Quem diria que a modelo Daniela Cicarelli, além de bonita e famosa, é também a protagonista de episódio que desperta reflexões de filosofia do Direito da mais elevada importância.
Em 1999, Lawrence Lessig, professor de direito constitucional de Harvard escreveu um instigante livro sobre a internet (Code and other laws of cyberspace). Nele, defendeu a polêmica tese de que, na rede mundial de computadores, as condutas não são disciplinadas pelas leis, mas pelos softwares. Se o Código (isto é, o programa de computador) permite determinada ação, ela não pode ser obstada pela lei; e o inverso também é verdadeiro: se não permite, lei nenhuma pode obrigá-la.
Quem quiser conhecer o livro do Lessig, pode não só lê-lo gratuitamente como até mesmo contribuir para o seu aperfeiçoamento. A segunda edição está disponibilizada na internet com o emprego da ferramenta Wiki, o que permite a qualquer interessado propor acréscimos pertinentes à reflexão desenvolvida na obra.
A controvertida tese parece, em certo sentido, confirmar-se com a recente tentativa de tornar efetiva uma ordem judicial, dada em atenção a pedido da modelo e seu namorado. Todos sabem o que aconteceu: o vídeo mostrando despudorado namoro deles numa praia espanhola está sendo veiculado, há meses, por vários sites, inclusive o YouTube. A Justiça Brasileira determinou que a transmissão do vídeo fosse suspensa, mas o cumprimento desta ordem deparou-se com sérias dificuldades técnicas. Durante algumas horas, o acesso dos internautas brasileiros ao site YouTube foi bloqueado em decorrência dessa ordem judicial.
A dificuldade de se cumprir a ordem da Justiça — suspensão da veiculação de um específico vídeo num site — deve-se a questões técnicas, ou seja, à conformação do software empregado na disponibilização do material na rede mundial de computadores. Se houvesse um filtro capaz de “obedecer” à determinação dos juízes, o YouTube não poderia alegar dificuldades em atender à ordem de suspensão. Este filtro deveria ser capaz de automaticamente impedir que qualquer internauta pudesse postar novamente o vídeo da Cicarelli, depois de ele ser removido.
Mas o filtro não existe e sua implementação tende a ser custosa. Na estruturação do Código do YouTube (do software), ele era plenamente dispensável em vista dos objetivos do site e do jovial culto à liberdade de manifestação, que inspira sua proposta.
Lessig talvez não dispusesse de exemplo melhor para ilustrar sua tese. A ordem judicial brasileira só poderia ser cumprida se o YouTube alterasse seu software. Enquanto isso não acontece, certas ações dos internautas (cuido da ação de postar de novo o vídeo da Cicarelli sempre que for retirado do ar) estarão “permitidas”. A lei vigente, que protege o direito da personalidade, e que a Justiça considerou prima facie desrespeitada, não pode ser cumprida, porque o software não tem como dar-lhe guarida.
Se a modelo e seu namorado não tivessem se excedido nas libidinosas carícias ou se não tivessem ido aos tribunais procurar barrar a divulgação do vídeo, as discussões em torno da tese sobre a regência das ações no cyberspace pelo software (e não pelo ordenamento jurídico) não teriam ainda um fato real tão significativo e mundialmente difundido para tomar por referência. Quem diria. Cicarelli ainda nos faz filosofar.
Comentários de leitores
21 comentários
Carlos o Chacal (Outros)
Caro professor Vieira da Silva, não é a juventude dos magistrados a causa das sentenças "estapafúrdias". Essas saem até das brancas cabeças dos ministros dos nossos tribunais superiores.
Vieira da Silva (Professor)
Meu jovem jornalista Domingos da Paz, só posso dizer-lhe uma coisa:PARBÉNS. A nossa justiça carece de profundos reparos, principalmente ao vermos a sua mesquinha imparcialidade, sendo redundante em tratar pessoas famosas como príncipes, ao passo que os menos favorecidos são vistos como lixo. Os nossos Divinos culpam as leis, ao permitirem a rodada infinita de recorrências e os ricos, pelo dinheiro que têm e a vontade de gastá-lo. Até o Chaves sabe que não é por aí, porque Justiça é Justiça e ponto final. Se olharmos para o nosso Judiciário vemos magistrados com vinte e poucos anos de idade, um absurdo aos olhos de qualquer um. Daí sentenças estapfúrdias, sem abrigarem o caráter social dos julgamentos, o que torna a justiça distributiva numa concentração de classes sociais. Juízes têm de ser pessoas maduríssimas, vivenciadas e tudo mais, o que não pode ser visto em quem alcançou a magistratura em tenra idade. Viva o Brasil. Ariosvaldo Vieira da Silva, Ph.D.
Fábio (Advogado Autônomo)
Minha Cara LUCIANA2007, se o papparazzo é essa praga que você fala, porque a CICARRELI não o processou??
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