Entre mitos e realidade

Balanço entre acertos e desacertos é favorável ao MP

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15 de janeiro de 2007, 11h45

O ano de 2006 findou com pelo menos duas questões polêmicas: na Câmara, a Comissão Especial aprovou proposta de emenda ampliando o “foro privilegiado” para ex-titulares de cargos ou funções de maior relevo, inclusive nas ações de improbidade; no STF, o ministro Gilmar Mendes, julgando um processo, distanciou-se do tema sob apreciação para tecer, uma vez mais, graves críticas à atuação do Ministério Público, afirmando que a “história da ação de improbidade é também uma história de improbidades”.

É atribuída também ao ministro a afirmação, noutra passagem, de que nos últimos anos, de cada dez ações penais do MP, oito foram rejeitadas no STF por imperfeições. Embora isolados, tais acontecimentos têm eixos próximos: o foro tido como ideal para julgamento de ex-autoridades e a discordância — extensiva a juízes de primeiro grau — quanto à atuação de membros do MP de primeira instância, que não estariam aptos (?) a processar determinados agentes públicos e, pior, ex-titulares de cargos de maior envergadura. Os comentários do ministro receberam especial atenção de editorial do Estado no último dia do ano.

Uma premissa já se impõe, em resposta à indagação democraticamente posta no editorial: o MP está, sim, à altura de suas prerrogativas e responsabilidades institucionais. E tem dado inúmeras demonstrações nas iniciativas em defesa do patrimônio público, do meio ambiente e de outros interesses sociais. Para exemplificar, nos últimos dois anos o Ministério Público Federal propôs cerca de 300 ações de improbidade em todo o país, por atos considerados lesivos ao patrimônio público ou à probidade administrativa. Isso sem falar nas ações civis públicas e nas ações criminais. O MPF, sem alarde e de forma impessoal, cumpre seu dever.

Afirmar que a “história da ação de improbidade é uma história de improbidades” constitui injusta, indevida e lamentável generalização que, infelizmente, desmerece a atuação do MP. A instituição tem-se empenhado de forma austera e responsável no papel de fiscal da ordem jurídica e da moralidade pública. É penosa a função de “acusar sem paixão” e, cada vez mais, os membros do MP estão cônscios dessa responsabilidade. Incomodar, por meio de ações e fiscalizações, gera alto custo num país onde punir ainda constitui exceção.

O balanço entre acertos e eventuais desacertos é favorável ao MP, o que não autoriza descuido com o salutar exercício da autocrítica. Se houver excessos, seja de procuradores, seja de juízes — as instituições são compostas por homens, não por deuses —, os Conselhos Nacionais, instalados em 2005, aí estão para fiscalizar a gestão administrativa e financeira e, também, para promover responsabilidades. Não há o que temer.

Não se pode concordar com a versão de que boa parte das ações penais do MP seria rejeitada por vícios. Desconhece-se a base de dados que revele tal informação, mas seria importante ter acesso a registros desse naipe. É de lamentar, porém, a ausência, tanto no Ministério Público como no Judiciário, de bancos de dados minuciosos, capazes de fornecer informações suscetíveis de amplo cotejo e de diagnóstico preciso acerca da efetividade da função jurisdicional e da atuação do MP. É fundamental que os conselhos constituam bancos de dados com estatísticas a partir das quais seja possível visualizar o número de processos em curso, sua natureza e, principalmente, os resultados obtidos nos tribunais. Ganhariam Ministério Público e Judiciário maior transparência e credibilidade, criando-se saudável mecanismo de aferição permanente do funcionamento das instituições.

Não temos o dom da infalibilidade, mas é certo que o MP tem seguido na boa trilha da imparcial defesa da probidade, do patrimônio público e de outros valores sociais, bem como do combate à corrupção e ao crime organizado. Nisso consiste o interesse público, também o fim perseguido pelo Judiciário. O êxito da empreitada não pode ser alcançado apenas por um segmento institucional. Isso só será possível a partir da construção de um grande consenso entre as instituições, sem espaço para rivalidades ou desavenças desconstrutivas e despidas de sentido republicano. É urgente separar mitos e realidade.

Quanto ao foro privilegiado, sua adoção e, agora, a iminente ampliação para beneficiar ex-ocupantes de cargos públicos de maior relevo constituem equívoco manifesto que navega no contrafluxo da maré democrática. De fato, a idéia de igualdade é inerente ao Estado democrático de Direito, mas o Congresso, ignorando esse dado, insiste em conferir tratamento especial a quem exerceu uma função pública de destaque, assegurando julgamento diretamente por tribunais, e não por juízes de primeira instância. Mais que um privilégio a cargos, tem-se uma prerrogativa destinada às pessoas que os exerceram, o que significa, na prática, a cristalização de uma tradição aristocrática em pleno Estado republicano!

Numa avaliação apressada, o julgamento direto num tribunal seria mais rápido, em razão do encurtamento das instâncias a serem percorridas. Mas é aí que residem o problema do foro especial e suas conseqüências nefastas. É que nos tribunais — assoberbados com tantos recursos — as ações originárias tendem a caminhar de forma mais lenta, principalmente por não serem órgãos destinados à produção de provas. Com a lentidão se potencializa a prescrição — que, no Brasil, e apenas aqui, se conta de forma retroativa. E, com a prescrição, assistiremos ao incremento da impunidade. Será uma festa!

Imagine-se a situação dos chefes de Executivos municipais. São 5.560 ex-prefeitos a cada quatro anos. Em contrapartida, são apenas 26 tribunais estaduais e 5 Tribunais Regionais Federais para julgamentos de ações criminais e de improbidade. O congestionamento dos tribunais é facilmente antevisto, mas, infelizmente, parece ser essa a maquiavélica intenção subjacente no raciocínio dos artífices do foro privilegiado.

A história dirá.

Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, nesta segunda-feira (15/1).

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