Desproporcional e inócua

Bloqueio do YouTube não está de acordo com nossa legislação

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9 de janeiro de 2007, 18h53

Começou como uma indiscrição de um casal flagrada por um cinegrafista, mas tornou-se um caso de relevância nacional que pode determinar o futuro do livre acesso à informação em nosso país. A decisão do desembargador Ênio Santarelli Zuliani determinou que se bloqueasse o acesso de usuários brasileiros ao vídeo do casal Daniella Cicarelli e Renato Malzoni por meio de implantação de filtros nos sistemas das empresas que operam os backbones (explicado de maneira extremamente simples, são cabos de telecomunicação que ligam o Brasil à internet). Uma vez posta em prática, a decisão teve um efeito bastante absurdo: o bloqueio quase total dos usuários brasileiros ao popular sítio youtube.com.

A rápida e quase unânime rejeição dos usuários de internet no Brasil dessa decisão mostra que o Poder Judiciário foi incapaz de dar uma solução justa ao caso. Felizmente, porém, o desembargador voltou atrás em sua decisão e determinou que o acesso ao sítio fosse permitido novamente.

Não obstante, este processo tem se mostrado uma sucessão de equívocos que por fim levaram à decisão de bloqueio, que é claramente desligada da realidade. Sem tocar na questão material, que sozinha é assunto suficiente para uma tese de mestrado, deve ser destacado que a decisão de determinar o bloqueio ao site Youtube (ou qualquer outro nesses moldes) não está de acordo com a legislação processual vigente.

Apesar de o famigerado processo correr em segredo de Justiça, não é preciso ter poderes para-normais para saber os fundamentos do pedido dos autores da demanda: o vídeo feito pelo cinegrafista invade a privacidade dos autores e, dessa forma, estes se socorrem ao Poder Judiciário para que este determine que as rés tirem o vídeo do ar a fim de resguardar a privacidade dos autores.

Se tivermos em mente o paradigma de telecomunicação vigente até o início dos anos 80, o argumento apresentado parece bastante lógico. No entanto, a realidade no ano 2007 é outra. A obra seminal de Yochai Benkler[1] mostra essa mudança de paradigma com muita clareza. O modelo de comunicação em massa do século XX no qual a informação era disseminada à sociedade por meio de um reduzidíssimo número de organizações que detinham os meios de transmissão não é mais o único possível para a disseminação de informações. A grande disseminação e relativo baixo custo do uso de computadores pessoais e a sua ligação em rede tem proporcionado a possibilidade de uma descentralização na criação e distribuição de informação, conhecimento e cultura.

Não dependemos mais unicamente dos grandes meios de comunicação para recebermos informação. É claro que não se pode negar a influência destes e o seu papel como provedores de informação, uma vez que a grande maioria das informações que recebemos ainda vem de um desses meios (jornais, televisão, rádio, etc.), mas também não se pode ignorar que estes meios não são mais nossas únicas fontes (blogs, wikis, youtube, entre tantos outros exemplos provam isso).

O mesmo vale para cultura, arte e pesquisas científicas. O baixo custo dos meios de produção e disseminação de informação (computador pessoal e conexão à internet) permitiu que qualquer um que assim queira possa tomar parte na criação de disseminação de informação e conhecimento.

A relevância dessa mudança de paradigma para o presente caso reside na utilidade do pedido de bloqueio por parte dos autores da demanda. Em um cenário em que a disseminação de informações é concentrada em um punhado de entidades, é eficaz impor a obrigação de não fazer àqueles responsáveis pela sua distribuição.

Quando a disseminação de informações é feita de forma descentralizada, porém, a tentativa de impedir a disseminação é impossível[2]. Uma vez na internet, para sempre na internet. Nota-se que neste caso os autores ajuizaram ação contra as empresas responsáveis por alguns poucos sítios bastante populares no Brasil, entre eles o Youtube. O pedido de antecipação de tutela foi concedido para determinar que os réus tirassem do ar o referido vídeo. A decisão foi em grande parte cumprida[3] e, não obstante, qualquer um pode ver o tal vídeo a qualquer momento em diversos sítios no Brasil e no exterior[4].


O único efeito prático da decisão foi atrair mais atenção para o caso e redirecionar o fluxo de acesso dos sítios que cumpriram a decisão (réus na demanda), para todos os outros sítios que não são partes na demanda e, portanto, não estão obrigados a cumprir a decisão.

Fazendo um grande esforço de boa vontade e admitindo que os autores tenham de fato alguma privacidade a ser protegida neste caso, seria o pedido, na forma que foi feito, capaz de alcançar o objetivo de impedir que o vídeo fosse visto e a privacidade do casal fosse protegida? Jamais.

Não há qualquer dúvida que falta aos autores o interesse de agir neste caso, que é condição para ajuizar ação conforme previsto no artigo 3º do Código de Processo Civil. O tema acerca do interesse de agir é bastante discutido no âmbito do Processo Civil, mas pode se dizer que o interesse se caracteriza pelo binômio necessidade-adequação, ou seja, para que possua direito de agir o autor da demanda deve demonstrar que o ajuizamento da demanda era a única forma pela qual poderia ter seu direito tutelado (necessidade) e que o pedido postulado é capaz de satisfazer a sua pretensão (adequação). Como ensina Humberto Theodoro Júnior, citando José Frederico Marques:

“não se pode dizer que exista interesse processual se aquilo que se reclama do órgão judicial não será útil juridicamente para evitar a temida lesão. É preciso sempre ‘que o pedido apresentado ao juiz traduza formulação adequada à satisfação do interesse contrariado, não atendido ou tornado incerto’(…)

Falta interesse, em tal situação, porque é inútil a provocação da tutela jurisdicional se ela, em tese, não for apta a produzir a correção argüida na inicial.”[5]

No presente caso, tendo-se em mente a arquitetura da internet, não há qualquer dúvida de que o pedido de que um pequeno número de sítios da internet seja obstado de exibir o vídeo do casal não é a medida adequada para proteger o direito à alegada privacidade dos dois.

Ainda que os sítios escolhidos para figurar no pólo passivo concentrem um grande volume tráfego, ou seja, são os mais vistos pela população, o fato é que a proibição apenas desvia o fluxo de acesso desses sites para aqueles que não figuram no pólo passivo da demanda.

Vale frisar que o Superior Tribunal de Justiça já proferiu decisão na qual reconhece a falta interesse de agir quando a tutela pleiteada não é capaz de proteger o direito argüido[6].

Outro ponto que deve ser ressaltado é a total ineficácia da implantação da medida. Poucas horas após a ativação do bloqueio ao YouTube, diversos sítios divulgaram tutoriais que explicam como contornar o transtorno e ainda assim acessar o site alegadamente bloqueado[7] (frise-se que o procedimento descrito nesses tutoriais não viola qualquer lei ou decisão judicial).

Outro ponto que deve ser discutido é o excessivo ônus que o cumprimento da decisão impõe a terceiros. Ônus financeiro às empresas que operam os backbones e ônus imaterial para todos os demais usuários de internet do Brasil, que tiveram seu direito de acesso à informação sensivelmente restrito por conta da decisão.

Não se prega aqui a desconsideração de garantias individuais para a manutenção do direito da maioria, mas que as decisões judiciais devem guardar alguma proporcionalidade entre o direito tutelado e o ônus imposto aos réus e a terceiros.

Como defende Luiz Guilherme Marinoni:

“Como a concentração dos poderes de execução do juiz exige uma cláusula aberta ao caso concreto, trata-se de exigir uma relação entre o uso do poder e as peculiaridades da situação conflitiva. Esse controle somente pode ser feito mediante uma regra hermenêutica que suponha que há uma cláusula geral legal que deve ser concretizada pelo juiz em face das circunstâncias do caso concreto. (…)

Tal regra hermenêutica é a da proporcionalidade. Essa regra se desdobra em três sub-regras, que são a regra da adequação, a regra da necessidade e a regra da proporcionalidade em sentido estrito. (…)


A adequação se coloca no plano dos valores, querendo significar que a ação material não pode infringir o ordenamento jurídico para proporcionar a tutela. A necessidade, por sua vez, tem relação com a seara da efetividade da ação material, isto é, da sua capacidade de realizar – na esfera fática – a tutela do direito. É por tal motivo que essa última regra se divide em outras duas: a do meio idôneo e a da menor restrição possível. O fazer idôneo é aquele que tem a capacidade de proporcionar faticamente a tutela. Mas, essa ação (fazer ou não fazer), embora idônea à prestação da tutela, deve ser a que cause a menor restrição possível à esfera jurídica do réu. Quando tal ação é idônea e, ao mesmo tempo, causa a menor restrição possível, ela deve ser considerada a mais idônea ou a mais suave para proporcionar a tutela”[8]

O mesmo argumento se estende a direitos de terceiros. Ainda que se possa argumentar a favor da possibilidade de bloqueio de determinados conteúdos pelo Poder Judiciário, é inegável que esse bloqueio jamais poderá ocorrer na forma como presenciamos: indiscriminada e geral.

O que transparece pela sucessão de fatos neste caso é que faltou aos magistrados perceber a mudança no paradigma da forma de disseminação de informações, a arquitetura da internet, e, principalmente, medir e pesar as conseqüências que as decisões tomadas terão sobre as partes e sobre terceiros.

Ainda que tenha voltado atrás na decisão de bloquear acesso ao sítio[9], ao se ler a argumentação desenvolvida pelo relator do recurso nota-se que este ainda não percebeu a profundidade das mudanças trazidas pela mudança do paradigma das telecomunicações.

Alega o relator que “o incidente serviu para confirmar que a Justiça poderá determinar medidas restritivas, com sucesso, contra as empresas, nacionais e estrangeiras, que desrespeitarem as decisões judiciais”.

Não se nega que é imperativo que o Poder Judiciário faça valer suas decisões. No entanto, esse não pode ser um fim em si próprio, especialmente se impõe sérios ônus sobre milhões de terceiros. Respeito não se impõe à força, especialmente se a tentativa de imposição fracassa tão pateticamente como neste caso.

Neste caso, como argumentado, a tentativa de impedir a exibição do vídeo parece totalmente inócua e inviável. O gênio já saiu da garrafa e não há como colocá-lo de volta. Se o casal entende que teve seus direitos violados, pode pleitear a reparação destes, seja ajuizando ação contra o cinegrafista, seja contra os usuários que tornaram o vídeo disponível, ou contra quem mais entenderem que seja responsável, mas não há como impedir que o vídeo seja visto (pelo menos não enquanto vivermos em um Estado de Direito Democrático).


[1] The Wealth of the Networks, disponível em inglês no sítio http://www.benkler.org/wealth_of_networks/index.php/Main_Page. A tradução para o Português é um trabalho colaborativo em andamento e pode ser encontrada em http://www.benkler.org/wealth_of_networks/index.php?title=Translation_to_Brazilian_Portuguese. Ambos consultados pela última vez em 09/01/07.

[2] Essas afirmações são feitas tendo em vista a atual arquitetura da Internet, uma vez que, como bem argumenta Lawrence Lessig, a arquitetura descentralizada na Internet pode ser alterada para que se tenha maior controle sobre ela. Este argumento é desenvolvido de forma brilhante no livro “Code and Other Laws of Cyberspace”. Lawrence Lessig, Code and other Laws of Cyberspace, Basic Books, New York, 1999.

[3] Vale destacar que a tentativa de se ver o referido vídeo no Youtube é na maioria das vezes frustradas, mas dado o sistema de funcionamento do sítio, no qual qualquer usuário pode postar um vídeo, algumas vezes por intervalos pequenos de tempo, o vídeo ficava disponível no site, sendo bloqueado pouco tempo depois.


[4] Uma pesquisa em sites de pesquisa como o www.ask.com; www.yahoo.com; www.msn.com; com as palavras “cicarelli” e “video” prova o argumento.

[5] Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, Volume I, fls. 50, 33ª edição, Rio de Janeiro 2000, Editora Forense.

[6] PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. NULIDADE DO PROCEDIMENTO. ALTERAÇÃO NA CLASSIFICAÇÃO. CONTRATO INTEGRALMENTE CUMPRIDO. INTERESSE PROCESSUAL NA OBTENÇÃO APENAS DA TUTELA DECLARATÓRIA. TESE DE VIOLAÇÃO DO ART. 267, VI, DO CPC REPELIDA.

(…)

2. Só há legítimo interesse de agir quando a tutela jurisdicional pleiteada for adequada à satisfação do interesse material do demandante. Se o provimento jurisdicional não é adequado à realização do direito que se requer, então, de nada adianta prosseguir-se no exame de uma ação que se revela inútil à proteção do interesse da parte. Por tais motivos, afirma-se que o interesse de agir corresponde ao binômino "necessidade-utilidade", pois é preciso que a parte tenha "necessidade"de se utilizar da via judicial para deduzir a pretensão resistida e que o procedimento eleito seja "útil"à obtenção da tutela jurisdicional invocada.

(…) (REsp 771.312/DF, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20.06.2006, DJ 03.08.2006 p. 217) (grifo nosso)

[7] http://br-linux.org/linux/bloqueio-como-acessar-youtube-censurado, consultado pela última vez em 09/01/07.

[8] Luiz Guilherme Marinoni, Controle do poder executivo do juiz, disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5974, consultado pela última vez em 09/01/07

[9] http://idgnow.uol.com.br/internet/2007/01/09/idgnoticia.2007-01-09.7954769479/IDGNoticia_view, consultado pela última vez em 09/01/07.

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