Retrosepctiva 2006

A Constituição e o Supremo na visão de seus guardiões

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1 de janeiro de 2007, 6h01

Os ministros do Supremo Tribunal Federal iniciaram o ano sob o ataque dos que acreditavam que eles fraquejavam ou tropeçavam ao conceder Habeas Corpus para depoentes não se autoincrimar diante da santa inquisição das CPIs do Congresso. Também eram criticados quando outros Habeas Corpus garantiam que suspeitos de crimes horríveis, como o ex-prefeito paulistano Paulo Maluf, pudessem responder ao processo movido contra eles em liberdade.

Os mesmos ministros do STF terminaram 2006 sob aplausos generalizados da opinião pública, pois coube a eles a nobre façanha de derrotar os parlamentares na sanha indomável de se autoconceder um aumento de salários de 91%.

Nos dois casos, na vaia ou no aplauso, os onze juízes que personificam a legalidade e a constitucionalidade no país não fizeram mais do que sua estrita obrigação. Aplicar a lei e defender a mãe de todas as leis — a Constituição.

Em 2006, a Consultor Jurídico teve a honra e o privilégio de participar do processo pedagógico que tornou mais compreensível a finalidade da Constituição, o papel do Supremo e a missão dos ministros. Em uma série memorável de entrevistas, publicada em parceria com o jornal O Estado de S. Paulo. oito dos onze ministros deram verdadeiras aulas de Direito Constitucional e de respeito à lei aos leitores.

Num ambiente cada vez mais propenso a condenar e menos afeito a julgar, é um alívio e um conforto escutar afirmações como a do decano dos ministros, Sepúlveda Pertence, de que “algumas das garantias da liberdade mais caras foram afirmadas a propósito de cidadãos não muito respeitáveis”.

A seguir, leia trechos das respostas dos ministros a temas comuns abordados nas entrevistas:


OS PAPÉIS DO SUPREMO

O que mudou no Supremo Tribunal Federal depois da Constituição de 1988?

Sepúlveda Pertence — Em primeiro lugar, mudou o país. Houve um evidente aprofundamento do sentimento de cidadania. O cidadão passou a acompanhar as grandes questões nacionais. E onde entra o Supremo nisso? É evidente que o protagonismo do Supremo de hoje é outro em relação ao Supremo pré-88. Eu entrei meses depois. Além do fator sócio-político no sentido macro (a mudança do país e do regime), você tem uma aposta muito grande na Constituição de 88 como solução jurisdicional. Não só dos problemas clássicos das relações privadas, da repressão penal, e das garantias de direitos individuais e singulares contra o Estado. A Ação Direta de Inconstitucionalidade revolucionou o direito brasileiro. No plano teórico pode-se afirmar que a grande revolução não começou em 1988, mas em 1965, quando a velha Representação Interventiva passa a crivar a constitucionalidade não só de leis e atos de governos locais mas, também de leis federais.

Celso de Mello — O STF, sob a atual Constituição, tomou consciência do alto relevo de seu papel institucional. Desenvolveu uma jurisprudência que lhe permite atuar como força moderadora no complexo jogo entre os poderes da República. Desempenha o papel de instância de equilíbrio e harmonia destinada a compor os conflitos institucionais que surgem não apenas entre o Executivo e o Legislativo, mas, também, entre esses poderes e os próprios juízes e tribunais. O Supremo acha-se investido, mais do que nunca, de expressiva função constitucional que se projeta no plano das relações entre o Direito, a Política e a Economia. O tribunal promove o controle de constitucionalidade de todos os atos dos poderes da República. Atua como instância de superposição. A Suprema Corte passa a exercer, então, verdadeira função constituinte com o papel de permanente elaboração do texto constitucional. Essa prerrogativa se exerce, legitimamente, mediante processos hermenêuticos. Exerce uma função política e, pela interpretação das cláusulas constitucionais, reelabora seu significado, para permitir que a Constituição se ajuste às novas circunstâncias históricas e exigências sociais, dando-lhe, com isso, um sentido de permanente e de necessária atualidade. Essa função é plenamente compatível com o exercício da jurisdição constitucional. O desempenho desse importante encargo permite que o STF seja co-partícipe do processo de modernização do Estado brasileiro.


Marco Aurélio — Depois de meu ingresso no Supremo já tivemos mais de onze modificações no tribunal. Foram modificações substanciais porque cada juiz tem um perfil técnico ou humanístico. O que se nota é que o Supremo Tribunal Federal saiu de uma postura mais conservadora, mais ortodoxa, para se fazer mais ágil na atuação, mais sensível aos avanços culturais, aos anseios da própria sociedade. E espero que se mostre mais preocupado com o bem estar e a visão dos contribuintes. Não o contribuinte na relação tributária, mas o cidadão, o patrocinador de todos os serviços públicos.

Gilmar Mendes — Na verdade, o Tribunal está em transição desde a promulgação da Constituição de 88, que trouxe novos institutos e o desafio de novas interpretações. A renovação dos últimos anos tem contribuído para a mudança de entendimento em relação a temas que se solidificaram, de acordo com interpretações retrospectivas. Mas não se pode esquecer que, nestes últimos 17 anos de nova prática constitucional, produzimos também uma nova doutrina, que agora influencia esse processo de revisão da jurisprudência. Portanto, é uma ação concertada que envolve os antigos e novos atores, a evolução da doutrina e a própria visão das partes.

Cezar Peluso — Uma tendência muito forte e cada vez mais marcante: a de garantir as estruturas e os mecanismos do Estado democrático de direito,de consolidar o processo de redemocratização, de aprendizagem e vivência da vida democrática. O Supremo tem exercido um papel importante nesse sentido. A segunda tendência que começou a se desenvolver a partir de 1988 é a Corte realmente exercer o papel extraordinário de proteger as liberdades públicas e os direitos e garantias individuais. Essas são duas linhas fortes do espírito do Supremo pós-88, que não vão ser alteradas, mas reforçadas.

Carlos Ayres Britto — No pós-88, o que há de mais importante é o STF querer para a Constituição o que a Constituição quis para si própria: o máximo de efetividade. O máximo de concreção ou de aplicabilidade por si mesma, pois o certo é que ela se quis um corpo vivo. Uma espécie de unha e carne com a nova realidade das coisas. Uma realidade que também signifique o que a nova Constituição significa: o mais firme compromisso com a moralidade administrativa e a democracia de três vértices, que é a Democracia política, social e fraternal.

Ricardo Lewandowski — O Supremo teve que enfrentar a transição de um Estado de exceção para um Estado democrático. A jurisprudência do Supremo operou essa transição com bastante sucesso. Inicialmente, como não tinha paradigmas nos quais se inspirar, a produção do STF, do ponto de vista jurisprudencial, se baseou muito nos precedentes da Constituição de 1946. O Supremo teve o grande mérito de servir de ponte entre a Constituição de 1946 e a de 1988, interregno em que houve um verdadeiro eclipse institucional. A Corte teve o papel de consolidar uma nova hermenêutica constitucional gerando uma fertilíssima jurisprudência. Daqui por diante, creio que o Supremo vai viver uma nova fase, justamente a da concreção dos princípios fundamentais da Constituição.

Eros Grau — A minha visão é a de que Constituição e ordem econômica não são algo acabado. São algo que está se fazendo e refazendo constantemente. O texto da Constituição não fala por si só. O seu significado se expressa pela voz de seus intérpretes. E o intérprete último da Constituição é o STF. Nesse sentido, o Supremo tem dado efetividade ao seu artigo 3º, que estabelece como objetivos fundamentais da República o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e ao artigo 170, que define que a ordem econômica deve estar fundada na valorização social do trabalho e da livre iniciativa e deve ter por fim assegurar a todos existência digna. Esse não é o desenho de um Estado neoliberal, mas social.



DIREITOS FUNDAMENTAIS

Vigora no país a noção de que as pessoas de quem não se gosta devem ser condenadas por qualquer coisa e as de quem se gosta, devem ser absolvidas automaticamente. Como é ser juiz nesse contexto?

Sepúlveda Pertence — (rindo) Isso é muito bom, é muito gostoso, mas infelizmente aqui [no tribunal] não dá. Eu costumo repetir muito uma frase: “Algumas das garantias da liberdade mais caras foram afirmadas a propósito de cidadãos não muito respeitáveis”.

Marco Aurélio — Não tinha a menor dúvida de que prevaleceria a ótica da inconstitucionalidade da Lei 8.072/90, que inviabilizava a progressão no cumprimento da pena. Porque há aí uma garantia constitucional, que é a garantia da individualização da pena. Interessa à própria sociedade. Se o preso não vê motivo para conquistar a progressão, ele não se ressocializa. É devolvido à sociedade depois sem as condições necessárias para isso. O problema de recorrer em liberdade é consagrado na Constituição e atende à ordem natural das coisas. Não se deve presumir que todos sejam salafrários até prova contrária. Deve-se presumir a conduta segundo ditames próprios da convivência social. Manter preso quem ainda recorre compele o recorrente a adotar uma postura até mesmo contrária ao que é sustentado nas razões do recurso, apresentando-se para começar a cumprir a pena. E se for reformada a decisão, quem devolverá a ele a liberdade? Eu creio que algum dia se partirá para a responsabilidade do Estado com o dever de indenizar. Agora, evidentemente, não se harmoniza com o princípio da não culpabilidade a exigência de o condenado se apresentar para cumprir a pena para poder recorrer. É um pressuposto de recorribilidade dos mais extravagantes. Um pressuposto contrário ao que seria desejável, ou que decorre da própria Constituição Federal. A lei tem que estar harmonizada com a Constituição, não a Constituição com a lei.


PODER MODERADOR

O Supremo é o poder moderador?

Celso de Mello — O Supremo Tribunal Federal exerce uma típica função moderadora,como o evidenciam diversos precedentes firmados por esta Corte, especialmente naqueles casos em que se estabelecem situações de conflito entre o Executivo e o Legislativo da União, ou em que se registram os denominados conflitos federativos, que antagonizam os Estados-membros entre si ou que opõem tais pessoas políticas à União Federal, ou, ainda, naquelas situações de litigiosidade entre os Poderes da República. Essa, na realidade, é a confirmação do papel histórico do Supremo, tal como concebido pelos fundadores da República. Vale relembrar, no ponto, a célebre Exposição de Motivos de Campos Salles, então Ministro da Justiça do Governo Provisório da República, em texto no qual, ao propor a edição do Decreto 848, de 1890, assinalava que o Poder Judiciário, no novo regime republicano, passaria a ostentar um perfil institucional mais expressivo, notadamente porque investido do poder de controle da constitucionalidade das leis e dos atos dos demais Poderes do Estado. O Supremo Tribunal Federal, hoje, busca revelar-se fiel ao mandato que os Fundadores da República lhe outorgaram. É preciso agir com cautela,no entanto, para que o Supremo Tribunal Federal, ao desempenhar as suas funções, não incorra no vício gravíssimo da usurpação de poder.

Marco Aurélio — Antes, talvez houvesse maior cautela com o Executivo e com Congresso nesses embates que envolvem o próprio Poder. Às vezes, não se tinha presente que incumbia ao Supremo a última palavra sobre temas que, de alguma forma, estivessem ligados à Constituição Federal. A última palavra sobre atos que eram praticados à margem da Constituição Federal, pouco importando o que pudesse decidir o Supremo. Hoje eu creio que essa visão — uma visão muito ortodoxa, que não atendia a Constituição Federal — já está totalmente ultrapassada. O Supremo Tribunal Federal hoje atua, e é muito bom, porque revela o funcionamento do Estado Democrático de Direito, glosando atos do Congresso, glosando atos do Executivo. Claro que há reação, mas essa reação é natural quando se tem interesses, ou melhor, visões contrariadas.


RENOVAÇÂO DE QUADROS

Quais foram as conseqüências da renovação de quadros no Supremo?

Marco Aurélio — A renovação trouxe oxigenação, sem dúvida alguma. E não vejo risco de que, com a formação de uma maioria indicada pelo atual governo possa haver qualquer tipo de atrelamento. Repito o que disse quando estavam para ser nomeados os ministros Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto e Joaquim Barbosa. Não se agradece a escolha com a toga. Ou seja, a cadeira é vitalícia justamente para que aquele que a ocupe exerça o ofício com eqüidistância, com absoluta independência. O ministro do Supremo, como juiz, não tem entre suas funções a de ser relações públicas. Muito menos a de relações públicas com o Poder.

Gilmar Mendes — O Tribunal está em de transição desde a promulgação da Constituição de 88, que trouxe novos institutos e o desafio de novas interpretações. A renovação dos últimos anos tem contribuído para a mudança de entendimento em relação a temas que se solidificaram, de acordo com interpretações retrospectivas. Mas não se pode esquecer que, nestes últimos 17 anos de nova prática constitucional, produzimos também uma nova doutrina, que agora influencia esse processo de revisão da jurisprudência. Portanto, é uma ação concertada que envolve os antigos e novos atores, a evolução da doutrina e a própria visão das partes. Os novos integrantes já chegaram embebidos das reflexões sobre o novo contexto dogmático e doutrinário e sobre as críticas desenvolvidas a propósito das orientações tradicionais da Corte. Não surpreende que a antiga composição estivesse mais comprometida com a doutrina anterior e fizesse, em parte, uma leitura com os olhos do passado. A nova geração chega descolada da amarração anterior, o que contribui para consolidar a nova interpretação e levá-la adiante. Não se pode ser simplista e enfrentar a renovação da doutrina da Corte como se fosse uma troca de lençóis ou dos móveis da casa


NOVOS INSTRUMENTOS

Conjur — O Supremo teve de se valer de diversos mecanismos para acomodar a nova Constituição. Como foi a aplicação desses instrumentos?

Cezar Peluso — São instrumentos importantíssimos para implementar as mudanças introduzidas pela Constituição. Sem esses instrumentos seria muito difícil o controle de constitucionalidade, sobretudo de normas, por exemplo, anteriores, que teoricamente estariam revogadas e não poderiam ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade. Então, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) foi criada exatamente para suprir essa lacuna, dar um rito célere com alcance amplo para resolver os casos de ofensa a direitos fundamentais por normas anteriores à Constituição em vigor, e que não poderiam ser objeto de ação declaratória e, portanto, não poderiam obter uma decisão de caráter geral. Com a ADPF, isso foi possível.

Marco Aurélio — Como carro-chefe das mudanças, nós teríamos, em primeiro lugar, o Mandado de Injunção. Se não tivesse sido esvaziado como foi, claro. Esse instrumento é da maior valia para tornar concretos os direitos constitucionais. Vivemos no Supremo uma época em que a atenção está sendo dada ao que denomino como macro-processo. Que é o processo que permite o pronunciamento do Supremo com eficácia maior e ampla, eficácia que extravasa os limites de uma relação jurídica específica entre duas partes. Isso tem um efeito prático muito bom, que é o de evitar milhares e milhares de ações. Afinal, qual é o objetivo maior da jurisdição? É o de restabelecer a paz social momentaneamente abalada. Se podemos evitar conflitos que levem a esse abalo com uma resposta rápida do Supremo, devemos fazê-lo. Daí a flexibilidade maior na admissão dessas ações a que você se referiu: Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Antes, o Supremo era resistente à aceitação mais ampla dessas ações. Cito o exemplo das associações de classe, das quais se exigia uma representatividade maior. Hoje em dia, não: buscamos, como se diz numa gíria bem carioca, “abrir o embrulho”. Atuamos de forma bem mais ostensiva do que anteriormente. Isso é muito bom.

Ricardo Lewandowski —O Poder Judiciário detém hoje instrumentos muito importantes para tornar efetivos os direitos fundamentais que estão consignados na Carta Magna. Os direitos de primeira geração, conhecidos como direitos individuais — o direito à vida, à liberdade, à propriedade — são facilmente protegidos por meio das ações previstas na nova Constituição. Já os chamados direitos de segunda geração, que correspondem aos direitos econômicos, sociais e culturais, nem sempre podem ser reivindicados através da via jurisdicional. O direito à educação, à saúde, à habitação, à previdência social, por exemplo, são direitos que são implementados por meio de políticas públicas. A Constituição, nesse sentido, logrou um avanço muito significativo no que respeita ao aperfeiçoamento das instituições democráticas. Nós passamos de uma democracia meramente representativa para uma democracia participativa. Ou seja, a Constituição de 88 permite à cidadania participar diretamente do processo político, sem a intermediação de representantes, em determinadas situações. A iniciativa legislativa popular, contemplada no texto constitucional, é um instrumento importante para a materialização das reivindicações populares, embora ainda pouco utilizado.

Gilmar Mendes — A criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade, com a Emenda Constitucional 3, foi motivada pela necessidade de aperfeiçoamento do modelo de controle abstrato. O objetivo dos projetos foi de consolidar as conquistas obtidas pela jurisprudência do Supremo e a introdução de mudanças relevantes, como aquela referente à eficácia ex-nunc (não retroativo) das decisões de inconstitucionalidade e à própria regulação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, que reforça o modelo de perfil concentrado.

Celso de Mello — O ativismo judicial é um fenômeno mais recente na experiência jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. E porque é um fenômeno mais recente, ele ainda sofre algumas resistências culturais, ou, até mesmo, ideológicas. Tenho a impressão, no entanto, de que, com a nova composição da Corte, delineia-se orientação tendente a sugerir, no plano da nossa experiência jurisprudencial, uma cautelosa prática de ativismo judicial destinada a conferir efetividade às cláusulas constitucionais, que, embora impondo ao Estado a execução de políticas públicas, vêm a ser frustradas pela absoluta inércia – profundamente lesiva aos direitos dos cidadãos – manifestada pelos órgãos competentes do Poder Público. Impõe-se, desse modo, que o Supremo dê passos decisivos não só a propósito da plena restauração do mandado de injunção, mas, igualmente, evolua em outros temas constitucionais de grande relevo e impacto na vida do Estado e dos cidadãos.


O GOVERNO DO SUPREMO

O Supremo governa?

Marco Aurélio — O Supremo não governa. O Supremo é um fator de equilíbrio. Surge como um poder moderador, destinado a garantir a estabilidade e os valores nacionais, que são perenes. Cada dirigente tem seu plano de governo para chegar ao êxito. Às vezes, no anseio de tornar efetivo esse plano, atropela-se a lei. E a Constituição Federal não pode ser atropelada. Paga-se um preço por se viver em uma democracia e esse preço é módico, é o respeito irrestrito ao que está na Constituição. Nosso compromisso não é com políticas governamentais. Nosso compromisso, como guardiões da Constituição, está na envergadura maior, que é a estabelecida pela própria Constituição. Assusta-me quando se proclama que se deve interpretar as leis visando homenagear a governabilidade. A governabilidade é que tem que se adaptar à legislação existente. Não vamos inverter valores. Isso é perigoso. Porque senão passamos a autorizar quaisquer meios para justificar supostos fins.

Celso de Mello — A preocupação com a governabilidade deve representar um valor a ser considerado nas decisões dos ministros do Supremo. Mas os juízes desta Corte têm um compromisso mais elevado no desempenho de suas funções e esse compromisso traduz-se no dever de preservar a intangibilidade da Constituição que nos governa a todos. O Supremo Tribunal, como intérprete final da Constituição, deve ser o garante de sua integridade. Atos de governo fundados em razões de pragmatismo político ou de mera conveniência administrativa não podem justificar, em hipótese alguma, a ruptura da ordem constitucional. Cabe, a esta Corte, impedir que se concretizem, no âmbito do Estado, práticas de cesarismo governamental ou que se cometam atos de infidelidade à vontade suprema da Constituição.

Sepúlveda Pertence — O Supremo é um órgão de governo. Também não há muitos exemplos no direito comparado. Teoricamente é um lugar comum dizer que a emenda constitucional está sujeita a um juízo de constitucionalidade. Ela mesma na medida em que há regras e há um processo específico, e há também as cláusulas intangíveis. Mas você não encontra exemplos no direito comparado de efetivamente se ter declarado a inconstitucionalidade de emendas como o Supremo discute. É inevitável na formação da convicção do juiz, do juiz constitucional sobretudo, uma certa lógica de conseqüências, mas ela é para mim secundária. Não são dificuldades tópicas. Há um programa de governo, ainda que com repercussões negativas na sociedade, na economia, que podem fazer com que se perca a noção de que o nosso papel não é esse. O nosso papel é garantir princípios e regras de processo democrático que se puseram acima das maiorias conjunturais.

Cezar Peluso —A governabilidade não é um objeto especifico da competência do Supremo. Todas as decisões do Judiciário, em particular as decisões do Supremo, implicam conseqüências graves no plano institucional, sem dúvida nenhuma. Isto não significa que, quando avalia essas conseqüências, o Supremo esteja tomando alguma posição política em relação à governabilidade. A interpretação jurídica de qualquer norma e, especialmente, das normas constitucionais, já implica uma valoração do resultados das posições possíveis. Uma interpretação não é uma coisa matemática, nem automática. A interpretação é uma reconstrução intelectual, e esse trabalho de reconstituir o sentido da norma implica avaliação dos resultados. Nesse sentido podemos dizer que os resultados da interpretação do Supremo são ponderados em função da realidade social, mas como parte da tarefa de interpretação da norma, e não, como uma atitude política do Supremo no sentido de interferir nos outros Poderes.

Carlos Ayres Britto — O Supremo não governa, mas pode impedir o desgoverno. Ele não tem do governo a função, mas tem do governo a força. A força de impedir a própria disfunção governativa. Descumprir a Constituição é a mais grave maneira de incidir em desgoverno e o papel do Judiciário é obstar que isso aconteça. Que as autoridades políticas governem, claro, que para isso foram eleitas. Mas que o façam nos moldes de uma Constituição que nos cabe guardar. Por isso que a nossa função é jurídico-política, no particular. Jurídica, por nos caber julgar segundo critérios de legalidade e de constitucionalidade da ação dos poderes públicos (não por critérios de conveniência e oportunidade). Política, porque nesse tipo de julgamento técnico somos nós que terminamos por demarcar as fronteiras do legítimo atuar de cada qual dos poderes da República. Cuida-se, portanto, de uma política republicana. Não de uma política partidária. O compromisso do Supremo é com a governabilidade constitucional. Isso porque a Constituição já é um instrumento de governo e o certo é que ela governa quem governa.

Ricardo Lewandowski — Muitos problemas de caráter meramente político — desenvolvidos no âmbito do Executivo ou do Legislativo — não raro são trasladados de forma indevida para o Judiciário. Na Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde atuei, procurávamos, sempre que possível, devolver as questões de cunho político para os próprios políticos. O Judiciário deve evitar decidir questões estritamente políticas, que precisam ser resolvidas onde se originaram. Os temas político-partidários têm que ser discutidos no seio dos partidos, nas câmaras municipais, nas assembléias legislativas e no Congresso. Os juízes não podem ser árbitros de dissídios dessa natureza. E o que o Supremo tem feito historicamente nesse campo, ainda que muitas vezes não seja bem compreendido, é proteger os direitos fundamentais, com destaque para o direito à ampla defesa, ao contraditório, à intimidade, à honra. Nesse aspecto, ele não vê a pessoa que está no pólo ativo de uma demanda, não vê cara ou opção partidária, vê um cidadão que busca defender dos seus direitos.

Eros Grau — O ministro Hermes Lima, um grande ministro do STF, que se aposentou no final da década de 70, dizia que o Supremo é uma peça do governo e que suas decisões também compõem a voz governamental. “O reconhecimento da missão de proteger a cidadania completa a estrutura cívica e jurídica do Estado. Não é só o Poder Executivo que fala pelo Estado. O Estado é uma totalidade indivisível, e os poderes que acompanham essa totalidade recebem dessa indivisibilidade o seu sentido, sua determinação, sua legitimidade. Isso porque cada poder — e o Supremo é um deles — forma com ele essa indivisível totalidade”. Por isso cada um de nós aqui fala pelo Estado. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário falam pelo Estado. O Supremo não governa, fala pelo Estado. Não se pode opor o Poder Judiciário ao Executivo, ou o Executivo ao Legislativo. Nós compomos uma totalidade que é o Estado.


O TAMANHO DA CONSTITUIÇÃO

A Constituição deveria ser mais sintética?

Ricardo Lewandowski — A Constituição brasileira foi editada no final do século XX, num momento de grandes transformações. O mundo se preparava para a queda do muro de Berlim; aproximava-se o fim da Guerra Fria; o fenômeno da globalização começava a se intensificando tremendamente. Os Estados nacionais tendem a conviver com a produção internacionalizada e os limites da soberania começam a ficar desfocados. Dentro desse contexto, evidentemente, nós tínhamos que ter uma Constituição mais minuciosa, para uma sociedade em transformação rápida, inserida dentro de um processo de globalização. A Constituição tem que acompanhar este mundo extremamente dinâmico em que vivemos. Cabe a nós, aqui no Supremo, verificar os limites das emendas constitucionais e dar a interpretação dessa dinâmica mutação constitucional.

Carlos Ayres Britto — Cada povo tem a sua história. No Brasil, convém que a Constituição cuide de mais assuntos. Estando na Constituição, a matéria ganha dignidade e para ser reformada exige o máximo de concentração material e um mais dificultoso proceder do Congresso Nacional. Não sou um crítico da Constituição por ser mais robusta de dispositivos do que as anteriores. A tendência do constitucionalismo pós-Segunda Guerra é esse fenômeno do trato constitucional de assuntos antes reservados ao direito ordinário. A Constituição de Portugal começou com 300 artigos. A do Uruguai, 332. A da Índia, 372. A da Iugoslávia, mais de 400.

Eros Grau — A nossa Constituição não é excessiva. Ela é exatamente, sem tirar nem pôr, o produto da nossa cultura e do debate travado na Constituinte. É o retrato mais fiel daquele momento histórico. Ela passou por algumas transformações e é vivificada no dia-a-dia. Entendo que não existe a Constituição de 1988. Existe a Constituição do Brasil aqui e agora, constantemente sendo reproduzida. A Constituição não é jovem nem velha, porque é contemporânea à realidade. Também não é grande nem pequena, porque foi produzida como autêntica expressão das nossas forças sociais. Não tem cabimento pensarmos em reforma da Constituição. Nossa Constituição é maravilhosa e sua espinha dorsal permanece íntegra, apesar das muitas emendas feitas. Define um grande projeto que é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a promoção da dignidade das pessoas. É a mais linda Constituição que já foi escrita. Ela deve ser preservada e experimentada. Se dermos plena concreção a essa Constituição, estaremos construindo um futuro melhor. A Constituição não apenas sofreu algumas emendas, mas vem passando por um processo de reinterpretação e por isso mesmo se mantém atual. Por isso a jurisprudência muda, transforma-se, evolui.

Cezar Peluso — Uma Constituição mais sintética evitaria a sobrecarga do Supremo, que é conseqüência desse caráter analítico da Constituição. Eu preferiria uma Constituição mais sintética, que evitaria inclusive essa Emendas Constitucionais sucessivas, que são provocadas exatamente pelo fato de ela ser muito ampla e ser muito extensa. Sempre que há mudança na realidade social, o Congresso se vê na necessidade de introduzir uma Emenda Constitucional, porque não há outra maneira de regulamentar, diferentemente, porque está na Constituição. Eu sou favorável a uma Constituição mais enxuta, mais sintética e que evitaria tudo isso, inclusive essa falsa perspectiva de que o Supremo está governando. O Supremo não governa.


AS LEIS

Precisamos de mais leis ou de melhores leis?

Eros Grau — Aristóteles já dizia que a lei contempla apenas as situações gerais, e não os casos específicos. Aristóteles também dizia que a culpa não é da lei e sim da realidade, que se altera. A lei geralmente é feita para os casos que cabem dentro da normalidade. O que é interpretar o Direito? É interpretar um texto e a realidade. Essa é a função do Poder Judiciário e, sobretudo, do Supremo Tribunal Federal. Isso significa que o Supremo não legisla, mas complementa a tarefa do Poder Legislativo. Existe uma diferença entre a lei (o texto) e a norma. Quando a lei é interpretada, se cria uma norma que vai ser aplicada àquele caso. Isso quem faz é o Poder Judiciário, e em última instância o Supremo. A tarefa que começa com o Poder Legislativo, ou com o Poder Constituinte, só termina com a contribuição do Poder Judiciário.

Marco Aurélio — Mais importante que as leis em si, é a observância dessas leis. E a existência de um mecanismo que as torne efetivas. Não precisamos de mais leis. Muito menos de Constituinte, de uma nova Constituição. O que precisamos é de homens, principalmente de homens públicos, que observem as leis existentes e que se busque tirar dessas leis existentes a maior eficácia possível. A interpretação é um ato de vontade, mas é um ato de vontade direcionado a buscar o que está na legislação.

Celso de Mello — A formulação legislativa no Brasil, lamentavelmente, nem sempre se reveste da necessária qualidade jurídica, o que é demonstrado não só pelo elevado número de ações diretas promovidas perante o Supremo Tribunal Federal, mas, sobretudo, pelas inúmeras decisões declaratórias de inconstitucionalidade de leis editadas pela União Federal e pelos Estados-membros.

Esse déficit de qualidade jurídica no processo de produção normativa do Estado brasileiro, em suas diversas instâncias decisórias, é preocupante porque afeta a harmonia da Federação, rompe o necessário equilíbrio e compromete, muitas vezes, direitos e garantias fundamentais dos cidadãos da República.

É importante ressaltar que, hoje, o Supremo desempenha um papel relevantíssimo no contexto de nosso processo institucional, estimulando-o, muitas vezes, à prática de ativismo judicial, notadamente na implementação concretizadora de políticas públicas definidas pela própria Constituição que são lamentavelmente descumpridas, por injustificável inércia, pelos órgãos estatais competentes. O Supremo tem uma clara e nítida visão do processo constitucional. Isso lhe dá uma consciência maior e uma percepção mais expressiva do seu verdadeiro papel no desempenho da jurisdição constitucional.

Ricardo Lewandowski — No Brasil, temos a visão bacharelesca de achar que tudo se resolve através de uma lei. Quer se mudar a realidade por decreto, o que nem sempre é possível. Uma tendência que vem do tempo de Getúlio com o decreto-lei, passa por todo o período revolucionário e chega à abertura democrática, com um certo abuso das medidas provisórias. Isto acaba dificultando a prestação jurisdicional, porque essas questões deságuam no Poder Judiciário. As medidas provisórias são editadas em tal número que nem sempre se sabe qual está em vigor. Isso dificulta até a vida do homem comum, pois existe a presunção que ninguém pode descumprir a lei sob o pretexto de que a desconhece. Hoje nem mesmo os especialistas conhecem todas as leis e todos os meandros dessas leis.

Eros Grau — A criminalidade não pode ser combatida só com leis, ou com leis cada vez mais severas. A criminalidade será vencida no momento em que tivermos uma sociedade mais justa e equilibrada. Essa grande reforma há de passar pela educação, pelo esclarecimento da população. Eu certamente não vou resolver o problema da criminalidade só com um chicote na mão.

Gilmar Mendes — A proposta de Consolidação das Leis Brasileiras foi feita na LC 107/2001, quando se atualizou a LC 95/1998. O objetivo era o de enxugar as leis, para consolidar as centenas de milhares de leis em cerca de 500, o que permitiria identificar as leis e normas vigentes. Essa tarefa é impossível hoje. Esse trabalho iniciou-se com o ministro Ives Gandra Filho, mas, infelizmente, com os percalços do processo legislativo, esse projeto não se desenvolveu. Mas tenho ainda a expectativa de que o programa seja resgatado em um futuro próximo.


LEGITIMIDADE

ConJur — Como o senhor vê o coeficiente de legitimidade do Supremo perante a Sociedade?

Sepúlveda Pertence — Esse é um ponto central e eternamente inconcluso nas discussões sobre a Justiça constitucional, sobretudo. Em que medida onze homens, na verdade, seis votos de gente sem voto, podem dizer que anula uma emenda constitucional. Mas eu creio que o poder das cortes supremas, particularmente das cortes constitucionais, em especial no controle abstrato de constitucionalidade, é o que se tem chamado um poder essencialmente contramajoritário. Trata-se de garantir ou de procurar garantir a Constituição nos princípios em que ela não se lastreia em votos. Em que a decisão não se constrói pela maioria, mas com princípios fundamentais da convivência de interesses e de idéias contrapostas e garantias. É sobretudo a garantia de minoria, de respeito às regras do jogo — o que foi explorado e reprisado cansativamente no Mandado de Segurança que concluiu pela instalação de uma CPI defendida pela minoria.

Marco Aurélio — Eu diria que hoje a sociedade está mais atenta para o funcionamento das instituições, para o desempenho do ofício pelos homens públicos. Nós temos uma imprensa que bem informa, temos um Ministério Público e temos a própria sociedade implicitamente cobrando uma atuação da imprensa, uma atuação do Ministério Público e uma atuação do Judiciário. Isso é salutar. Isso eu pensaria em termos de dias melhores, em termos de avanço cultural.

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