Veto ao projeto

Super-Receita é retrocesso no combate ao trabalho escravo

Autor

  • Walter Nunes da Silva Júnior

    é juiz federal ex- presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil doutor em teoria constitucional do processo penal e professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

23 de fevereiro de 2007, 15h45

A Câmara dos Deputados aprovou nesta semana o Projeto de Lei 6.272/05, originário do Senado Federal, que cria a chamada Super-Receita. É por todos sabido que a Super-Receita tem por objetivo maior unificar o trato, a fiscalização e a cobrança das receitas de tributos e contribuições federais (a cargo da Receita Federal) com as da receita previdenciária (a cargo do Instituto Nacional do Seguro Social — INSS), de modo a otimizar a ação fiscal e desburocratizar a relação Fisco-Contribuinte.

Em que pese a sensível evolução que essa unificação traz, quer sob a ótica administrativa, fiscal, bem como sob o ponto de vista do cidadão-contribuinte, o projeto de lei em questão, já aprovado pelo Congresso Nacional, traz em seu bojo um dispositivo que desmerece o seu escopo e, o que é mais grave, traz sérias e profundas repercussões, de todo nefastas e negativas ao bem sucedido combate ao trabalho escravo.

A pretexto de evitar-se concentração de poderes nas mãos dos auditores fiscais do trabalho, os parlamentares aprovaram a emenda aditiva 3 (de origem nº 94) que diz o seguinte: “No exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta lei, a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá ser sempre precedida de decisão judicial.”

Em outras palavras, diz o texto aprovado pelo Legislativo que servidores públicos concursados, capacitados e treinados para verificar ilegalidades ou descumprimento da relação trabalhista, com atribuições de imediatamente tomar as medidas cabíveis para a pronta regularização, de modo a resguardar o mínimo respeito aos trabalhadores e à legislação trabalhista, não mais poderão exercer esse mister.

Vale dizer, o Ministério do Trabalho (órgão do Poder Executivo), por seus auditores fiscais, não poderá mais verificar e punir aqueles que infringem a relação de trabalho. Dever-se-á aguardar a manifestação do Poder Judiciário para se concluir se há, ou não, violação aos pressupostos basilares da relação de trabalho. Somente após a decisão judicial, devidamente transitada em julgado, é que poderão ser tomadas providências devidas, sejam trabalhistas, administrativas, fiscais, cíveis ou penais. Tudo isso, muito tempo depois dos fatos.

Tal dispositivo, inserto no projeto de lei recém-aprovado da Super-Receita, não só representa grande retrocesso na fiscalização da relação de trabalho, como também pode vir a colocar, novamente, o Brasil em situação de desconforto perante a comunidade internacional, tendo em vista que, em razão de acordos assinados, o país assumiu o compromisso de reprimir violações aos direitos humanos, bem como reprimir o odioso, medieval e inaceitável trabalho escravo que, infelizmente, ainda grassa em certos rincões.

A bem sucedida política de combate ao trabalho escravo poderá ruir, depois de tantos avanços ao longo do tempo. Isto porque os fiscais dos Grupos Móveis de Fiscalização não mais poderão tomar as medidas necessárias quando constatarem situação análoga ao trabalho escravo. Diga-se, aliás, que foi justamente devido à atuação dos Grupos Móveis de Fiscalização que o Brasil, no ano de 2005, foi citado como referência no relatório global da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Isso compromete a política que o Brasil, com o apoio de diversas entidades da sociedade civil – dentre elas a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), vem desenvolvendo, desde 1995, para erradicar o trabalho escravo, embora o País fosse signatário das Convenções 29 e 105 da OIT desde os anos 60. Assim, a eficácia e a excelência do trabalho desenvolvido pelos Grupos Móveis de Fiscalização — de 1995 até 2005 foram libertadas 17.983 pessoas — reconhecidas internacionalmente, sofrerão inadmissível retrocesso.

Como se não bastasse, há manifesta inconstitucionalidade no dispositivo ora aprovado. Com efeito, o Poder Executivo, por intermédio do Ministério do Trabalho, mais especificamente dos seus auditores fiscais do trabalho, detém atribuição originária e específica para verificar a higidez, a regularidade e a legalidade da relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício. Ao se atribuir, ao Poder Judiciário, com exclusividade, a competência para verificar eventuais ilegalidades ou irregularidades da relação de trabalho, é suprimida atribuição inata e originária do poder de polícia típico do Poder Executivo, que possui órgão e quadro de pessoal treinado e capacitado para tal fim.

Em nosso sistema jurídico, ao Poder Judiciário não cabe qualquer competência para fiscalizar isso ou aquilo. Cabe-lhe atuar somente em último caso, após esgotadas todas as outras possibilidades e instâncias, inclusive administrativas. Ou seja, quando de um concreto conflito de interesses instalado e não resolvido, havendo efetiva lesão ou séria ameaça de lesão a direito, é que se impõe a sua atuação. Fora dessa hipótese, não.

No Estado Democrático de Direito a Administração Pública constituída tem o dever e a obrigação de preservar as instituições, a normalidade: o respeito à ordem jurídica, independentemente de qualquer provocação. Esse é o seu dever ínsito e é o que os cidadãos esperam. Daí a divisão de tarefas e atividades entre vários órgãos estatais, de modo a melhor cumprir esses altos encargos. O Poder Judiciário atua em caráter excepcional, quando falham todos os demais controles e instâncias na resolução da questão e na preservação da legalidade.

O texto aprovado não somente promove a desarmonia entre esses Poderes Estatais, ao fazer com que um (Judiciário) exorbite as suas funções originárias em detrimento de outro (Executivo), de todo indesejável.

Em uma legislação que tem entre seus objetivos a melhoria da arrecadação, o dispositivo em questão terá efeito inverso, uma vez que a médio prazo ocasionará queda de receita, pela impossibilidade dos auditores fiscais do trabalho proporem, de imediato, a penalização dos autores de irregularidades ou ilegalidades na relação de trabalho, visto que seria necessário o ajuizamento de ação perante o Poder Judiciário.

Por tudo isso, pelo seu passado e história e pela bem sucedida política de combate ao trabalho escravo, espera-se do Presidente da República que vete o dispositivo em foco. A Nação agradecerá.

Walter Nunes da Silva Júnior, doutor em teoria constitucional do processo penal e professor de direito penal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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    é juiz federal, ex- presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, doutor em teoria constitucional do processo penal e professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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