Bloco em pedaços

Entrevista: professor João Grandino Rodas

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20 de janeiro de 2007, 23h00

João Grandino Rodas - por SpaccaSpacca" data-GUID="joao_grandino_rodas.jpeg">A língua falada entre os presidentes dos países que integram o Mercosul, de fato, não é a mesma. O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, defende a diversidade para que haja unidade no bloco. A Venezuela, recém-chegada ao cone sul, aposta no fortalecimento do finado socialismo para fortalecer o Mercosul. Já a Bolívia, aspirante a integrante do bloco, bate o pé na defesa de seus interesses particulares como pressuposto da integração continental. Enquanto isso o Uruguai ameaça bater em retirada e a Argentina acha melhor aguardar mais um pouco.

“O Mercosul está no pior momento de sua caminhada”, conclui o advogado João Grandino Rodas, um dos mais conceituados especialista em Direito Internacional do país. Para Rodas, umas das explicações é a diversidade política e econômica dos países. Apesar da crise do momento, e a exemplo do que diz o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, Rodas reconhece que não há chances de o Mercosul ir a pique. “O cenário internacional é de países se unindo em organismos regionais e econômicos. Não seremos nós a exceção,” diz o professor desprezando a capacidade latino-americana de surpreender.

João Grandino Rodas tem conhecimento de causa para fazer sua aposta. Depois de passar pelo comando jurídico do Itamaraty, nos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique, ocupa agora o posto de juiz titular do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul. Fica na função até 2008. O Tribunal inaugura suas atividades em 1º de fevereiro próximo com uma questão primordial. Irá responder se leis internas dos países-membros têm prevalência sobre os tratados internacionais. A questão irá a julgamento no Paraguai, que acaba de assumir a Presidência do bloco.

A discussão sobre a hierarquia entre tratados e leis também foi aberta no Supremo Tribunal Federal, pelo ministro Gilmar Mendes. Ao analisar a prisão de devedor em alienação fiduciária, o ministro questionou a possibilidade de prisão para o depositário infiel, prevista na Constituição brasileira mas não prevista no Pacto de San José da Costa Ria, do qual o Brasil é signatário.

Em entrevista à Consultor Jurídico, João Grandino Rodas também falou do sistema de concorrência, no qual esteve bastante envolvido durante sua presidência no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), de 2000 a 2004. No comando do Conselho, foi o único a votar a favor da compra da Garoto pela Nestlé. Derrotado, teve de ver desfeita, depois de dois anos, a compra fechada em R$ 570 milhões. Hoje, ainda aposta na boa concorrência presente no Brasil e em mudanças para melhorar o sistema e facilitar a vida do mercado.

A terceira parte da entrevista é dedicada à questão do ensino jurídico. Em junho do ano passado, foi nomeado diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a mais tradicional faculdade do país. Na direção da escola, pretende reformular a grade curricular e reduzir o número de alunos por sala de aula. Para ele, aluno tem de sair da faculdade com conhecimento suficiente para passar no Exame de Ordem, que exige o mínimo dos bacharéis. Ou, pelo menos, tem de sair da escola sabendo estudar. Nada de curso preparatório, diz ele. Sobre o aumento exorbitante do número de faculdades de Direito no país — já são mais de mil — Rodas acredita que o próprio mercado vai selecionar os melhores.

Participaram da entrevista os jornalistas Lilian Matsuura e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — O Mercosul tem futuro?

João Grandino Rodas — O Mercosul está no pior momento de sua caminhada. Há divergências entre os países que fazem parte do bloco e outros países com políticas diferentes querendo entrar. É realmente um momento difícil. Mas, dificilmente os países do cone sul poderão voltar, por si só, a ser o que eram antes do Mercosul. Como dizem: ruim com o Mercosul, pior sem ele. O cenário internacional é de países se unindo em organismos regionais e econômicos. Não seremos nós a exceção. Por isso, é impossível que o Mercosul acabe. Mas é preciso prestar atenção na confiabilidade dos países que vão entrar para o bloco, porque isso também vai marcar a confiabilidade do Mercosul.

ConJur — Há chances de o Mercosul funcionar como a União Européia?

João Grandino Rodas — A comparação entre os dois blocos é inevitável, mas é preciso lembrar que os dois tiveram uma gênese muito diferente. A Europa se uniu depois de tantas guerras, de muitos desentendimentos. Foi a alternativa encontrada pelos países para resolver o caos no continente. Já, nas Américas, nunca houve guerras como na Europa. Embora ibéricas, as colonizações foram diferentes, com maneiras de pensar diversas. O principal é que, apesar de todas as misérias da América Latina, nunca houve uma necessidade absoluta de união. Outro fator que pesa para o Mercosul é a diferença de poder econômico entre os países: o Brasil representa 70% da economia do bloco; a Argentina, 20%; Paraguai e Uruguai, 5% cada um. Se o poder de voto fosse ponderado, o Brasil poderia resolver tudo sozinho. Mas o voto de cada um vale um. Esse é um dos problemas do Mercosul: a diversidade econômica de seus parceiros. É por isso que não existem órgãos poderosos no Mercosul. Se existissem, sem levar em conta o valor econômico de cada um, teríamos países pequenos decidindo questões internas do Brasil. Outro problema é a tendência de resolver os conflitos politicamente, quando a saída jurídica é sempre melhor. Quando a perda é política, é perda. Quando a perda é jurídica, é diferença de interpretação — dói menos.


ConJur — Argentina e Uruguai agiram bem ao levar para a Corte Internacional de Haia a disputa sobre as papeleras [a Argentina contesta a construção de uma fábrica de papel em território uruguaio por causa dos danos ambientais ao rio da Prata que divide os dois países]?

João Grandino Rodas — O conflito deveria ser resolvido juridicamente, mas dentro do cone sul, pelo Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul. Mas o Brasil já foi logo dizendo que a questão não era assunto do Mercosul e que, portanto, não poderia ser resolvida politicamente pelo bloco. Argentina e Uruguai, que poderiam levar a questão para o Tribunal do Mercosul, preferiram levar o conflito para Haia. Isso enfraquece o bloco. No Mercosul, a solução jurídica sairia em 90 dias. Em Haia, é bem mais demorado.

ConJur — Qual a importância da arbitragem para resolver os conflitos entre Estados?

João Grandino Rodas — Antes da arbitragem, a alternativa é a solução diplomática. Entre Brasil e Bolívia [na questão da nacionalização do patrimônio da Petrobrás pelo governo boliviano], por exemplo, ninguém falou publicamente de uma tentativa de solução diplomática, mas pode ser que tenha havido. Quando a diplomacia não dá certo, a próxima alternativa é a arbitragem. Levar para a Corte de Haia não é bom negócio porque o julgamento é demorado. Embora a arbitragem só dê certo se as partes quiserem, de fato, resolver o conflito, é a melhor solução e deveria ser incentivada.

ConJur — O que deve prevalecer: a legislação do país ou os tratados internacionais?

João Grandino Rodas — A Constituição é falha no que diz respeito a essa hierarquia. Não determina como um tratado entra em vigor no Brasil, nem mesmo a hierarquia que vai ocupar. Pelo costume, se temos uma lei federal e um tratado entra em vigor, ele vai revogar essa lei. Mas, se depois entra em vigor outra lei, há duas possibilidades. A primeira é dizer que a lei federal é impotente para revogar o tratado, ou seja, hierarquicamente inferior. A outra coloca tratado e lei na mesma hierarquia e, portanto, o tratado que vem depois revoga a lei, assim como a lei posterior revoga o tratado. Durante muitos anos, o Supremo entendeu pela primeira possibilidade. Mas o Supremo reviu sua jurisprudência e equiparou os tratados às leis federais. Esse entendimento é perigoso porque a lei revoga o tratado para o Brasil, mas não para o exterior. O país pode, então, ser responsabilizado por descumprir uma regra a que ele se comprometeu internacionalmente. Por isso, na minha opinião, a primeira opção é a mais segura para o Brasil.

ConJur — E quando o tratado se choca com a Constituição?

João Grandino Rodas — Os tratados internacionais são regidos pela Convenção de Viena de 1969. Essa convenção diz que nenhum Estado pode alegar direito interno para não aplicar um tratado assinado, a não ser que esse tratado represente grave violação à Constituição do país.

ConJur — Essa discussão foi levantada no Supremo pelo ministro Gilmar Mendes. Quando o Plenário analisava a prisão do devedor em alienação fiduciária, Mendes questionou a possibilidade da prisão do depositário infiel, prevista na Constituição, mas não permitida no Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. O que tem de prevalecer, nesse caso?

João Grandino Rodas — A Convenção de Viena diz que os Estados têm de cumprir os tratados. Essa é a regra. A exceção é se o tratado traz grave violação à Constituição. No entanto, o Brasil não ratificou essa convenção. Por isso, não dá para dizer que o Brasil está obrigado a cumpri-la. Há jurisprudência no sentido de que o país é obrigado a cumprir a convenção não como lei, mas como costume.

Concorrência e concentração

ConJur — Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que altera o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. A proposta é boa?

João Grandino Rodas — O projeto não é revolucionário, já que praticamente nada muda na definição dos ilícitos concorrenciais. Ele é mais estrutural. Junta o Conselho Administrativo de Defesa do Concorrência (Cade) com a Secretaria de Defesa Econômica na chamada Promotoria da Concorrência. Mas traz alguns pecados. Por exemplo, quando determina multas estratosféricas. Cerca de 80% das empresas brasileiras fecham se tiverem de pagar essas multas corrigidas. Não pode concorrência ou morte. Para existir a concorrência, é preciso ter empresas. A concorrência existe dentro de um sistema. É verdade que a lei da concorrência precisa ser atualizada. Mas, para que ela seja boa, tem de ter a participação do governo, das empresas e dos advogados que militam na área. Desde 2000, a única coisa que até hoje permanece no projeto e é unânime é a exigência de análise prévia de casos de fusão. Hoje, a lei permite que seja prévia ou posterior. A tendência é ser posterior.


ConJur — O senhor é a favor da análise prévia dos atos de concentração?

João Grandino Rodas — Eu era um fervoroso adepto, mas hoje mudei de idéia. A análise prévia é melhor na maioria dos casos. Mas, se for obrigatória para todos, o Brasil não poderá mais participar de grandes leilões internacionais. A análise prévia vai demorar, vai amarrar as empresas, que não poderão participar desses leilões. A solução seria a adoção da análise prévia como regra, desde que haja a previsão para a análise posterior em alguns casos.

ConJur — O que é importante para que o sistema de defesa da concorrência funcione?

João Grandino Rodas — A transação na esfera administrativa tem de ser valorizada. Não se pode esperar que o Judiciário resolva tudo. É importante que três partes sejam protagonistas nesse processo: governo, advogados contenciosos da concorrência e as empresas. O Direito da Concorrência tem de ser balanceado, não dá para ter só um desses três agindo. Um fator importante que tem de ser observado é que o sistema de defesa da concorrência não é uma necessidade constitucional. Ele pode ser riscado por lei ordinária. Por isso, tem a obrigação de se justificar e de ser eficiente dia a dia.

ConJur — Mesmo porque todas as decisões do Cade podem ser questionadas no Judiciário.

João Grandino Rodas — Eu vejo isso com bons olhos. Embora o Cade seja um órgão especializado, as soluções não podem ser imunes à revisão do Judiciário. Este tende a ver as questões de uma maneira mais global, menos limitada. O Cade pode acreditar que deu a solução mais justa e o Judiciário, com sua visão mais ampla, dizer que não. É uma troca. O Judiciário aprende com o Cade e o Cade aprende com o Judiciário. Dá junção desses dois, podemos ter fundamentos que dêem mais segurança jurídica às empresas. O Cade já fez importantes mudanças por via da sua jurisprudência. Mas, como vivemos em um país civil law, a jurisprudência não traz a mesma segurança que a lei. O Brasil já é bem reconhecido pela sua concorrência, mas pode ser ainda mais.

Ensino do Direito

ConJur — Por que as faculdades públicas são mais conceituadas do que as privadas?

João Grandino Rodas — As faculdades públicas recebem os alunos mais bem preparados, que são os mais aptos a absorver o ensino de qualidade que recebe. Isso faz com que os egressos dessas escolas sejam também mais bem preparados no mercado de trabalho.

ConJur — A proliferação de faculdades privadas de Direito no país também não colabora com esse conceito?

João Grandino Rodas — Temos mais de mil cursos de Direito espalhados pelo Brasil. É um número estratosférico. O crescimento de cursos foi muito grande nos últimos anos. Não conheço outro país que tenha não só um número tão grande como uma crescimento tão grande de faculdades de Direito.

ConJur — A conseqüência disso é o aumento desenfreado de bacharéis em Direito. O senhor considera que Exame de Ordem funciona como um filtro para o mercado?

João Grandino Rodas — Se o Exame de Ordem não existisse, a advocacia seria um caos absoluto. O Exame ajuda a conter isso, mas exige dos alunos o mínimo, e não o máximo. Isso não poderia ser diferente. Mas só o Exame de Ordem não é suficiente para melhorar a profissão jurídica. As escolas também têm de fazer alguma coisa.

ConJur — Como o conteúdo não é unificado, as provas da OAB acabam sendo mais fáceis em alguns estados e mais rigorosas em outros. Isso desequilibra o mercado?

João Grandino Rodas — A Ordem precisa se atentar para que o país tenha uma centralização federal. Mas, em um país continental como o Brasil, isso é impossível de ser absolutamente resolvido. Mesmo porque até no mesmo estado podemos ter um exame mais fácil e, no ano seguinte, um exame mais difícil. Mas é claro que a OAB deve zelar por um padrão mínimo no Brasil inteiro para evitar que bacharéis se formem em um estado e viajem para outros para fazer as provas.

ConJur — Qual a sua opinião sobre a proliferação de cursos preparatórios, tanto para o Exame de Ordem como para carreiras da magistratura e do Ministério Público?

João Grandino Rodas — Um aluno que fez a faculdade de Direito durante cinco anos deveria saber, pelo menos, como estudar. Creio que não exista nenhum outro país onde os cursos preparatórios sejam tão procurados como no Brasil. É um absurdo. Os alunos vão, em um primeiro momento, obter o diploma. Em um segundo momento, descobrem que precisam saber alguma coisa, pois estão diplomados mas não sabem nada. O número de cursos preparatórios demonstra claramente a falência do ensino jurídico no Brasil. Nas escolas de Direito, todos os alunos conseguem se formar. Alguns são imaturos ou ocupados e, já que passam de ano sem estudar, não estudam. Isso chega a ser estelionato. O aluno faz a faculdade, tira notas boas, mas sai dela sem saber nada. A proliferação de cursos preparatórios é resultado da avaliação deficiente que as faculdades fazem. No momento em que passarem a exigir mais dos alunos, eles sairão da faculdade com o diploma e com o conhecimento necessário. A escola tem uma obrigação legal, moral e ética de exigir dedicação dos estudantes.


ConJur — Deveria existir menos faculdades de Direito?

João Grandino Rodas — Com o aumento indiscriminado dos cursos, deve ocorrer a seleção natural: ficam no mercado apenas as melhores. Esse fenômeno já dá para ser notado hoje. Um grande número de faculdades particulares tem diminuído o número de vagas. Já as que são tradicionais, que tinham um número de vagas fechado, tendem a aumentar. Isso porque elas aproveitam o nome que têm para preencher as novas vagas. Por um lado, isso é bom porque se tratam de cursos de Direito consolidados. Mas fica a pergunta: até que ponto essas universidades poderão manter o mesmo nível de ensino ampliando indiscriminadamente o número de vagas?

ConJur — A OAB devia ter um parecer decisivo na hora de abrir cursos de Direito?

João Grandino Rodas — Nos anos em que eu fiquei no Ministério da Educação, notei que o parecer da OAB era sempre contrário à abertura de novos cursos. Essa política de ser contra indiscriminadamente à abertura de cursos me deixa em dúvida se a OAB deveria ter esse poder de veto. Mas, sem isso, é normal que acabe tendo um politização na abertura de instituições, que já faz parte da tradição brasileira. Embora não haja como exorcizar absolutamente a questão política, tem de haver uma maior seriedade do Ministério da Educação e dos conselhos federais de educação.

ConJur — Há duas gerações, o ensino fundamental e médio era melhor nas escolas públicas do que nas privadas. Esse quadro se inverteu. Pouquíssimas pessoas que podem pagar escolas particulares colocam seus filhos em escolas públicas. Esse fenômeno pode ocorrer com as faculdades?

João Grandino Rodas — No momento em que as faculdades públicas deixarem de receber os melhores alunos, teremos uma revolução no próprio mercado. Um aspecto extremamente negativo da faculdade pública é que ela dedica mais de 80% do orçamento para pagar o corpo docente. Sobra muito pouco para as renovações. Por isso, elas procuram financiamento externo por meio de suas fundações e de ex-alunos para completar aquilo que o poder público não pode proporcionar. Quando essa equação financiamento externo e melhores alunos não fechar mais, só a tradição das faculdades públicas não garantirá a sua grande procura. Mas por enquanto, não há esse risco.

ConJur — Há diferenças entre o corpo docente de faculdades públicas e privadas?

João Grandino Rodas — Os professores das públicas normalmente são concursados e, por isso, podem exprimir suas idéias sem medo de perder o emprego. Nas públicas, o corpo docente é mais estável. Nas particulares, ainda que renomadas, isso não acontece. A direção das faculdades troca. A ideologia do corpo docente não agrada mais e ele acaba sendo trocado. Por isso que eu considero que, nas públicas, o ensinamento é mais diversificado, menos pasteurizado.

ConJur — O que é preciso para melhorar o ensino jurídico no Brasil?

João Grandino Rodas — A primeira coisa é o número de alunos por sala de aula. Não é forçando o aluno a estar na sala de aula que o problema será resolvido. A participação tem de ser incentivada. Para isso, tem de ter menos alunos por sala de aula. Não dá para ter 120 alunos na sala. Outra questão é a avaliação. Os alunos têm de ser mais cobrados. Nós sabemos que, se a exigência for maior, melhor será o aprendizado. E isso é bom para o aluno.

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