Direito da minoria

Formas de trabalho são marginalizadas pelo próprio Direito

Autor

  • Vilma Dias B Gil

    é advogada e consultora trabalhista do escritório Dias Advogados. É também professora associada da Universidade Mackenzie e ex-auditora fiscal do Trabalho.

16 de janeiro de 2007, 23h01

Em tempos de reforma trabalhista, faz-se necessária uma reavaliação das fronteiras do Direito do Trabalho pois se de um lado precisa ser revisto para adequar-se aos novos tempos, de outro precisa resgatar a vocação original de agasalhar todo aquele que depende do seu próprio trabalho para sobreviver.

O traço definitivo que até hoje marcou a incidência de suas normas, a subordinação do trabalhador, merece ser reavaliado em face das profundas mudanças que vêm ocorrendo no campo das relações laborais, determinando novas e variadas formas de trabalho que, embora estejam a merecer proteção jurídica, se encontram marginalizadas pelo próprio Direito.

O universo de trabalhadores que, pelas mais variadas formas, não têm subordinação, porém dependem do capital alheio e são submetidos à condições desfavoráveis no trabalho, amplia-se cada vez mais. Por isso, é necessário ampliar o campo de aplicação das normas laborais. Numa visão prospectiva, sem essas mudanças, o Direito do Trabalho corre sério risco de cair no vazio, de tornar-se letra morta por absoluta ineficiência.

Embora da subordinação tenham se originado elaborações jurídicas que erradicaram muitos abusos, Efrén Córdova esclarece que apenas transcorridos três quartos de século desde sua consagração, começou também a dar sinais de constituir uma via demasiadamente estreita. Hoje já parece claro que, se as premissas econômicas do sistema laboral seguem apontando na mesma direção, o direito laboral corre o perigo de converter-se num direito protetor de uma minoria. A maioria passará a ser dos excluídos que representarão uma grande “massa desamparada”, capaz de “sacudir as bases da atual estrutura social”, o que gera sentimentos de insegurança e intranqüilidade na sociedade.

Supiot, por sua vez, também entende que a noção de subordinação já não permite abarcar a diversidade de formas de que se reveste o trabalho. Por esse motivo, o autor defende o estabelecimento de “um novo regime jurídico para a pessoa que trabalha, que ultrapasse os limites atuais do trabalho assalariado”.

O trabalho subordinado sempre mereceu atenção especial, o que não significa que deva ser elemento essencial de conexão com o Direito do Trabalho, até porque é cada vez mais difícil distinguir-se o trabalhador subordinado do independente.

Com efeito, observa-se, atualmente, uma interpenetração de situações de dependência e independência que caracterizam uma zona cinzenta, dificultando, cada vez mais, a correta percepção da condição do trabalhador e, conseqüentemente, dos direitos que lhe são aplicáveis.

De um lado, o trabalhador autônomo está cada vez mais integrado em organizações que utilizam, em sua estrutura operacional, dos serviços em rede de pequenas e microempresas, ou mesmo de profissionais liberais ou especializados, especialmente por meio da terceirização de serviços. Nesses casos, normalmente, o autônomo se torna impedido de estabelecer novas contratações até mesmo em razão da dedicação integral ao trabalho e passa a ter, no contrato com a grande organização, sua única fonte de sobrevivência.

Assim, além de depender economicamente do tomador de serviços, o autônomo submete-se às regras impostas na contratação, colocando-se em nítido estado de subordinação ou dependência. Passam a observar regulamentos que tratam de preços, atendimento à clientela, técnicas e normas de qualidade, agenciamento e de gerência, que são ministrados pela empresa dominante e beneficiária da atividade. Pesquisas na Europa evidenciam esse perfil na integração entre microempresários e pequenas empresas na estrutura empresarial dominante, terminando a empresa por controlar e dar ordens a esses “empresários”, tratando, algumas, até da indenização em caso de ruptura do contrato do prestador dos serviços.

De outro lado, o trabalhador subordinado distancia-se cada vez mais das condições de trabalho que permitiram, no passado, a elaboração do paradigma da subordinação jurídica, representada pela completa submissão do empregado ao comando do empregador e traduzida, entre outros elementos, numa forte ingerência na forma de execução dos serviços. Assim, é cada vez mais rarefeita essa ingerência e, por conseguinte, cada vez maior a autonomia do empregado quando, por exemplo, atua com teletrabalho ou outras formas de trabalho à distância. Além disso, o moderno conceito de empregabilidade reclama empregados multifuncionais, proativos, que diligenciem de forma criativa em prol do empreendimento, o que pressupõe maior autonomia em face do poder de direção.

Surge uma nova legião de trabalhadores que, por não se enquadrarem perfeitamente no modelo tradicionalmente concebido no Brasil, ficam à margem da proteção legal, engrossando as fileiras da informalidade. De fato, no Brasil, ou o trabalhador é empregado e tem direito a tudo ou é autônomo e não tem direito a nada. Ou seja, não há legislação a respeito. Essa situação tem trazido, para os operadores do Direito, grandes dificuldades na aplicação da norma e, em geral, causado grandes injustiças em nossa sociedade.

Hoje os tempos são bem diferentes daquele em que surgiu o Direito do Trabalho com vistas a proteger o trabalhador subordinado ao comando do empregador. Hoje, independentemente da forma como presta o serviço, o trabalhador depende totalmente do capital alheio para sua sobrevivência e de sua família. Afinal, o trabalho é o principal fator de inserção social.

Alguns países como França, Alemanha, Países Baixos, Itália, Inglaterra e Portugal resolveram a questão aplicando, total ou parcialmente, o Direito do Trabalho, utilizando-se do critério da dependência econômica ou de conceitos assemelhados, como o da parassubordinação.

A noção de parassubordinação foi desenvolvida pela doutrina italiana, exatamente em face do surgimento de novas e variadas relações jurídicas que têm por objeto a prestação de trabalho.

Para Giuseppe Ferraro, parasubordinazione é uma variedade da relação de trabalho autônomo, compreendida também num contrato de obra ou de obra profissional. É o reconhecimento jurídico de uma categoria de relação afim ao trabalho subordinado com um resultado semelhante. Por exemplo, os contratos dos profissionais liberais, de representação comercial e outras relações de colaboração que se concretizam em uma prestação de trabalho continuativa e coordenada, prevalentemente pessoal, que não se caracteriza como subordinada.

Para Giuzeppe Tarzia, envolve relações de trabalho que, embora sejam desenvolvidas com independência e sem a direção do destinatário do serviço, se inserem na organização deste; diz respeito a um regime de colaboração entre as partes e não exatamente de subordinação, pois há total autonomia na prestação de serviços; o trabalhador organiza sua própria atividade.

A parassubordinação se concretiza nas relações de natureza contínua, nas quais os trabalhadores desenvolvem atividades que se enquadram nas necessidades organizacionais dos tomadores de seus serviços, contribuindo para atingir o objeto social do empreendimento, a exemplo do representante comercial e do profissional liberal, quando o trabalho pessoal deles seja colocado, de maneira predominante, à disposição do contratante, de forma contínua. Ou seja, relações em que estejam presentes pessoalidade, habitualidade, onerosidade e, no lugar da típica subordinação, mera coordenação da organização nas quais estão integrados. Na parassubordinação, há autonomia, porém o trabalho é contínuo e se submete não ao poder diretivo do empregador, mas sim a uma coordenação superior.

A coordenação, segundo Giancarlo Perone, “denota o intento de utilizar organicamente a prestação do trabalho no âmbito da empresa, como pode ocorrer na representação comercial autônoma. Sendo a empresa uma organização na qual há um poder diretivo, é natural que nela coexistam diversos graus e títulos de ingerência pertinentes ao poder do empregador, correspondendo a diversas hipóteses de qualificação do vínculo jurídico”.

Esse vínculo, no caso da atividade coordenada, resulta de modo bilateral, de um acordo entre as partes quanto às determinações sobre tempo, modo e conteúdo da prestação, enquanto no caso de atividade subordinada provem de determinação unilateral do empregador como expressão do seu poder de direção.

Evidente, entretanto, que a proteção àqueles em cuja prestação de serviço não se vislumbra o elemento subordinação, deve dar-se de forma diversificada, garantindo-se apenas direitos fundamentais do trabalho, como limitação de jornada, remuneração digna, condições de higiene e conforto nos locais de trabalho e medidas efetivas de proteção à saúde e segurança dos trabalhadores, não-discriminação etc., cabendo aos órgãos de fiscalização e ao Judiciário o controle destas medidas.

Não se trata de criar um novo Direito do Trabalho, mas sim de estabelecer um marco regulatório para as relações de trabalho que, por força de sua brutal realidade, estão a exigir um regramento específico por parte do Direito, ciência à qual compete disciplinar as relações sociais, dentre elas as de trabalho, preservando os valores fundamentais declarados pela própria sociedade.

Cabe ao Estado estabelecer para todos os trabalhadores direitos mínimos fundamentais consagrados em quase todo o mundo, dentro de uma abrangência ampla do Direito do Trabalho, que terá como fator determinante de sua aplicação a dependência econômica do trabalhador ao capital e sua própria condição de ser humano e cidadão.

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  • é advogada e consultora trabalhista do escritório Dias Advogados. É também professora associada da Universidade Mackenzie e ex-auditora fiscal do Trabalho.

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