Corte anti-digital

Judiciário quer mas não consegue se informatizar

Autores

23 de fevereiro de 2007, 23h00

Qualquer administrador de empresa, por mais micro que ela seja, reconhece as vantagens da informatização para o sucesso do empreendimento. Qualquer operador da Justiça também sabe disso. Ao contrário dos empresários, no entanto, o Judiciário resiste bravamente a usar e explorar as vantagens que os computadores podem proporcionar ao bom desempenho de sua missão.

O Judiciário sabe que precisa, mas é lerdo demais para se modernizar. Como entender que, num país onde há um cyber café em cada esquina, a Justiça ainda use máquinas de escrever e armazene pilhas e pilhas de processos em papel? Justificativas existem aos milhares. Falta investimento, falta organização, mas, principalmente, falta a vontade de inovar. Um dos principais freios da modernização do Judiciário é o conservadorismo que impede que os responsáveis pela Justiça troquem o fax e o oficial de Justiça pelo e-mail.

Veja-se o caso da penhora online. Na Justiça Trabalhista, ela é um sucesso. Mas só para quem a usa. Boa parte dos juízes, amantes das tradições, prefere manter o procedimento convencional de penhora, que leva dias, a ver a sua ordem cumprida em segundos. É natural a dificuldade de inserir na era virtual um profissional que há décadas está acostumado com pilhas de processo de papel e a não ter compromisso com prazos. “Existem os entusiastas que querem saber de todas as novidades, mas também há os profissionais mais idosos que simplesmente não se adaptam”, acredita o advogado Nehemias Gueiros.

O conservadorismo que faz com que juízes continuem fazendo manualmente tarefas que poderiam ser feitas no computador com mais rapidez e mais qualidade é um dos responsáveis também pela falta de investimento em informatização. Segundo os dados de 2005 do Justiça em Números — Indicadores Estatísticos do Poder Judiciário, levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça, o Judiciário investe em informatização apenas uma pequena fatia de seu orçamento.

Em 2005, a Justiça Federal foi a que mais investiu em informática: 2% da sua despesa total. A Estadual veio logo em seguida, com 1,9% e a Trabalhista, considerada a mais moderna, investiu menos ainda, 1,2%. De R$ 23 bilhões gastos com o Judiciário em 2005, apenas R$ 500 milhões foram destinados para informática. Assim, não é de se estranhar que em nenhum ramo da Justiça a relação entre o número de servidores e de computadores seja de um para um. Impera o princípio do compartilhamento: enquanto um funcionário usa o computador, o outro sai para tomar um cafezinho.

“Antes de investir R$ 1 em juízes, que são imprescindíveis, é preciso investir muito em tecnologia para potencializar os meios pelos quais o atual aparato burocrático dá respostas ao jurisdicionado”, aconselha o advogado Eduardo Mahon.

Faz sentido digitalizar a Justiça diante do grau de exclusão digital no país (de cada seis brasileiros, um tem acesso a computador)? A experiência em outros setores da sociedade mostra que sim, que mesmo os excluídos digitais acabam se beneficiando com a modernização. O Brasil tem, hoje, um dos mais altos índices de informatização bancária no mundo. A votação eletrônica é um sucesso. A maioria quase absoluta dos contribuintes prefere fazer sua declaração de renda pelo computador e pela internet. Estes avanços facilitaram a vida dos cidadãos em geral e eliminaram filas nas portas dos bancos, das cabines eleitorais e dos postos da Receita Federal.

As filas também são menores nos Juizados Especiais Federais, a melhor prova de que informática faz bem à saúde do Judiciário. Em termos de informatização, são eles os grandes pioneiros do Judiciário. Em São Paulo, por exemplo, não há mais papéis. Todo o processo é virtual. O cidadão vai até o juizado, leva todos os documentos que precisa e toda a digitalização é feita lá. Ele volta para casa com o seu processo encaminhado e os documentos. Nada fica na Justiça.

Avanços notáveis, como este, não impedem recuos relativos. Jader Carlos Videira, diretor da divisão da informática dos Juizados Especiais Estaduais de São Paulo, conta que muitos advogados usavam os dados obtidos na consulta processual online para captar novos clientes. Para acabar com o caça-cliente, foram instaladas senhas que permitem apenas aos advogados das partes terem acesso a todas as informações. Os outros apenas podem ver o andamento processual.

Peso da lentidão

A presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Ellen Gracie, acredita que a Justiça deve estar informatizada em cinco anos. A aposta da ministra é fundamentada. No próximo dia 20, entra em vigor a Lei 11.419/06, que regulamenta a informatização do processo judicial no Brasil. A grande novidade é que o advogado, um dos braços da Justiça, ganhará um papel ativo no processo eletrônico, e não apenas passivo.

Além de consultar andamentos processuais, ferramenta que já está em prática há pelo menos uma década, poderá apresentar peças, recorrer, solicitar documentos e ser intimado. Se não der vírus, as filas nos cartórios e fóruns podem estar com os dias contados.

A troca do papel físico pelo digital é uma das principais aliadas para reduzir a morosidade da Justiça. Segundo dados do Supremo Tribunal Federal, 70% do tempo de tramitação de um processo é consumido pelo chamado “tempo neutro”, que também poderia ser chamado de tempo da burocracia. É aquele gasto com carimbos em documentos, transporte e separação de papéis. A informática tem o dom de reduzir consideravelmente estes passos processuais e de agilizar os passos que tiverem de sobreviver.

A simplificação do processo sempre gera resistência. Por ser a primeira vítima da informatização, é natural que a burocracia seja a maior adversária de sua implantação. O carimbador de papel é levado a pensar que com o computador perderá sua mesa de carimbação. Poderia pensar que com o computador desempenharia tarefas mais úteis.

Em 2005, o Ministério da Justiça tentou acelerar a informatização do Judiciário por meio de uma parceria com a fábrica de cigarros Souza Cruz. O projeto, batizado de Justiça sem Papel, tinha como objetivo custear e auxiliar no desenvolvimento de propostas para a modernização do Judiciário brasileiro. Informática era seu forte, claro.

A empolgação durou pouco. O Ministério Público entrou com Ação Civil Pública e a Justiça Federal suspendeu a execução do projeto. O desembargador Antônio de Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, condenou o envolvimento do Judiciário em “parcerias espúrias, moralmente reprováveis e constitucionalmente repudiadas, a ponto de comprometer o bom nome, a moralidade e o magnânimo papel da Justiça, garantido e consagrado pelos comandos da Constituição da República Federativa do Brasil, para a segurança jurídica de todos”.

O MP e o TRF-1 condenaram a iniciativa não por suas virtudes ou defeitos, mas por uma suposta inidoneidade da Souza Cruz, mesmo sendo uma empresa legalmente constituída e em dia com suas obrigações. “Já tínhamos diversos projetos inscritos. Em Niterói (RJ), estávamos começando a implementar um deles quando tivemos de suspender. É uma pena”, lamenta Pierpaolo Botini, secretário de Reforma do Judiciário, órgão do Ministério da Justiça.

Pilotos aqui, pilotos acolá

Na falta de um programa nacional ou setorial, continuam a pipocar experiências tecnológicas em diferentes unidades da Justiça. Em Mato Grosso, foi inaugurado no dia 12 deste mês o Juizado Especial Digital, que permitirá que as petições sejam enviadas pela internet.

Em São Paulo, o estado mais entupido de processos e um dos menos informatizados, o Juizado Especial Estadual já apresentou a era digital ao chamado Expressinho, Projeto de Atendimento Diferenciado do Tribunal de Justiça de São Paulo, mantido em parceria com as empresas Eletropaulo, Embratel, Sabesp, Telefônica e Unibanco. Lá, os processos são digitalizados assim que o cidadão chega para apresentar queixa e ingressar com a ação, e as empresas são intimidas via e-mail.

O processo eletrônico chegou à cidade catarinense de Caçador. Na Vara Federal da cidade, foi instalada ferramenta que permite que todo o trâmite processual seja feito no mundo virtual. A idéia é que, a partir do dia 31 de março, todos os Juizados Especiais Federais da 4ª Região não recebam mais papéis. O processo terá de ser inteiramente digital.

Fora dos limites da Justiça, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual tentou coibir o uso do papel. Fracassou. Inicialmente, os pedidos de registro feitos via papel deveriam ser rejeitados a partir de 31 de janeiro. Não deu. O prazo agora foi adiado para 28 de fevereiro mas, dificilmente poderá ser cumprido. Se por um lado os interessados reclamam que a imposição prejudicará aqueles que não têm acesso à internet, por outro o próprio instituto admite que o sistema digital ainda está em desenvolvimento e apresenta problemas.

Em Santarém, interior do Pará, a imposição da troca do material pelo virtual também fracassou. A Justiça Trabalhista tentou forçar os advogados a usar apenas o meio eletrônico para apresentar seus processos impedindo o uso do papel. Os defensores protestaram, dizendo que a medida arbitrária impediria advogados menos agraciados financeira ou culturalmente de continuar trabalhando. Lá, a voz da advocacia falou mais alto. “As mudanças não podem ser impositivas para que não haja um apartheid digital. Tem de ser gradativamente para as pessoas irem aprendendo a lidar com os programas”, pondera Alexandre Atheniense, presidente da Comissão de Informática da OAB.

Informática legal

A videoconferência, para tomar depoimentos de testemunhas e réus à distância, é outra solução tecnológica que pode ser usada com proveito. No Rio de Janeiro, a prática foi usada em 2002. Quatro presos considerados de alta periculosidade prestaram depoimento do presídio de Bangu para o Tribunal de Justiça fluminense. Em 2005, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região usou a ferramenta para permitir que uma testemunha no caso do Banestado, que estava nos Estados Unidos, depusesse.

Falta ainda consenso sobre a prática. Os defensores apontam vantagens, como o custo mais baixo e a segurança mais alta, e garantem que a videoconferência tem base legal desde que seja garantido o direito de o preso conversar com o seu advogado durante o depoimento e em sigilo. Os adversários dizem ser ilegal o preso depor sem estar cara a cara com o juiz. De qualquer forma, falta regulamentar a matéria. Projeto de lei sobre o assunto já tramita no Congresso Nacional.

Como toda inovação tecnológica, o sucesso da informatização depende da adequada aplicação dos meios. Vontade, apenas não basta. Em Ribeirão Pires, na região metropolitana de São Paulo, uma adoção por pouco não deixou de ser concluída por causa de problemas com a internet. Mãe biológica e pai adotante no Japão, pai biológico no Brasil. Todos reunidos, ainda que os dois primeiros virtualmente, na sala da juíza para que a criança fosse adotada. Não rolou. A internet não funcionou. A alternativa foi recorrer à subsecção da OAB na cidade para, de lá, concluir a adoção.

Caminho inverso

Ainda que resista a entrar no mundo virtual, a Justiça está sendo compelida a julgar o que nele acontece a todo o momento. Roubo, injúria, difamação, pedofilia, tudo isso que antes era feito apenas no mundo físico, hoje é perpetrado pelo computador e pela rede que os une mundialmente, a internet. E é lá que ficam as provas. O Judiciário nada contra a corrente toda vez que essas provas virtuais têm de ser materializadas no mundo real.

Por hora, a responsável por perpetuar a prova é a chamada ata notarial, feita nos cartórios. Lá, a página virtual é impressa, certificada e vira mais um papel no amontoado da Justiça. “A Lei 11.419/06 [que regulamentou a informatização no Judiciário] continua a tratar a prova documental ou escrita como documentos físicos de papel que devem ser digitalizados. Ela não considera as provas que nunca existiram em formato impresso, que foram geradas desde o início eletronicamente”, diz o advogado Ângelo Caldeira Ribeiro. Mais um desafio para a Justiça.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!