Calote dos precatórios

Precatórios: cartinha de banco vale mais que decisão judicial

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9 de janeiro de 2007, 6h00

Você investiria em um país cujo governo não cumpre as ordens judiciais de pagamento, após longos processos no Poder Judiciário? Um país onde dezenas de milhares de pequenos credores alimentares já morreram, com um papel (a ordem judicial) inútil em suas mãos, que não serve nem para pagar os impostos exigidos por seu próprio devedor? Um país que não contabiliza suas dívidas judiciais (que ficam no caixa 2) para enganar eleitores e continuar tomando dinheiro emprestado dos bancos, apresentando balanços fraudados, e alegando “contas em ordem”, “superávit”?

Pois é, esta nação existe e não é o Haiti, é o nosso querido Brasil (“Ordem e Progresso”, lembrem-se, como aparece na bandeira roubada há poucos dias num museu paulista).

Recentemente, conversei com representantes de uma das maiores agências mundiais de rating (avaliação independente de risco de países, negócios e empresas), que simplesmente ficaram estarrecidos com o nível de calote — estima-se R$ 100 bilhões — em todo o país, incluindo União, estados e municípios). Espero que, a partir de agora, ao dar notas aos entes públicos, levem a quantidade e qualidade (falta de ética, mentiras contábeis, desprezo ao Judiciário) da inadimplência em seu trabalho.

A rigor, têm a obrigação de fazê-lo, e o resultado pode ser que grandes instituições internacionais multilaterais (Banco Mundial, BID, por exemplo) fiquem impossibilitadas de continuar dando dinheiro a estes maus gestores. Os bancos privados provavelmente se aproveitarão do fato para aumentar a taxa de risco Brasil e cobrar juros mais salgados, a serem pagos com mais tributação sobre as empresas e a classe média tupiniquim.

Está cada vez mais difícil aos teóricos e gestores do calote público justificar suas maldades com os cidadãos contribuintes que pagam seus salários.

Para o governo, todos os favores. Para o cidadão, nada (e tome penhora online, multa por atrasar imposto um dia, necessidade de certidões para qualquer ato civil).

A estratégia clássica do calote é culpar o Judiciário, “que não sabe julgar, daí advindo condenações absurdas, que pegam suas excelências, os governadores e prefeitos, de surpresa” (os processos levam em média 10 anos, com inúmeras oportunidades de defesa, recursos, protelação interminável…).

Mais recentemente, como cortina de fumaça, resolveram atacar os advogados e escritórios de advocacia, que “se beneficiam do trabalho de cobrança contra o governo…” É a velha história de mandar matar o mensageiro de notícias ruins. Muitos secretários de Fazenda recém-empossados lembram a figura do batedor de carteiras que, para confundir e fugir da perseguição policial, começa a gritar “pega ladrão, pega ladrão.”.

Como pano de fundo e matéria macro-econômica, os caloteiros batem na tecla da “dívida impagável”. Impagável também era (durante décadas) a dívida externa que foi liquidada meses atrás, com antecedência e à vista.

Existem vários estudos, por consultorias de renome, demonstrando que o Poder Público é inapetente, não tem vontade política, nem de cobrar sua dívida ativa, de impostos e contribuições, nem de pagar sua dívida passiva. O que salta aos olhos é que a dívida ativa normalmente é de 5 a 12 vezes maior do que a dívida passiva (precatórios).

Ora, não é preciso ser nenhum prêmio Nobel de Economia para chegar à conclusão de que uma boa cobrança (sob controle dos credores e da Justiça e não do governo, inadimplente crônico) de impostos atrasados, mais venda de imóveis ociosos, ações que não signifiquem a perda de controle de estatais, etc, seria suficiente para pagamento das dívidas judiciais. Já existe projeto alternativo nesta direção, ampliando o escopo do chamado Projeto Jobim/Calheiros em andamento no Senado (Proposta de Emenda Constitucional 12/06).

Recentemente foi lançado no mercado o primeiro FIDC — Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, lastreado em precatórios federais. O Banco do Brasil e outros estudam a securitização de recebíveis (desde royalties de petróleo a outras receitas) de entidades públicas.

Agora a coisa realmente ficará feia para o Poder Público, pois ignorar o Poder Judiciário e os credores não significa nada, não tem conseqüência, mas dar o calote no mercado financeiro é impossível para os gestores oficiais. O governo é viciado na droga crédito, e seus comerciantes legítimos (os bancos) não podem ser peitados. É assim mesmo, senhores magistrados, desembargadores e ministros: uma cartinha de qualquer banco ao governo, cobrando dívidas judiciais, terá resultado efetivo muito maior do que qualquer ofício ou decisão do Poder Judiciário.

Os novos governadores falam em vender imóveis ociosos, raspar o fundo do tacho, sempre para novos investimentos, garantir PPPs (Parcerias Público-Privadas), mas já existem pareceres de juristas renomados, como o professor Kyoshi Harada (disponível no www.oabsp.org.br, Comissão de Precatórios), demonstrando que qualquer movimento desses, sem o pagamento prévio de precatórios, não passará de fraude a credores, violando os princípios éticos e de moralidade previstos na Constituição, regras orçamentárias e por aí vai. Senhores empresários, cuidado com o canto da sereia do governo nas PPPs…

Realmente, como é que alguém que deve (com decisão judicial) a Deus e todo mundo, pode ter a ousadia de querer vender (ou separar, como garantia, numa blindagem “especial”) bens, ações ou que for, para proteger novos contratos ou credores potenciais, futuros, mas agora “de primeira classe”, sem pagar ou se acertar com os antigos? Estaríamos criando os credores INSS (os atuais credores judiciais) e os potenciais Prime ou Personnalité (gente fina, com sala VIP, que, muito corretamente, irá subordinar qualquer negócio com o Poder Público a garantias efetivas).

É uma pena que a criatividade dos alquimistas oficiais seja sempre na direção do calote, nunca para o pagamento.

Mas esta maior proximidade com o mercado financeiro, com a criação de fundos de investimentos e securitização de recebíveis, descritas acima, exigindo dados auditáveis, boa governança e procedimentos éticos, pode mudar o jogo. É mais um grande serviço que as instituições financeiras poderão fazer ao país.

Se o mercado gira 1 trilhão de dívida pública todo dia, adicionar 100 bilhões (10 por cento) deve ser algo administrável e bom para o país, que ficará livre da mentira, libertando o Poder Judiciário de sua missão atual de órgão acessório do Executivo para rolar as dívidas públicas.

Esconder números e dar calote somente gera crescimento do descrédito da população pelas instituições e desencoraja investimentos.

Ah, e nem falei de ética, fazer as coisas simplesmente porque são corretas. Este produto — ética, está em baixa no mercado do Poder, o que vale é ele, Poder, a qualquer custo, e o lucro, não importa se artificial, de curto prazo e insustentável.

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