A lei e a pena

Entrevista: Maurício Zanoide de Moraes, criminalista

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13 de janeiro de 2007, 23h00

Maurício Zanóide - por SpaccaSpacca" data-GUID="mauricio_zanoide.png">O motorista que vai feliz pela estrada em seu carro no fim de semana, levemente ou fortemente acima do limite de velocidade, como todo mundo faz, tira imediatamente o pé do acelerador ao ver o carro que vem em sentido contrário piscar os faróis. Faz isso automaticamente, sem pensar no tamanho da pena ou nas conseqüências de seu delito, convencido apenas pela certeza de que a punição o aguarda na próxima curva.

Com este exemplo singelo, o advogado criminalista Maurício Zanoide de Moraes quer afastar com veemência a tendência corrente de se pensar que é aumentando a pena para os criminosos que vai se acabar com a criminalidade. “Não é por aí”, diz Zanoide. “O que pode demover uma pessoa de praticar um delito é a certeza da punição, jamais o tamanho da pena”.

Zanoide, que acaba de concluir mandato de dois anos na presidência do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), se exalta ao falar de temas como este, levanta-se de sua cadeira, anda pela sala de entrevistas, gesticula com entusiasmo e indignação. Toda essa energia ele usa na tentativa de demonstrar que tudo poderia ser mais simples e mais eficaz se houvesse disposição política e honestidade por parte de quem está no poder, para enfrentar os problemas da forma como eles se apresentam.

Mas como falar de qualquer utilidade social do sistema prisional se em uma cadeia construída para abrigar 150 pessoas, como o presídio de Araraquara, no interior de São Paulo, o Estado mete lá dentro 1500 presos? O que esperar de um Código de Processo Penal feito em 1941, durante um regime autoritário, sob inspiração autoritária, que está em conflito permanente e aberto com a Constituição de 1988? A única coisa que se poderia esperar era um novo Código, mas nem essa esperança deve ser alimentada. “Porque códigos autoritários, como o Código de 41, são sempre bons para quem está no poder”, explica Zanoide.

Por isso, diz Zanoide e a história comprova, os Códigos são sempre feitos por regimes autoritários que os formulam em benefício próprio. Em momentos de vivência democrática a tendência é ir remendando os códigos e produzindo leis ao sabor do clamor público provocado pelo horror do último crime. Uma prática acentuada pela tentação de se querer fazer segurança pública com Direito Penal. “Política de Segurança Pública tem de funcionar para prevenir o crime, enquanto o Direito Penal só serve depois que o crime foi cometido”, ensina.

Apesar desta visão ácida das coisas do Direito Penal no país, Maurício Zanoide de Moraes se considera um otimista. É um entusiasta, por exemplo, do que faz o IBCCrim, que considera uma utopia concreta. Segundo ele, a entidade é uma demonstração de que pode existir um grupo grande de pessoas que se juntam para produzir ciência de maneira legítima e autônoma.

Aos 39 anos, Zanoide tem um extenso currículo. É cria da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde especializou-se em Direito Processual e depois tornou-se doutor. Especializou-se também em Direito Penal Econômico e Europeu por meio de um convênio formado entre a Faculdade de Direito de Coimbra e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Além de dar aulas de Direito na escola em que se bacharelou, é advogado criminalista atuante.

Participou também da entrevista o jornalista Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Qual sua opinião sobre o atual Código de Processo Penal?

Maurício Zanoide — Existem pessoas que são contrárias à mudança do Código, mas não confessam suas verdadeiras intenções. Querem que as coisas continuem do jeito que estão em benefício próprio. O Código de Processo Penal, que entrou em vigor em 1941, foi escrito com inspiração fascista. É quase uma cópia do Código Penal italiano, conhecido como Código Rocco, que foi feito durante o governo do Benito Mussolini, em 1930. O Código brasileiro serviu para dar operacionalidade a um sistema inquisitivo, o preferido pelos regimes autoritários. Houve algumas alterações em relação ao italiano, para pior.

ConJur — Qual deve ser a influência da Constituição Federal de 1988 no Código de Processo Penal?

Maurício Zanoide — A Constituição é um ingrediente absolutamente característico e preponderante, sem o qual não há como se falar em processo penal. Eu só conheço o processo penal de um país quando leio a sua Constituição. O Código de Processo Penal é mera reprodução do que a Constituição já definiu. É ela que define e limita o poder do Estado, os direitos e deveres do cidadão. O Código traz tudo isso para o âmbito penal, materializa as disposições e as torna mais claras. A Constituição de 88 trouxe, por exemplo, a expressão “ampla defesa”. O Código só fala em direito de defesa. Se o termo mudou, é porque há diferença. É uma mudança significativa. O contraditório era contraditório e continua sendo contraditório. Temos uma dicotomia absolutamente intransponível entre a Constituição de 88 e o Código de Processo Penal de 41. Em regra, aplica-se o Código


ConJur — Mas e a Constituição?

Maurício Zanoide — As pessoas pensam: “a Constituição que se dane”. Por uma razão muito simples. É muito difícil transformar princípios constitucionais em normas claras. Portanto, é importante que seja escrito um novo Código de Processo Penal.

ConJur — Que seja escrito um novo ou reformado o que já temos?

Maurício Zanoide — A reforma não é saudável. O Código de Processo Civil, quando foi feito em 1973, representou um grande avanço para a época. Do final da década de 80 para cá, ele vem sofrendo reformas constantes, que o estão descaracterizando e desarmonizando. Essas mudanças fazem com que o Código perca a eficiência e a qualidade que tinha em 73. Quando o texto é escrito por inteiro fica muito mais harmônico, sistêmico e eficiente. Não é bom remendar para buscar uma modernidade ou avanço desejado.

ConJur — O que o senhor acha das reformas pontuais e das leis de ocasião? Aquelas que são feitas compelidas pelo clamor público?

Maurício Zanoide — Esse é um problema sistêmico e endêmico no Brasil. Nas reformas pontuais não há ordem, regra, harmonia, proporcionalidade ou coerência. É preciso que os códigos e leis se mostrem eficientes e se enquadrem nos moldes da Constituição e dos tratados internacionais que o Brasil subscreve. É importante ter uma base sólida, ideologicamente clara. Caso contrário, o sistema se torna ineficiente e começa a ter cada vez mais buracos. A insatisfação social cresce. Aí o governo faz leis para tapar o buraco da sua falta de coragem sistêmica. Para fazer uma reforma global é preciso investimento. Não se faz sem dinheiro e nem sem uma política pública. O governo não faz leis para que elas sejam eficientes, mas para que elas atendam uma demanda que normalmente vem manifestada na imprensa.

ConJur — Pode citar um caso em que isso aconteceu?

Maurício Zanoide — Há cerca de dez anos, a imprensa toda divulgou a venda de pílulas anticoncepcionais que, na verdade, eram placebos feitos de farinha. A ampla repercussão desse caso teve influência no aumento do rol dos crimes hediondos. Hoje, a pena de dez a quinze anos de prisão prevista para quem altera um remédio e aplicada também para quem mexe na fórmula em um cosmético. A pessoa que falsifica um batom, um esmalte e a pessoa que falsifica um medicamento para problemas cardíacos estão sujeitas à mesma punição. Isso não é razoável.

ConJur — Completamente desproporcional.

Maurício Zanoide — O homicídio doloso simples tem pena de seis a doze anos. Vender um esmalte com fórmula alterada dá de dez a quinze anos de prisão. Isso não faz sentido. O governo busca leis pontuais para dar uma satisfação à população e tentar resgatar a legitimidade perdida. Isso é para inglês ver, para a imprensa ver e para a população se sentir protegida. Aqueles que clamam por alterações na lei, por penas mais severas depois de cada crime de grande repercussão não dizem para a população que quando o Direito Penal é chamado à cena, a desgraça já está feita.

ConJur — E a segurança pública?

Maurício Zanoide — O Processo Penal não é instrumento de segurança pública. O Direito Penal não é instrumento de segurança pública. Para ser eficiente, não se pode buscar remédios depois que a doença está instaurada. O Direito Penal só serve depois que o crime foi cometido, depois que o mal já está feito. Cabe à Segurança pública ter capacidade de operação e inteligência preventivas à ocorrência do delito. Se perguntarmos para qualquer cidadão “você prefere que o bandido seja preso e não seja solto ou que ele não cometa o crime?”, qual será a resposta?

ConJur — O que pode ser feito, no lugar de aumentar pena?

Maurício Zanoide — Parar de dizer que tal pessoa está solta por culpa da Constituição seria um bom começo. Quem diz isso omite o tamanho do desemprego no país, omite também que na época do regime autoritário não se deixava ver o nível de corrupção e do desvio de dinheiro, como acontece hoje. Essas omissões levam as pessoas a imaginar que o entrave entre a segurança e a criminalidade é a Constituição. A grande perversidade é que a população não se dá conta disso.

ConJur — Qual a sua opinião sobre as garantias previstas na Constituição de 88?

Maurício Zanoide — As pessoas que fizeram a Constituição foram perseguidas no Regime Militar. A maior parte delas sentiu o peso do sistema autoritário, do sistema inquisitivo, da pena excessiva e do julgamento sem o devido processo legal. Então, o texto não poderia ser diferente. Essas pessoas fizeram a Constituição correta, o melhor que a humanidade tinha então. Elas não erraram. Além disso, a Constituição foi escrito assim porque, depois da 2ª Guerra Mundial, todos os diplomas humanitários internacionais do mundo, todos os tratados internacionais e todas as constituições passaram a ter esse perfil.


ConJur — Muitas das pessoas que ajudaram a escrever a Constituição estão no poder hoje. Não seria natural que fizessem um Código de Processo Penal observando a Constituição?

Maurício Zanoide — Esse é justamente um dos entraves para a reforma do Código de Processo Penal. Todo mundo que está no poder quer o poder absoluto. Democracia é um problema. Ela exige que todos os dias eu seja responsável pelo meu governo. Essas pessoas não gostam de fiscalização. O Código de Processo Penal que temos é um instrumento da inquisição e do autoritarismo. Ele serve muito bem aos donos do poder, não importa quem. Por isso, ninguém quer mudar o Código. Essa é grande história por trás das reformas. “Pô, logo na minha vez!?”. É o que devem estar pensando os homens hoje em dia: “durante séculos e séculos, as mulheres foram submissas, subalternas, nunca mandavam ou falavam. Elas eram serviçais. Logo agora, na minha vez, elas resolveram ter direitos iguais?” Para o poderoso, é muito mais fácil que haja mulheres desamparadas e insegurança pública. Porque quando aparece um problema e há grande comoção, ele surge como o salvador da pátria. Edita uma nova lei para salvar as fracas e oprimidas que andam na rua correndo o risco de serem assaltadas ou violentadas. Isso é fruto da ineficiência completa do Estado, do alto nível de corrupção das esferas públicas.

ConJur — Prender não ajuda a manter o controle?

Maurício Zanoide — Ajuda a perder o controle. Não adianta prender. O presídio de Araraquara foi construído para 150 presos. Tinha 1.490 lá dentro. Houve uma rebelião. Para controlá-los tiveram de soldar as portas. A comida era jogada por cima. Os que precisavam sair eram içados por cordas. Essa é uma prova visual, um símbolo de que quando colocamos mais de mil pessoas em um lugar que foi construído para comportar 150, o Estado perde o controle.

ConJur — Se não é do Estado, de quem é o controle dos presídios?

Maurício Zanoide — Mesmo sem o apoio do Estado, essas pessoas vão sobreviver. Elas vão fazer o que for necessário para sobreviver: se prostituir, se seviciar, vender drogas, servir de mão-de-obra para o crime organizado. Não adianta um preso doente pedir remédio para o Estado. Quem vai dar são os presos que controlam o presídio. Portanto, quando o Estado enche as celas, está dando mão-de-obra de graça para o crime organizado. Quando enche as celas, está automaticamente se excluindo de dentro delas. Um Estado que se exclui de dentro da cela não controla o sistema carcerário.

ConJur — Existe uma forma de brecar o furor legiferante?

Maurício Zanoide — Existe. Precisamos de parlamentares honestos, mais eficientes e inteligentes. Que reconheçam que o sistema precisa de mudanças e de investimentos. Mas isso vai demorar. Um professor dizia, no final de década de 80, que só teremos um novo Código de Processo Penal sob a batuta de um novo regime autoritário. Foi aí que descobri a história dos nossos Códigos de Processo Penal.

ConJur — E qual é essa história?

Maurício Zanoide — O primeiro foi emprestado. Eram as Ordenações do Reino que vieram de Portugal. Regime autoritário, de dominação clara da colônia. Depois, a nação inteira se avultou. Foi às ruas e nos braços de uma população absolutamente consciente do espírito nacional dessa colônia, conquistou a independência de Portugal (risos). Veio o Código Criminal de 1830. Dois anos depois, o Código de Processo Criminal. Eles foram escritos logo depois da Constituição de 1824. Dom Pedro I convocou uma Assembléia Constituinte para escrevê-la e ninguém fazia nada. Ele resolveu a situação. Juntou a Constituição americana de Louisiana com a Constituição francesa e inventou o Poder Moderador. Com base nessa criação tivemos o primeiro Código Criminal brasileiro. Depois da Proclamação da República, tivemos a Constituição de 1889, que permitiu que se fizessem os códigos estaduais que duraram até a virada do século. Em 1940, nasceu o último, editado no segundo governo de Getúio Vargas, logo depois da Constituição de 1937, conhecida como Polaca e por seu autoritarismo.

ConJur — E o que tem esses códigos em comum?

Maurício Zanoide — Todos os códigos foram feitos sob regimes autoritários. Hoje, o Direito Penal está sendo usado para marginalizar a população. Ao mesmo tempo serve para controlar os avanços. Não é a toa que os crimes que tiveram as penas mais aumentadas são aqueles contra o patrimônio. Apesar de todo mundo saber que os crimes mais importantes são os crimes contra a vida. Claro. Quem está no poder é quem tem patrimônio.

ConJur — Em que casos o senhor defende a prisão?

Maurício Zanoide — Para os crimes violentos. Para pessoas que precisam de tratamento psiquiátrico. Àquelas que não têm condições de respeitar a integridade física do outro, que são instáveis. As penas alternativas resolveriam de maneira satisfatória e mais saudável os crimes que têm repercussão patrimonial ou de falsificação de documento e estelionato. Mas quero deixar claro que pena alternativa não é dar cesta básica.


ConJur — O que fazer para enfrentar o aumento da criminalidade?

Maurício Zanoide — É preciso neutralizar as causas da violência, que geram o crime. Para atingirmos um estado de segurança pública, é preciso combater essas causas. Quando um crime acontece, não há segurança pública. Esse combate começa quando se oferece escola e saúde de qualidade para todas as crianças. Em uma determinada faixa etária, estragos já foram feitos. Nesses casos, tem de se administrar o problema. O que não se pode achar é que esse passivo vai diminuir de forma espontânea. A tendência é aumentar. As pessoas não conseguem entender a seriedade disso. Para esconder a ineficiência, aumentam a pena. Não adianta.

ConJur — Aumentar a pena não ajuda a diminuir o crime?

Maurício Zanoide — Nunca. Vou dar um exemplo. Talvez entendam qual a diferença entre sensação de impunidade e pena. Nós que estamos nessa sala somos todos honestos. Bandidos são sempre os outros. Todos os que dirigem e que já pegaram uma estrada vão entender. Todos dirigem em excesso de velocidade, sem exceção. Isso é um fato. Se na placa estiver escrito 80km, estão a 100km. Se estiver escrito 100, estão a 120. De repente, em sentido contrário, vem um outro veículo e dá sinal de farol alto. Você está em excesso de velocidade. Qual a sua reação?

ConJur — Tiro o pé.

Maurício Zanoide — Todas as pessoas dizem que pisam no freio. E por que pisam no freio? Porque quando a pessoa dá o farol, através de um sinal, está querendo dizer: “Meu preclaro concidadão, você está em excesso de velocidade e, portanto, colocando em risco não só a sua vida, mas também a vida de todas as demais pessoas nesta estrada. Quero lhes lembrar que em 1997 foi editado o novo Código de Trânsito com punições severíssimas e que o excesso de velocidade lhe trará, além de um processo criminal, porque você está dirigindo de forma perigosa, sanções administrativas e uma multa classificada como gravíssima. O que pode, inclusive, lhe retirar o direito cívico de dirigir. Portanto, ao lembrar você dessas questões severas de um Código de Trânsito duro nas suas penas, eu lhe rogo que tome consciência e volte à velocidade permitida.”

ConJur — Certamente… (risos)

Maurício Zanoide — O que o farol alto do outro carro quis dizer é simplesmente que a punição está à espreita na próxima curva. E como você não sabe, mas acreditou que a punição está lá, pisa no freio. É a consciência da punição que faz com que as pessoas se comportem. Penas altas, para um sistema que não funciona, não é freio para ninguém. Quem sai para cometer crimes têm a nítida certeza de que não será pego. Se por um momento ele acreditar que pode ser pego, volta atrás e não comete o crime. A confiança que se tem na pessoa que dá o farol é primordial para que a sociedade viva tranquilamente. Não passa pela cabeça de ninguém questionar se o sinal recebido é verdadeiro ou não. Ninguém duvida e acelera mais. Esse é um comportamento humano, sociológico. Lutar para aumentar pena não adianta. Mas muitos não entendem isso e a imprensa também não ajuda. Manipula, distorce.

ConJur — Falta a consciência de que prisão sem condenação definitiva, só em casos excepcionais.

Maurício Zanoide — Quando Pimenta Neves foi solto meus alunos não entendiam como um réu confesso, condenado pelo Tribunal do Júri, pode ganhar liberdade. Isso está certo. É o mínimo de humanidade. Ele não pode ficar preso se ainda tem direito de recorrer. Isso é básico em qualquer sistema democrático do planeta. O problema é outro: é a demora de seis anos para ser julgado pelo Tribunal do Júri. As pessoas querem ver a punição na curva. Quando a punição demora a chegar, querem condená-lo no meio do caminho. Se acreditassem que o processo será curto e rápido, não teriam esse problema. Não se pode rasgar a presunção de inocência, um dos princípios mais importantes do regime livre, porque o Estado é ineficiente e não cumpre outro princípio constitucional, que é o prazo razoável do processo. A Suzane von Richthofen foi solta da primeira vez porque estava há três anos e meio presa esperando para ser julgada. Isso não pode ser admitido.

ConJur — Mas o princípio da presunção de inocência deve incidir mesmo quando o réu confessa o crime?

Maurício Zanoide — A confissão não significa a condenação. Esse meio de prova chamado confissão não resolve a questão sozinho. Houve uma época em que essa era conhecida como a rainha das provas: no auge da Santa Inquisição. Não existia outra prova. A única prova que os inquisidores queriam era a confissão. Para obter a confissão, regulamentaram em lei escrita pelo papa que a tortura era permitida. A obra é do papa Inocêncio IV. Existem dois livros muito interessantes que tratam dessa regulamentação. Manual dos Inquisidores e O martelo das feiticeiras. Esse último começa com a tradução da Bula Papal de Inocêncio IV e mostra como as mulheres eram tratadas. Como eram incultas e não eram educadas, exceção feita às rainhas e às princesas, qualquer mulher que raciocinasse estava possuída pelo diabo. E, portanto, podia ser queimada na fogueira, conforme regulamentado em lei. Durante muito tempo, essa lei era considerada uma lei santa.


ConJur — Por isso a confissão não pode ser aceita?

Maurício Zanoide — A cultura de entender que quem confessa é culpado vem da época da Inquisição. É uma estrutura católica. Isso não é uma crítica à Igreja Católica, é um fato histórico. Se digo que a mulher está possuída pelo diabo quando dá uma opinião, quero também que neguem que a Terra gira em torno do Sol. Todos sabemos que é o Sol que gira em torno da Terra, certo? Eles fizeram isso com Galileu.

ConJur — O que o senhor acha do RDD (Regime Disciplinar Diferenciado)?

Maurício Zanoide — Eu sou totalmente contra. Quando o projeto de lei estava sendo votado no Congresso, em meados de 2003, fui até lá para tentar convencer os congressistas a não aprovarem. Levamos todas as explicações para justificar a nossa posição: desde as de custo até as questões criminológicas, para dizer que o RDD não adianta. Um congressista olhou para mim e disse: “Doutor, tudo o que o senhor está falando está certo, mas como é que eu explico isso para a imprensa? Não dá doutor, eu já negociei no Congresso. O senhor vai me desculpar, mas o projeto vai ser aprovado”.Depois disso, eu parei de ir à Brasília para discutir as reformas de lei com os congressistas. Quando a perspectiva de concerto é tratada dessa forma, eles conseguem tirar a nossa esperança.

ConJur — O que acha de os advogados terem de ser revistados ao entrar em presídios?

Maurício Zanoide — A Lei 10.792, de dezembro de 2003, determina que todas as pessoas que ingressarem no presídio devem passar por detector de metais. Juiz, promotor, policial, vigilante sanitário, carcereiro, encanador, eletricista, mulher, todo mundo tem de passar pela revista eletrônica. É uma discussão pobre, pequena, ficar individualizando pessoas e métodos de revistas dessas pessoas. O melhor é uniformizar, como defende a OAB: todos se submetem aos detectores de metal, como nos aeroportos. É uma questão de segurança. É assim que acontece nos bancos. Nenhum juiz, promotor ou advogado reclama quando tem que tirar o celular do bolso para passar pela porta giratória. É por isso que o Brasil está onde está. Cada um cuida do seu.

ConJur — Há uma tendência de flexibilização do Direito Penal?

Maurício Zanoide — Sim. O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal têm sido corajosos. Uma parte significativa dos ministros, na área criminal, tem tomado posturas que exigem coragem. Isso é uma esperança. O que me deixa triste é ver que a voz dessas pessoas, embora absolutamente afinadas com a Constituição, com os melhores estudos e regras do Direito, são descompassadas com os anseios da população. Não porque estão erradas, mas porque a população é inculta. O governo as torna ignorantes. Uma vez, um aluno desenvolveu o seguinte raciocínio: Se o Congresso é uma casa onde os representantes do povo estão, se os representantes do povo devem representar a vontade da população e se a população quer a pena de morte, qual é o erro desses congressistas darem à população o que está pedindo?

ConJur — Qual foi a sua resposta?

Maurício Zanoide — O raciocínio dele é brilhante. Linear, lógico. No entanto, a lógica é falsa. As pessoas que formam a grande massa da população têm pouca informação para que possam escolher com discernimento. Elas não conseguem decidir de maneira global. Existem professores universitários que defendem a pena de morte. Mas isso é uma escolha pessoal. Se toda a população tivesse acesso ao conhecimento de um professor universitário de Direito e decidisse pela pena de morte, ótimo. Não é um só governo que vai acabar com essa falta de informação. A situação é difícil. Então, para que o Direito Criminal comece a ser consertado, primeiro é preciso que a educação no país esteja correta.

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