na esteira dos doutrinadores constitucionalistas — o “processo penal virtual” é, a um só tempo, ilegal e inconstitucional.

legal, porquanto faz tabula rasa toda a prerrogativa procedimental do acusado em ver-se entrevistado pessoalmente por um juiz competente, onde este poderá saber sem intermediários não só do fato apurado mas como foram apuradas as provas e de que forma o aparato estatal mantém o infeliz agrilhoado. Inconstitucional, porque suprime o contraditório real, tornando virtual uma garantia bem real no texto de nossa maior legislação. O direito à resistência deve ser expresso de forma mediata e não mediado pelo próprio Estado, quanto mais filtrado os mecanismos de aferição do processo pelas secretarias de segurança, órgão eminentemente repressor. Mas que direito, quando se quer a condenação.

Está provado que o processo penal contemporâneo está sucumbindo às máximas midiáticas, tornando a apuração do fato pretérito num espetáculo patético, onde o público pagante identifica-se de pronto com os protagonistas do show. Assim, transfere-se para um procedimento delicadíssimo, talvez o mais sensível de todos que gravita em torno da liberdade, o ritmo alucinado no Big Brother, onde é possível em poucas sessões saber o culpado, o inocente, a vítima, por meio das declarações públicas pinçadas do tiroteio processual. Afinal, aquele processo naturalmente lento (porque complexo) é enfadonho à opinião pública e merece reprovação, endossando a mídia a aparência de lentidão quando as fases processuais estão sendo garantidas.

Nesse contexto, para que acusado? E para que respeitar suas garantias? Ora, muitos se elegem com o discurso fácil e sedutor que, não tendo a vítima seus direitos garantidos, com muito menos razão deveria o Estado respeitar as prerrogativas do “meliante”, do “elemento”, do “marginal”, do “bandido”, quando é apenas um acusado.

Assim, através da teleconferência, o show estará completo, sem a “inconveniência” do antagonista gritando sua inocência. Devemos nos afastar dessa realidade pobre, feia, crua dos acusados de carne e osso e tratar de oferecer ao “consumidor final” a atração paga. Aí está um zoológico sem cheiro, o “Discovery Judiciário” a exibir a fauna tratada e devidamente rotulada pelos biólogos que nos ajudam com suas explicações técnicas e psicólogos que sempre se esmeram em certificar o grau de periculosidade da fera. Já dizia o Millor Fernandes: “temos todos que recusar veementemente aceitar uma Justiça que também dá razão aos outros”.

Surge então aquela criatura grotesca, abominável que é o réu. No recanto mais agradável dos gabinetes, regulam-se os condicionadores de ar, o volume, o contraste, o áudio e começa a sessão da vida real, sem vida e nenhum pouco real. Aí está a vida como ela não é. Visitar o local? Nem pensar — o safári é pela TV.

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