Interrogatório online

Quem sabe resistência à tecnologia não vire apenas história

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25 de fevereiro de 2007, 0h00

Em discussão que já atinge quase uma década, alvo de intensa controvérsia tem sido a adoção, entre nós, do chamado interrogatório online ou virtual, assim chamado aquele que se vale da informática para a prática do ato. A primeira experiência nesse sentido foi realizada no dia 27 de agosto de 1996, na cidade de Campinas, por iniciativa do juiz Edison Aparecido Brandão, segundo ele mesmo informa em artigo publicado na revista Consultor Jurídico de 6 de outubro de 2004.

O assunto, meio que esquecido, voltou, porém, revigorado ao debate a partir da edição de duas leis que, no âmbito de seus respectivos estados, autorizam a efetiva implantação da chamada tele-audiência. São elas a Lei Estadual paulista 11.819/05 (que prevê, também, a oitiva de testemunhas por esse método) e a Lei Estadual fluminense 4.554/05. E agora, principalmente, em virtude da tramitação, no Congresso Nacional, do Projeto de Lei 7.227/06, de autoria do senador Tasso Jereissati, que no dia 8 de novembro de 2006, teve parecer do relator aprovado na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados.

São inúmeras as críticas dirigidas a essa espécie de inovação, posicionando-se a doutrina, quase que de forma unânime, contra sua adoção. Os argumentos se sucedem. Com efeito, nos interrogatórios realizados à distância, chamados online, é certo que, de um lado, conta-se com a facilidade propiciada pela informática, mas, por outro, segundo seus críticos, perde-se o imprescindível contato físico entre réu e juiz. Ademais, nenhuma razão de ordem prática pode justificar tão infeliz iniciativa.

Conforme salientou Ana Sofia Schmidt de Oliveira: “Importa o olhar. Importa olhar para a pessoa e não para o papel. Os muros das prisões são frios demais. Não é bom que estejam entre quem julga e quem é julgado” (O interrogatório a distância — online, Boletim do IBCCrim, 42, p. 1). Nessa linha, de se conferir artigo do professor René Ariel Dotti, que, do alto de sua sabedoria, observa: “a tecnologia não poderá substituir o cérebro pelo computador e muito menos o pensamento pela digitação. É necessário usar a reflexão como contraponto da massificação. É preciso ler nos lábios as palavras que estão sendo ditas; ver a alma do acusado através de seus olhos; descobrir a face humana que se escondera por trás da máscara do delinqüente. É preciso, enfim, a aproximação física entre o Senhor da Justiça e o homem do crime, num gesto de alegoria que imita o toque dos dedos, o afresco pintado pelo gênio de Michelangelo na Capela Sistina e representativo da criação de Adão” (RT 740/480).

A questão foi apreciada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária que, por meio da Resolução 5, de 30 de setembro de 2002 (publicada no DOU de 04 de outubro de 2002), houve por bem rejeitar a proposta de implantação dessa modalidade de interrogatório, acrescendo outros argumentos àqueles acima mencionados.

Segundo parecer da conselheira Ana Sofia Schmidt de Oliveira, um primeiro óbice é encontrado na falta de previsão legal para essa espécie de interrogatório, em vista da ausência de dispositivo em nosso Código de Processo Penal que o autorize. Ademais — prossegue a conselheira — asseguram o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), o direito do réu preso de ser conduzido à presença de um juiz, direito que “não pode sofrer interpretação que venha a equiparar a condução da pessoa à condução da imagem por cabos de fibra ótica”. Nessa linha de raciocínio foi também a manifestação do conselheiro Carlos Weis, recomendando a rejeição da proposta.

Outro inconveniente sempre lembrado seria a nítida violação ao princípio da publicidade, caso instituído o interrogatório virtual. Nesse sentido é posicionamento de Tales Castelo Branco, em parecer que lhe foi solicitado pela OAB, publicado no Boletim do IBCCrim 124, de março de 2003, quando ressalta que a novidade malfere o artigo 792 do Código de Processo Penal e o artigo 5°, LX, da Constituição.

Isso sem contar no constrangimento imposto ao réu, obrigado a prestar seu depoimento no interior da cadeia, afinal, no dizer do ilustre advogado “é necessário abandonar a ingenuidade ou o excesso de boa-fé para, honesta e lealmente, avaliar se o interrogatório realizado no interior do presídio garante a liberdade de manifestação do preso, quando todos sabem que as cadeias são dominadas por temíveis facções criminosas.

Tanto quanto os riscos de inibir denúncias contra a própria administração do presídio e seus funcionários — guardas de presídio e carcereiros —, haverá, ainda, notória insegurança para aqueles que, para exercitar a autodefesa, necessitassem delatar alguém que estivesse confinado na mesma prisão”. Por último, aponta uma dificuldade de ordem prática, quando indaga em que local ficariam os autos, ao lado do juiz ou no presídio, para concluir que “num ou noutro lugar, não teriam como atuar, a não ser que se prestassem a figurar, o que se admite, aqui, apenas por absurda hipótese, como simples coonestadores da ilegalidade ou ridículas figuras decorativas, afrontando o princípio constitucional da ampla defesa (artigo 5º, LV)”.


Aponta-se, ainda, outra afronta à Constituição, agora mais diretamente relacionada às leis estaduais 11.819/05 (SP) e 4.554/05 (RJ). É que os estados, ao tratarem do interrogatório, acabaram legislando sobre processo, cuja competência é exclusiva da União, por força do disposto no inciso I, do artigo 22, I, da Constituição Federal.

Nesse sentido é lição de Antonio Scarance Fernandes, ao afirmar: “Ainda que se admitisse o poder dos estados de regularem as atuações dos juízes estaduais e dos membros do Ministério Público por normas de organização judiciária ou normas de cunho administrativo, não poderiam dispor sobre direitos do acusado, os quais devem ser objeto de normas federais de direito processual. A norma sobre videoconferência não é, ademais, simples norma a respeito dos locais em que os atos de interrogatório e de instrução processual serão efetivados.

Ela envolve, necessariamente, direitos dos acusados, como o seu direito a ser ouvido diretamente pelo juiz, o seu direito à presença do defensor ao ato do interrogatório, o seu direito a exercer em contato pessoal com o juiz a sua autodefesa” (A inconstitucionalidade da lei estadual sobre videoconferência, Boletim IBCCrim, São Paulo, 147, p. 7, fev. 2005).

É também este o sentir de Antônio Magalhães Gomes Filho, concluindo que “não é demais sublinhar que em matéria de garantias processuais a tendência contemporânea é a sua constitucionalização nos ordenamentos democráticos e, ainda, a sua universalização, com o reconhecimento dos valores do processo justo nas cartas internacionais de direitos; aqui não há lugar para versões ou temperos locais” (Garantismo à paulista: a propósito da videoconferência, Boletim IBCCrim 147, p. 7, fev. 2005). No mesmo sentido: Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, A Lei estadual 11.819, de 05/01/05 e o interrogatório por videoconferência – primeiras impressões, Boletim IBCCrim 148, p. 4, mar. 2005.

Pontos favoráveis

Embora, como já dissemos, a discordância na doutrina quanto a essa espécie de interrogatório seja quase que unânime (podendo ser sintetizada na argumentação acima transcrita), há induvidosamente, segundo entendemos, pontos que lhe são favoráveis, cumprindo, mesmo que resumidamente, sejam eles apontados.

Um primeiro dado a ser lembrado é o que diz respeito à economia a ser gerada com a adoção dessa modalidade de interrogatório. Conforme dados trazidos por Leandro Nalini, em artigo publicado na revista Consultor Jurídico de 16 de agosto de 2005 (Visão provinciana impede a evolução da videoconferência), colhidos pelo eminente desembargador Francisco Vicente Rossi, do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, no período de 1 a 15 de junho de 2003 foram realizadas 27.186 escoltas, 73.744 policiais militares e 23.240 viaturas policiais foram mobilizados, gerando um gasto de R$ 4.572.961,94.

Outra inegável vantagem é a celeridade que essa espécie de interrogatório propicia — saliente-se — tanto em favor da sociedade como em prol do próprio réu. Afinal, são sobejamente conhecidas as inúmeras protelações verificadas no processo pela não apresentação do acusado para o interrogatório (por problemas de escolta, falta de combustível, dificuldades no trânsito, etc.), a impor redesignações das audiências, tudo em prejuízo do rápido andamento do feito.

Pense-se, ainda, na questão da segurança. Não apenas da segurança da população que fica sujeita às constantes fugas de presos durante o trajeto ao fórum, arrebatados que são, ainda nas viaturas, por membros de suas facções criminosas. Mas na segurança também do réu que, dispensado de se dirigir ao fórum, não fica à mercê de toda sorte de infortúnios, como acidentes automobilísticos, resgate promovido por rivais, etc..

Vale lembrar, ainda, que pelo menos pela sistemática utilizada no Estado de São Paulo, o ato fica gravado, permitindo, a qualquer tempo, nova consulta ao interrogatório, inclusive por tribunais.

Uma das críticas que já se ouviu é a que se refere, com desprezo, ao fato do interrogatório online constituir-se em uma criação nacional, posto que desconhecido na legislação estrangeira. Não parece correta essa informação. Segundo Marco Antonio de Barros, em artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito da FMU (ano XVII, 25, 2003), “o Estatuto de Roma do Tribunal Pleno Internacional […] apresenta dispositivos permitindo a produção de provas por meios eletrônicos: é o que se lê no artigo 68, 2, que versa sobre a proteção das vítimas e das testemunhas e sua participação no processo; e é o que se infere do artigo 69, 2, que diz ‘[…] de igual modo, o Tribunal poderá permitir que uma testemunha preste declarações oralmente ou por meio de gravação em vídeo ou áudio…”. Vale, nessa linha, que se confiram, novamente, as informações trazidas por Leandro Nalini, segundo o artigo acima mencionado. Destaca o autor: “Na Itália, esse recurso tecnológico começou a ser utilizado, com grande sucesso, no combate ao crime organizado.


O objetivo do collegamento audivisivo a distanza, assim denominado naquele país, foi proteger as testemunhas da indústria mafiosa que ali se instalara. Também nos Estados Unidos, nos idos de 1983, o sistema da videoconferência entrou em operação nos processos de crimes de abuso de menores, permitindo-se a audiência à distância para que a vítima não sofresse intimidação e traumas psicológicos diante de um reencontro com o autor do crime, o denominado face to face”. Interessante que o autor era, pelo menos à época em que publicado o artigo, presidente da Comissão de Informática da 33ª. subseção da OAB-SP e, a despeito disso, assumiu corajosa posição que discrepa daquela defendida por seu órgão de classe.

Nossa posição

Divergindo da maioria, nos colocamos favoravelmente à implantação do chamado interrogatório online.

De início, refutamos a crítica endereçada à ausência de previsão legal para essa espécie de interrogatório em nosso Código de Processo Penal. Aliás, de um código de 1941, com vigência a partir de 1942, não se poderia mesmo esperar tamanha inovação. Já o Pacto de San Jose da Costa Rica é datado de 1969 (exatamente no mesmo ano que, de forma absolutamente incipiente, se começou a tratar da internet e, mesmo assim, para fins exclusivamente militares). Daí não ser possível esperar, por razões óbvias, que esses diplomas previssem tal inovação, sendo certo, porém, que não a proibiram.

Deve-se observar, contudo, que no processo penal brasileiro, segundo se extrai do artigo 155 do código, vigora o princípio da ampla liberdade na produção da prova, que só admite exceção quando expressamente prevista em lei. Vale dizer: regra geral, todo e qualquer meio de prova é admitido. Essa regra somente comporta exceções em hipóteses expressamente previstas em lei, como, por exemplo, em relação ao estado das pessoas (artigo 155), ou às questões prejudiciais dos artigos. 92 e 93 do código, quando a sentença proferida pelo juiz cível vinculará a decisão do juiz criminal. Ou, ainda, as chamadas provas ilícitas, expressamente vedadas pela letra do artigo 5º, LVI, da Constituição.

Nessa linha, o ensinamento de Florian, para quem “é óbvio que a proibição de que se trata deve encontrar seu enunciado em lei, pois somente pode existir, como impedimento para a prova, quando está clara e expressamente escrita. Nesse caso a regra e a liberdade da prova e a exceção é o obstáculo” (“Das provas penais”, Bogotá:Temis, 1988, t. 1, pp. 148). Vê-se, pois, ante o enunciado do artigo 155 do código, que toda prova é admitida, mesmo quando não elencada dentre as modalidades de provas previstas no CPP, a menos que haja expressa vedação legal, o que não se verifica na hipótese do interrogatório a distância.

Há quem afirme que o objetivo da Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, ao prever a faculdade conferida ao juiz em realizar o interrogatório no estabelecimento prisional em que se encontra o réu (artigo 185, parágrafo 1º, do CPP), foi exatamente de afastar, por completo, qualquer possibilidade de implantação do interrogatório a distância. Lembra, a propósito, Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, que “o anteprojeto apresentado pela Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, presidida pela professora Ada Pellegrini Grinover, posteriormente enviado ao Congresso Nacional, expressamente veda o interrogatório on-line”.

A redação que o PL 4.202/01 estabelece para o parágrafo único do artigo 185, do CPP é a seguinte: “não se admitirá o interrogatório a distância de acusado preso” (artigo citado). Aqui cabem duas observações: a um que não foi aprovada a inclusão desse parágrafo único na nova redação do artigo 185 do código. A dois que, por regra de hermenêutica, não se deve interpretar a vontade do legislador como preponderante sobre o texto legal. Não que se pretenda adotar o superado brocardo latino segundo o qual in claris cessat interpretatio.

Mas o que não se admite é que a intenção daquele que elaborou o texto legal possa preponderar sobre a vontade do Congresso, que teria vetado o mencionado projeto de lei que proibia a utilização do interrogatório virtual.

Outra crítica recorrente se refere à frieza que essa modalidade de interrogatório propicia ao ato. Com efeito, sendo o interrogatório o único momento processual em que o réu, de viva voz, se dirige ao juiz, é fundamental – dizem — que possa o magistrado sentir-lhe as reações, interpretar sua postura, detectar o rubor da face do que mente ou a sinceridade espontânea do que diz a verdade. Afinal, repetindo as palavras de René Ariel Dotti, acima lembradas, “é preciso ler nos lábios as palavras que estão sendo ditas; ver a alma do acusado através de seus olhos; descobrir a face humana que se escondera por trás da máscara do delinqüente”.


Também aqui é preciso cautela no tom da crítica. De se ver, inicialmente, que esse contato entre réu e juiz seria fundamental caso esse último, obrigatoriamente, fosse julgar a causa. Ocorre, como é cediço, que nosso ordenamento jurídico, pelo menos em matéria processual penal, não adotou o princípio da identidade física do juiz, razão pela qual inexiste qualquer vinculação entre o julgamento da causa e o ato de presidência do interrogatório. Assim, não é raro que um juiz interrogue e outro profira a sentença, sem que jamais se tenha proclamado a nulidade do decisum decorrente de tal fato.

A propósito, quando o interrogatório é realizado por meio de carta precatória (cuja validade foi inúmeras vezes reafirmada pelo STF), também não há qualquer contato entre o juiz sentenciante e o acusado. Pior: quantas vezes o tribunal, em grau de recurso, altera a sentença — seja para absolver ou para condenar — valendo-se, como elemento de prova, do interrogatório judicial, do qual apenas conheceu através da letra fria impressa no papel, sem que nenhum contato visual com o réu tenha ocorrido. Vê-se, destarte, que jamais se condicionou a validade da decisão ao obrigatório contato entre réu e julgador.

A propósito, como já salientamos, a sistemática adotada no estado de São Paulo prevê a gravação do interrogatório, propiciando, assim, rápida consulta pelo tribunal, que poderá, com facilidade, sentir a reação do acusado ao ser interrogado. A iniciativa, insisto, permite que um tribunal — a quem, via de regra, cumpre dar a última palavra — solicite o envio da gravação na qual consta o interrogatório tendo, dessa forma, um contato visual com o réu, situação impensável quando se adota o modelo tradicional.

Outro dado um tanto polêmico, ainda no mesmo tópico, é que se refere à necessidade da presença do réu, no interrogatório, próximo ao juiz (quer dizer, no mesmo ambiente), a fim de que todas as suas reações sejam captadas. Primeiro que não se tem notícia de interrogatório no qual o juiz tenha feito consignar que, ao formular determinada pergunta, viu-se o réu acometido de intenso rubor facial ou de tremor nas mãos. Segundo que essa espécie de constatação viria carregada por tamanho subjetivismo que a tornaria incapaz de conter algum valor probatório ou de prestar-se como elemento de defesa em favor do réu.

Como bem salientou Luiz Flávio Gomes — um dos precursores na implantação do interrogatório online — o tremor do acusado pode, por exemplo, tanto demonstrar sua revolta frente a uma acusação injusta, como sua intimidação por estar, frente ao juiz, prestando contas à Justiça (O interrogatório a distância, Boletim do IBCCrim 42, p. 4, jun-1996). E arremata, de forma espirituosa, o mencionado autor:

“O único lamento que deve ser ressaltado, em conclusão, consiste na inexistência desse sistema no tempo do Édito de Valério, que dizia: ‘no caso de dois acusados e havendo dúvida sobre a autoria, deve o juiz condenar o mais feio’. Felizmente a humanidade já avançou o suficiente para se dizer que está definitivamente proscrita essa repugnante fase histórica da condenação do réu pela feiúra ou, como diz o professor Zaffaroni, pela sua cara de prontuário”.

Saliente-se, ademais, que a forma de realização do interrogatório, propiciada pelo avanço da tecnologia, permite que o juiz sinta as reações do interrogando da mesma maneira que o faria caso ele estivesse na sala de audiência, preservando-se, assim, o princípio da imediação do juiz com as partes. De qualquer forma — repita-se — a crítica ao interrogatório online, no que diz respeito à impossibilidade cominada ao juiz de sentir as reações do réu (naquilo que alguém já denominou de Síndrome de Maria Bethânia, em virtude da conhecida canção que interpreta olhos nos olhos, quero ver o que você diz…), não procede em vista do absoluto subjetivismo de eventuais reações verificadas no transcurso do ato.

A propósito, essa questão que envolve a presença da pessoa, em vista do avanço tecnológico propiciado pela informática, é algo a ser meditado. Estar presente, nos dias atuais, não implica, necessariamente, na ocupação do mesmo espaço físico. No mundo de hoje, por força da chamada globalização, propiciada pela revolução informática (de efeitos iguais ou mesmo superiores à Revolução Industrial), estamos todos, simultaneamente, presentes no Brasil, na China, na Alemanha ou mesmo no espaço sideral.

Não se trata de apressada adesão ao modernismo e às facilidades tecnológicas que tanto nos seduzem. É, antes, uma nova realidade que se abre, gostemos ou não, cujas conseqüências estão postas de forma irreversível. Perfeita, nesse aspecto, a observação formulada por Vladimir Aras, segundo a qual “na sistemática do CPP, comparecer nem sempre significa necessariamente ir à presença física do juiz, ou estar no mesmo ambiente que este. Comparece aos autos ou aos atos do processo quem se dá por ciente da intercorrência processual, ainda que por escrito, ou quem se faz presente por meio de procurador, até mesmo com a oferta de alegações escritas, a exemplo da defesa prévia e das alegações finais.


Vide, a propósito, o artigo 570 do CPP, que afasta a nulidade do ato, considerando-a sanada, quando o réu comparecer para alegar a falta de citação, intimação ou notificação. Evidentemente, aí não se trata de comparecimento físico diante do juiz, mas sim de comunicação processual, por petição endereçada ao magistrado. Se assim é, pode-se muito bem ler o comparecer do artigo 185 do CPP, referente ao interrogatório, como um comparecimento virtual, mas direto, atual e real, perante o magistrado” (revista Consultor Jurídico de 28/09/04).

Daí a pertinência da observação formulada pelo jornalista Marcelo Coelho, em artigo que publicou no jornal Folha de S. Paulo, em 1º de março de 2006, ao salientar que “o desaparecimento da distância, assegurado pelos meios eletrônicos, faz com, que ninguém, na verdade, esteja totalmente próximo dos seus semelhantes: não está ausente, quando se afasta, nem presente, quanto está junto” (Caderno Ilustrada, p. 6).

Há quem aponte uma dificuldade de ordem prática na inovação, afinal onde permaneceriam os autos, na sala de audiência, com o juiz ou no estabelecimento penitenciário, junto ao defensor (Tales Castelo Branco, já citado, em parecer publicado no Boletim do IBCCrim 124, de março de 2003). É crítica que obviamente não tem sustentação.

Ora, o mínimo que se espera de um defensor, cuja presença ao ato, agora, passou a ser obrigatória, é que conte com cópia dos autos, máxime em se tratando de um advogado constituído. Se for dativo, que requeira sejam-lhe extraídas essas cópias. Imaginar-se que o advogado terá o primeiro contato com o processo já durante o interrogatório, implica em se admitir uma defesa meramente formal, burocrática e decorativa, quando se exige, em verdade, uma atuação efetiva e concreta do defensor.

Desconhece-se, outrossim, principalmente dentre aqueles que possuam alguma experiência prática e cotidiana no fórum, a razão pela qual se afirma que a adoção da novidade resultaria em uma verdadeira indústria de confissões. O que leva o réu a admitir a prática de um delito é, via de regra, um sentimento de arrependimento, que pode se manifestar independentemente do local. Ainda sob um ponto de vista subjetivo, a confissão ocorre, com maior preponderância, em delitos de pequena gravidade perpetrados por réus de bons antecedentes. Admitir sua prática, portanto, envolve o preenchimento dessas condições, sendo — repita-se — irrelevante o meio pela qual se verifica a confissão e o lócus onde ela ocorre.

Reclama-se, ainda, que a forma de realização do interrogatório afrontaria o princípio constitucional que garante a publicidade dos atos processuais, previsto nos artigos 5º, inciso LX e 93, IX (com a nova redação que lhe emprestou a Emenda Constitucional 45/04), da Constituição. O argumento parece totalmente equivocado.

A garantia à publicidade, aqui, é observada em sua plenitude, já que o acesso à sala de audiências, onde são captadas as imagens do acusado, é irrestrito, incidindo apenas, à evidência, a exceção prevista no § 1º, do artigo 792, do código. Nada impede — insiste-se — que qualquer pessoa se dirija ao fórum e assista, através de um televisor (para citarmos a experiência paulista), o interrogatório do réu.

Já dissemos que a alternativa encontrada pelo legislador para expurgar o interrogatório online traduziu-se na possibilidade prevista no parágrafo 1º, do artigo 185, do CPP, segundo a qual faculta-se ao juiz se dirigir ao estabelecimento prisional onde se encontra o réu a fim de interrogá-lo. Pois bem, aqui sim se malfere o princípio constitucional da publicidade, ante a óbvia dificuldade de alguém se deslocar ao estabelecimento penitenciário, somada a questões de segurança que chegam mesmo a impedir o ingresso de qualquer pessoa no local. Vale dizer: a inovação da lei é que padece de aparente inconstitucionalidade, muito mais do que o criticado interrogatório a distância.

A grande vantagem do sistema, sem dúvida, consiste na possibilidade de se conferir maior celeridade ao processo. Celeridade que, se antes, era um mero argumento de retórica vazia, presente em discursos dos operadores do Direito, ganhou, hoje, o status de norma constitucional, face ao conteúdo da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, que acresceu o inc. LXXVIII, ao artigo 5º, assegurando a todos, no âmbito judicial e administrativo, “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

A eficiência do processo, da qual a celeridade não se pode apartar, é requisito apontado como fundamental, pela doutrina mais moderna. Antonio Scarance Fernandes, citando a doutrina francesa de Jean Pradel (Procédure pénale, 10 ed, Paris, Cujas, 2000), ensina que “o princípio da eficiência é um protetor da sociedade e contém dois princípios: o da busca da verdade e o da celeridade. Em outras palavras, para o autor, o sistema criminal é eficiente quando permite a apuração dos fatos criminosos de maneira célere” (Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal”, São Paulo: RT, 2005, p. 40).


Como bem anota Marco Antonio de Barros (ob. cit., p. 207), “rejeitar ad nutum a realização do interrogatório online é algo que extrapola a razoabilidade. Não se pode aprisionar o Judiciário nem marasmo constante, como se os magistrados não tivessem a mínima capacidade de conciliar adequadamente o uso progressivo de meios eletrônicos com o sagrado dever constitucional de zelar pelo fiel cumprimento das regras que compõem o devido processo penal”.

Ora, a inovação privilegia, principalmente, a celeridade do processo. Celeridade, que é preciso se ressaltar, não é benéfica apenas à sociedade, que tem uma resposta mais eficaz frente ao delito cometido, mas, principalmente, ao réu que, preso, vê sua situação mais rapidamente definida. As constantes delongas que assolam o regular andamento do processo, causadas, como já apontamos, por problemas no deslocamento dos réus presos (isso sem falar nas mega-operações organizadas para o transporte de acusados perigosos, onde até helicópteros são utilizados e enorme contingente de pessoal mobilizado), são evitadas com o interrogatório a distância.

Forte crítica contra o interrogatório a distância se refere à inconstitucionalidade das leis estaduais na medida em que, muito mais do que tratarem de mero procedimento, acabaram legislando sobre matéria processual, cuja competência para tanto é exclusiva da União. Nesse sentido se manifestaram, como já salientei, as vozes autorizadas de Antônio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró. Permito-me divergir. Observo, de início, que a distinção entre processo e procedimento envolve intenso debate doutrinário, não sendo fácil, por vezes, identificar o marco divisório entre um e outro instituto.

De qualquer sorte, na linha de raciocínio de Cintra, Grinover e Dinamarco, “o procedimento é, assim, apenas o meio extrínseco pelo qual se instaura, se desenvolve e termina o processo; é a manifestação extrínseca do processo […] a noção de procedimento é puramente formal, não passando de uma coordenação de atos que se sucedem” (Teoria geral do processo, São Paulo: RT, 6 ed , 1987, p. 247).

Pois bem. Ao implantar a figura do interrogatório online, os estados não legislaram sobre processo, de molde a violar a norma constitucional. Assim o fariam se, por exemplo, criassem uma lei doméstica que suprimisse o interrogatório. Ou que postergasse sua realização para após a oferta da defesa prévia ou em seguida à prolação da sentença. Não.

Mantida a solenidade do ato, seguindo-se o rito previsto no código ou na legislação extravagante, preservando-se a ampla defesa propiciada com a presença do advogado, etc, tratou-se apenas de regulamentar o mecanismo pelo qual é realizado o interrogatório. O uso da informática, assim, é simples meio, mero instrumento para a realização do ato e não representa um fim em si mesmo. Não vai muito além, para se tomar um exemplo, da utilização da estenotipia, tão criticada ao tempo de sua implantação, cujas inconveniências então apontadas hoje soariam ridículas (ou, pelo menos, desatualizadas), face aos benefícios verificados no sistema.

Não parece, assim, tenha o legislador estadual usurpado da sua função legislativa, eis que se limitou a, preservado na sua integralidade o ato, estabelecer forma diferenciada para sua colheita, de resto, como já alertamos, não vedada pela Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003.

De se lembrar que, ainda recentemente, por meio de singelo convênio celebrado entre o Superior Tribunal de Justiça e os Ministérios da Justiça e das Comunicações, se permitirá o ajuizamento de petições iniciais virtuais, em mais de 3.200 pontos espalhados pelo Brasil, instalados em escolas, sindicatos e organizações não-governamentais.

À exceção da OAB, movida por indisfarçável preocupação corporativista, não se conhece outra crítica séria dirigida a tão relevante inovação, capaz de democratizar o acesso à Justiça. Outro exemplo: a Lei 10.259/01, que criou os chamados Juizados Especiais Federais, prevê em seu artigo 14, parágrafo 3º, que a audiência das turmas de uniformização de jurisprudência seja realizada por meios eletrônico, in verbis: “A reunião de juízes domiciliados em cidades diversas será feita pela via eletrônica”.

Convém recordar, por último, da lição de Jorge Americano, professor catedrático da Faculdade de Direito de São Paulo, citado por Antônio Luiz da Câmara Leal (Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942, vol. III, p. 21), ao criticar a inovação trazida pelo então recém editado CPP, consistente na possibilidade de ser datilografada a sentença do juiz:

“A sentença deve ser escrita do próprio punho, datada e assinada por seu prolator. São considerados essenciais estes requisitos porque servem para fiscalizar a autenticidade da sentença, e ao mesmo tempo asseguram o sigilo que sobre ela se deve manter até a respectiva publicação”.

É essencial, para a dignidade da magistratura, que o juiz mantenha sigilo quanto à sua opinião sobre a demanda, até o momento de lavrar a sentença. Qualquer conversação sobre ela travada conduziria à discussão com as partes, com grave prejuízo da austeridade a até da honra do magistrado […] Ora, permitir que a sentença seja datilografada é tolerar o seu conhecimento pelo datilógrafo, antes de publicada.

É certo que a sentença, enquanto em estado de rascunho, pode ser modificada, e só adquire força depois de publicada. Basta uma hesitação da parte do juiz, em presença do datilógrafo, um erro que corrija, uma modificação que introduza, para criar no espírito desse auxiliar uma suspeita sobre a integridade do juiz ou, quando tal não se dê, trazer a público incidentes curiosos ou anedóticos quanto à maneira de lavrar a sentença.

Eis porque parece mais sábio manter a tradição, segundo a qual o juiz lavra, data e assina a sentença do próprio punho”.

Quem sabe se ao final deste século, a resistência quanto à implantação de modelos modernos, capazes de agilizar a justiça (como a experiência do interrogatório a distância), não servirá, apenas, como um capítulo pitoresco de nossa história, se ombreando à recomendação acima transcrita (que reclama do juiz que lavre de próprio punho a sentença), ambas compondo um museu de curiosidades.

Como salientou um dos idealizadores do interrogatório online, o juiz Edison Aparecido Brandão, “aquela experiência realizada em uma tarde em Campinas destinava-se a demonstrar ao Judiciário e a toda a sociedade que o uso racional da tecnologia, além de inevitável, somente trará ganhos e visava, como visa, garantir a cidadania a todos, inclusive àqueles que a ofenderam” (revista Consultor Jurídico de 6 de outubro de 2004).

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