Direito do consumidor

STJ diverge sobre defesa de interesses individuais pelo MP

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26 de fevereiro de 2007, 17h08

Pesquisando os arestos do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, verifica-se que a jurisprudência daquele tribunal superior ainda é divergente no que se refere à legitimidade do Ministério Público para a defesa de interesses individuais homogêneos. Os acórdãos contrários à integração do MP ao pólo ativo das lides envolvendo tais interesses afirmam que os mesmos devem ser objeto de pleito pelos respectivos titulares, uma vez que são de natureza divisível e perfeitamente identificáveis. Por sua vez, outras Turmas norteiam-se segundo as disposições do Código de Proteção de Defesa do Consumidor, o que, ao nosso ver, é o mais correto, dentro das diretrizes e objetivos traçados pelo modelo de Estado Democrático de Direito, considerando que tais interesses são relevantes por si só, nos dizeres da eminente Ministra Nancy Andrighi.

A Constituição Federal de 1988, em seu Título II, Capítulo I, os quais tratam dos direitos e garantias fundamentais e dos direitos e deveres individuais e coletivos, respectivamente, prescreveu que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), consignando, posteriormente, no artigo 48 do ADCT que “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.

Numa análise preliminar, vislumbra-se que a própria Carta Magna conferiu status constitucional aos direitos do consumidor, ao determinar a promoção de sua defesa, na forma da lei. Daí dizer-se que o CDC possui vocação constitucional.

Todavia, o cerne da questão que trazemos à colação diz respeito justamente à Constituição Federal, no entender de juristas tradicionais, não ter vindo a conferir legitimidade ao Ministério Público para a defesa dos direitos de que tratamos no presente artigo, pois os mesmos não foram expressamente elencados pelo legislador constituinte no art. 129, III, in verbis:

Art. 129 – São funções institucionais do Ministério Público:

(omissis)

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Já em 1985 o Brasil ganhava, através da edição da LACP — Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), um importante instrumento de defesa dos interesses sociais. Mas aquela lei também não havia incluído expressamente os direitos individuais homogêneos no rol do seu artigo 1º, IV, o qual também só cuidou de interesses difusos e coletivos, embora seja de inegável importância para o MP no exercício de seu mister, estando o órgão ministerial incluído dentre os legitimados a propor ações dessa natureza, quer seja como parte, quer seja como fiscal da lei (art. 5º, § 1º).

Pensamos ser de bom alvitre, antes de prosseguir em nossa análise, fornecer um breve conceito do que são os interesses individuais homogêneos, o qual nos é indicado pelo artigo 81, III, última parte, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, cuja dicção é a seguinte:

Art. 81 — A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vitimas poderá ser exercida em juízo individualmente ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

III — interesses individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

A origem comum desses interesses é determinada pela situação fática que liga determinados indivíduos entre si, como, por exemplo, um contrato. Essa é a principal característica a ser observada.

Extraí-se do dispositivo acima transcrito que o CDC, como “sobre-estrutura jurídica multidisciplinar, aplicável em toda área do direito onde ocorrer uma relação de consumo”, nos dizeres de Sérgio Cavalieri Filho1, acabou por incorporar normas de caráter processual em sua estrutura. Prosseguindo em nosso exame, recorde-se que a competência para legislar sobre matéria processual é privativa da União, nos termos do artigo 22, I do respectivo diploma.

Com isso, queremos dizer que, embora a CF/88 não tenha tratado de forma expressa acerca da competência do MP para a defesa de direitos individuais homogêneos, ao determinar que o Congresso Nacional elaborasse um Código de Defesa do Consumidor, acabou por conferir poderes ao legislador consumerista para disciplinar a matéria.

José Afonso da Silva2 consigna que “a Constituição foi tímida no dispor sobre a proteção dos consumidores. Estabeleceu que o Estado proverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII)”, realçando a importância de sua inserção dentre os direitos fundamentais, ou seja, conferindo àqueles a titularidade de tais direitos, bem como adverte-nos para a regra do artigo 170, V, da CF/88, que toma a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica, o que, nos dizeres de Gomes Canotilho e Vital Moreira, vem a “legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista”.

Reportando-nos ao artigo 127 da Constituição Federal, é possível verificarmos que, dentre as incumbências do MP, está a defesa dos interesses sociais. Proposto um diálogo entre a CF/88 e o CDC, pode-se estabelecer uma congruência entre a disposição constitucional e o artigo 1º da lei consumerista, que consigna, já em seu preâmbulo, estabelecer normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social.

Sobre o tema, Nelson Nery Júnior baliza:

“(…) as normas do CDC são,“ex lege”, de ordem pública e interesse social (art. 1º, CDC). Ao definir o perfil institucional do Ministério Público, o art. 127 da CF diz ser o parquet instituição que tem por finalidade a defesa da ordem jurídica, do regime democrático de direito e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Assim, o ajuizamento, pelo Ministério Público, de ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos tratados coletivamente está em perfeita consonância com suas finalidades institucionais, sendo legítima a atribuição, ao Ministério Público, dessa legitimidade para agir, pelos arts. 81 e 82 do CDC, de conformidade com os arts. 127 e 129, IX, da CF”.

Assim, se por um lado o legislador constituinte deixou de inserir expressamente os interesses individuais homogêneos dentre aqueles que são objeto da intervenção ministerial, a respectiva Carta nos permite interpretá-la de forma a considerar aqueles direitos como merecedores de tal tutela. E, como bem lembrado pelo festejado jurista supra, o já citado artigo 129 da CF/88, em seu inciso IX, nos fornece outro elemento conclusivo no tocante à legitimidade ao MP nesse sentido, ao dispor que, dentre seu imperativo institucional, encontra-se o exercício de outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade.

No âmbito das normas programáticas do CDC, destaque-se que o artigo 5º, II agasalhou a instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, na esfera do MP, como instrumento à consecução da Política Nacional das Relações de Consumo, objetivando garantir efetividade na defesa dos direitos do consumidor.

Não obstante a tradicional caracterização do Poder Judiciário como ente competente para a composição de conflitos de interesse, devido ao atual contexto social instalado pela globalização, pensamos ser um dever da magistratura sub-rogar-se no desempenho de funções estranhas à de sua competência estrita, com o fim de realizar efetivamente a justiça social, de forma a atingir os fins traçados pelo Estado Democrático de Direito, em resposta ao individualismo que outrora dominava a sociedade. Mais do que nunca, a função do juiz, como “administrador” das tensões sociais, emerge de forma destacada, sendo imperioso registrar o disposto no art. 5º da LICC, o qual determina:

Art. 5º – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Na seara consumerista, esse poderoso dispositivo há de ser veementemente observado pelos magistrados, uma vez que o paradigma sócio-econômico reclama uma tutela enérgica por parte dos juizes, chegando a ser, ousamos dizer, até mesmo uma irresponsabilidade por parte do Judiciário o não reconhecimento do MP como instituição legitimada à defesa dos interesses aqui tratados.

Ademais, impende salientar que a permissão da intervenção ministerial é medida salutar a evitar decisões contraditórias sobre o mesmo fato, bem como a prestigiar a economia e celeridade processuais, e ainda a evitar o desgaste da máquina judiciária. Pensamos não ser sensato que seja dispensado tratamento individual a situações geradas por uma sociedade de consumo de massas. Da mesma forma, as questões levadas à apreciação do Judiciário devem receber tratamento massivo diante da permissão do ordenamento jurídico pátrio, em homenagem à dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, não havendo maior respeito à democracia do que tratar o mesmo fato de maneira uniforme.

Por derradeiro, recorremos-nos ao que afirmou Kazuo Watanabe, em seus comentários ao CDC, de forma categórica, e com rara felicidade, ao discorrer acerca das principais medidas protetivas do consumidor nele previstas: “De nada adiantará tudo isso sem que se forme nos operadores do direito uma nova mentalidade capaz de fazê-los compreender, aceitar e efetivamente por em prática os princípios estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor”. Em outras palavras, tão importante quanto nosso avanço legal, é o correspondente avanço daquele que tem o dever de garantir a eficácia da lei perante a realidade social a que ela se destina tutelar. Dessa forma, a lei se engrandece. Caso contrário, tornar-se pequena e ineficaz.

Notas de rodapé

1. Citado por Werson Rego, in O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, a nova concepção contratual e os negócios jurídicos imobiliários: aspectos doutrinários e jurisprudenciais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pág. 09.

2. In Curso de direito constitucional positivo, 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, págs. 254 e 255.

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