Cicarelli faz filosofar

Quem manda na internet são os softwares, não as leis

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11 de janeiro de 2007, 12h22

Quem diria que a modelo Daniela Cicarelli, além de bonita e famosa, é também a protagonista de episódio que desperta reflexões de filosofia do Direito da mais elevada importância.

Em 1999, Lawrence Lessig, professor de direito constitucional de Harvard escreveu um instigante livro sobre a internet (Code and other laws of cyberspace). Nele, defendeu a polêmica tese de que, na rede mundial de computadores, as condutas não são disciplinadas pelas leis, mas pelos softwares. Se o Código (isto é, o programa de computador) permite determinada ação, ela não pode ser obstada pela lei; e o inverso também é verdadeiro: se não permite, lei nenhuma pode obrigá-la.

Quem quiser conhecer o livro do Lessig, pode não só lê-lo gratuitamente como até mesmo contribuir para o seu aperfeiçoamento. A segunda edição está disponibilizada na internet com o emprego da ferramenta Wiki, o que permite a qualquer interessado propor acréscimos pertinentes à reflexão desenvolvida na obra.

A controvertida tese parece, em certo sentido, confirmar-se com a recente tentativa de tornar efetiva uma ordem judicial, dada em atenção a pedido da modelo e seu namorado. Todos sabem o que aconteceu: o vídeo mostrando despudorado namoro deles numa praia espanhola está sendo veiculado, há meses, por vários sites, inclusive o YouTube. A Justiça Brasileira determinou que a transmissão do vídeo fosse suspensa, mas o cumprimento desta ordem deparou-se com sérias dificuldades técnicas. Durante algumas horas, o acesso dos internautas brasileiros ao site YouTube foi bloqueado em decorrência dessa ordem judicial.

A dificuldade de se cumprir a ordem da Justiça — suspensão da veiculação de um específico vídeo num site — deve-se a questões técnicas, ou seja, à conformação do software empregado na disponibilização do material na rede mundial de computadores. Se houvesse um filtro capaz de “obedecer” à determinação dos juízes, o YouTube não poderia alegar dificuldades em atender à ordem de suspensão. Este filtro deveria ser capaz de automaticamente impedir que qualquer internauta pudesse postar novamente o vídeo da Cicarelli, depois de ele ser removido.

Mas o filtro não existe e sua implementação tende a ser custosa. Na estruturação do Código do YouTube (do software), ele era plenamente dispensável em vista dos objetivos do site e do jovial culto à liberdade de manifestação, que inspira sua proposta.

Lessig talvez não dispusesse de exemplo melhor para ilustrar sua tese. A ordem judicial brasileira só poderia ser cumprida se o YouTube alterasse seu software. Enquanto isso não acontece, certas ações dos internautas (cuido da ação de postar de novo o vídeo da Cicarelli sempre que for retirado do ar) estarão “permitidas”. A lei vigente, que protege o direito da personalidade, e que a Justiça considerou prima facie desrespeitada, não pode ser cumprida, porque o software não tem como dar-lhe guarida.

Se a modelo e seu namorado não tivessem se excedido nas libidinosas carícias ou se não tivessem ido aos tribunais procurar barrar a divulgação do vídeo, as discussões em torno da tese sobre a regência das ações no cyberspace pelo software (e não pelo ordenamento jurídico) não teriam ainda um fato real tão significativo e mundialmente difundido para tomar por referência. Quem diria. Cicarelli ainda nos faz filosofar.

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