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Direito à educação prevalece sobre outros interesses do Estado

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22 de fevereiro de 2007, 17h12

O direito à educação, assim como o direito à saúde e à vida, deve prevalecer sobre qualquer outro interesse do Estado. O entendimento é da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que reafirmou que é obrigação do município garantir vaga em creche para crianças com até seis anos ou, na impossibilidade, oferecer vaga na rede privada, bem como transporte escolar.

Os desembargadores mandaram o município de Canoas cumprir a lei. O relator Ricardo Raupp Ruschel destacou que a educação é um direito assegurado pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

De acordo com o desembargador, a Constituição Federal dispõe que a educação é um direito social e que o dever Estado será efetivado mediante a garantia “de atendimento em creche ou pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (artigo 208, inciso IV). O ECA (artigo 54) e a LDB (artigo 4°, I e IV) repetem a determinação constitucional.

“O direito à educação, a exemplo do que ocorre com o direito à saúde e à vida, deve prevalecer sobre qualquer outro interesse do Estado, mormente quando se trata da proteção de uma criança ou adolescente”, destacou o relator.

Acompanharam o voto os desembargadores Luiz Felipe Brasil Santos e Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.

Processo 70017460387

Leia a decisão

APELAÇÃO CÍVEL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. FORNECIMENTO DE VAGA EM CRECHE A CRIANÇAS DE IDADE ENTRE ZERO E SEIS ANOS.

DIREITO À EDUCAÇÃO. VAGA EM CRECHE. POSSIBILIDADE DE FORNECIMENTO DA VAGA EM CRECHE DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL PRÓXIMA DA RESIDÊNCIA DOS MENORES OU, CASO NÃO EXISTAM VAGAS NA REDE PÚBLICA, EM CRECHE PARTICULAR.

Segundo os ensinamentos de Ives Gandra da Silva Martins, “o ser humano é a única razão do Estado. O Estado está conformado para servi-lo, como instrumento por ele criado com tal finalidade. Nenhuma construção artificial, todavia, pode prevalecer sobre os seus inalienáveis direitos e liberdades, posto que o Estado é um meio de realização do ser humano e não um fim em si mesmo” (in “Caderno de Direito Natural – Lei Positiva e Lei Natural”, n. 1, Centro de Estudos Jurídicos do Pará, 1985, p. 27).

ASTREINTES. DESCABIMENTO. ORIENTAÇÃO DA CÂMARA.

Afigura-se descabida a cominação de multa por dia de atraso, na espécie, uma vez que tal imposição apenas contribui para o agravamento das finanças públicas, gerando novo ônus a ser suportado por toda a sociedade, sem atingir a efetividade almejada o provimento mandamental.

Recurso parcialmente provido.

APELAÇÃO CÍVEL: SÉTIMA CÂMARA CÍVEL

Nº 70017460387: COMARCA DE CANOAS

M.C.: APELANTE

B.D.S.A.: APELADA

R.S.: APELADA

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar parcial provimento ao recurso.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (PRESIDENTE E REVISOR) E DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES.

Porto Alegre, 29 de novembro de 2006.

DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL,

Relator.

RELATÓRIO

DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL (RELATOR) – Trata-se de recurso de apelação interposto pelo Município de Canoas contra a sentença (fls. 41 a 44) que julgou procedente o pedido formulado na ação ajuizada por Brenda D. S. A., menor representado por sua genitora, Rosângela S., determinando ao demandando que forneça à menor vaga em creche ou pré-escola pública próxima da sua residência, ou, na impossibilidade, ofereça vaga em creche da rede privada, às suas expensas, bem assim como transporte escolar, sob pena de multa de um salário mínimo nacional por dia de atraso no cumprimento da medida.

Em suas razões de apelação (fls. 48 a 51), o Município sustenta que a demanda por matrículas de crianças de zero a seis anos em estabelecimentos de ensino é infinitamente maior que a capacidade do Poder Público Municipal.

Destaca, ademais, a impossibilidade do Município de atender plenamente as necessidades da população, tendo em vista as limitações orçamentárias.

Sustenta, outrossim, a desnecessidade de aplicação da pena pecuniária, posto que já cumpriu o provimento judicial mandamental antes mesmo da prolação da sentença.

Ante o exposto, clama pelo provimento do recurso, com a conseqüente reforma da decisão a quo, nos termos das razões apresentadas.

O recurso foi recebido no efeito meramente devolutivo.

Contra-arrazoado o recurso (fls. 55 a 59), subiram os autos.

Em parecer lançado nas folhas 64 a 66, o Ministério Público opina pelo conhecimento e, no mérito, pelo parcial provimento do recurso.

Vieram-me os autos conclusos, para julgamento.

Registre-se, por fim, que foi cumprido o comando estabelecido pelos artigos 549, 551 e 552, do CPC.

É o relatório.

VOTOS

DES. RICARDO RAUPP RUSCHEL (RELATOR) – É de se dar parcial provimento ao recurso.

DIREITO À EDUCAÇÃO

Com efeito, dispõe o artigo 6º da CF, em seu caput, que a educação é um direito social. Aliás, é a educação um direito social deveras importante, posto que foi o primeiro a ser citado no rol dos direitos sociais pelo legislador constituinte.

A seu turno, o artigo 208, IV, da CF, ao dispor que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de “atendimento em creche e pré-escola ás crianças de zero a seis anos de idade”, assegura a estas o direito nos estabelecimentos de ensino mencionados.

Outrossim, os artigos 54 do ECA, e 4º, I e IV, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), repetem a garantia constitucional no intuito de garantir o ensino fundamental, creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos.

Da leitura dos dispositivos legais acima destacados, a outra conclusão não se pode chegar senão à de que o direito à educação foi priorizado tanto pelo legislador constituinte quanto pelo legislador infraconstitucional.

A colocação de tal direito social (à educação) em patamar tão elevado deve-se ao fato de que este direito se encontra intimamente ligado à tão propalada dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1º, III, da CF. Ademais, é bom que se diga, o direito à educação, a exemplo do que ocorre com o direito à saúde e à vida, deve prevalecer sobre qualquer outro interesse do Estado, mormente quando se trata da proteção de uma criança ou adolescente.

Para a efetivação dos direitos sociais, como é o caso do direito à educação, exige-se dos entes públicos a perpetração de ações concretas, como se vê da simples leitura do artigo 5º, §1º, da CF, o qual é expresso ao definir que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Este é o entendimento da doutrina e jurisprudência moderna, não mais subsistindo a doutrina e jurisprudência conservadora, a qual escusava o Estado do cumprimento de tais obrigações, sob a assertiva de que tais normas apresentavam um caráter programático, servindo apenas de orientação ao Poder Executivo, de modo que não poderia o Poder Judiciário exigir seu cumprimento.

Acerca do tema, confira-se o entendimento manifestado pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça em recente julgado, assim ementado:

DIREITO CONSTITUCIONAL À CRECHE EXTENSIVO AOS MENORES DE ZERO A SEIS ANOS. NORMA CONSTITUCIONAL REPRODUZIDA NO ART. 54 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. NORMA DEFINIDORA DE DIREITOS NÃO PROGRAMÁTICA. EXIGIBILIDADE EM JUÍZO. INTERESSE TRANSINDIVIDUAL ATINENTE ÀS CRIANÇAS SITUADAS NESSA FAIXA ETÁRIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO E PROCEDÊNCIA. 1- O direito constitucional à creche extensivo aos menores de zero a seis anos.é consagrado em norma constitucional reproduzida no art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Violação de Lei Federal. 2- Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à creche, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria intelectual que assola o país. O direito à creche é consagrado em regra com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado. 3- Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se, pelo outro ângulo, o direito subjetivo da criança. Consectariamente, em função do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todas as crianças nas condições estipuladas pela lei encartam-se na esfera desse direito e podem exigi-lo em juízo. A homogeneidade e transindividualidade do direito em foco enseja a propositura da ação civil pública. 4- A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea. 5- Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o direito à educação das crianças a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais. 6- Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos. Muito embora a matéria seja, somente nesse particular, constitucional, porém sem importância revela-se essa categorização, tendo em vista a explicitude do ECA, inequívoca se revela a normatividade suficiente à promessa constitucional, a ensejar a acionabilidade do direito consagrado no preceito educacional. 7- As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua implementação. 8- Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita, impondo-se ao judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso, resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária. 9- Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional. 10- O direito do menor à freqüência em creche, insta o Estado a desincumbir-se do mesmo através da sua rede própria. Deveras, colocar um menor na fila de espera e atender a outros, é o mesmo que tentar legalizar a mais violenta afronta ao princípio da isonomia, pilar não só da sociedade democrática anunciada pela Carta Magna, mercê de ferir de morte a cláusula de defesa da dignidade humana. 11- O Estado não tem o dever de inserir a criança numa escola particular, porquanto as relações privadas subsumem-se a burocracias sequer previstas na Constituição. O que o Estado soberano promete por si ou por seus delegatários é cumprir o dever de educação mediante o oferecimento de creche para crianças de zero a seis anos. Visando ao cumprimento de seus desígnios, o Estado tem domínio iminente sobre bens, podendo valer-se da propriedade privada, etc. O que não ressoa lícito é repassar o seu encargo para o particular, quer incluindo o menor numa ‘fila de espera’, quer sugerindo uma medida que tangencia a legalidade, porquanto a inserção numa creche particular somente poderia ser realizada sob o pálio da licitação ou delegação legalizada, acaso a entidade fosse uma longa manu do Estado ou anuísse, voluntariamente, fazer-lhe as vezes. 12- Recurso especial provido. (REsp nº 575280/SP, Rel, Min. José Delgado, DJU 25/10/2004, p. 228) (grifei)

No ponto, portanto, não procede a irresignação.

FIXAÇÃO DE ASTREINTES

Nos termos de reiteradas orientações desta Câmara, afigura-se descabida a cominação de multa por dia de atraso no atendimento a provimento judicial mandamental quando o destinatário da ordem é a Fazenda Pública, uma vez que tal imposição apenas contribui para o agravamento das finanças públicas, gerando novo ônus a ser suportado por toda a sociedade, sem atingir a efetividade almejada o provimento mandamental.

A respeito do tema, confira-se o interessante excerto da decisão proferida pelo eminente Des. Araken de Assis nos autos do Agravo de Instrumento 70009686122, verbis:

(…)

“Em princípio, aplica-se às pessoas jurídicas de direito público a disciplina do art. 461 do Cód. de Proc. Civil. Mas, há que atentar para a razoabilidade no uso dos meios coercitivos, pois a Administração, jungida à legalidade, nem sempre exibe condições de atender, prontamente, as chamadas “prestações positivas” resultantes dos comandos constitucionais. E ainda há que considerar que, por lastimável deficiência do ordenamento jurídico pátrio, a multa grava o Erário, jamais o agente político ou o servidor com competência para praticar o ato, pessoalmente, o que, no fundo, a torna inócua. A função da técnica de coerção patrimonial é pressionar, psicologicamente, quem pode cumprir a ordem judicial, ameaçando-lhe com sanção pecuniária, objetivo frustrado pela impossibilidade de atingir aquelas pessoas. No caso, avulta a inexistência de recusa em cumprir a ordem judicial.

“Nesta contingência, a aplicação de multa pecuniária é inútil e inconveniente: de um lado, não assegura a prestação imposta, vez que não atinge o agente público competente para praticar o ato, e, por isso, revela-se inútil; de outro lado, drena os recursos da área da saúde em benefício de um único cidadão, prejudicando a todos os demais, e, por tal motivo, sua inconveniência é manifesta.”

(…)

Na espécie, ademais, o provimento judicial mandamental já havia sido cumprido antes mesmo da prolação da sentença, não se justificando a fixação da pena pecuniária

Assim, no ponto, dou provimento ao recurso.

DISPOSITIVO

Pelo exposto, dou parcial provimento ao recurso.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS (PRESIDENTE E REVISOR) – De acordo.

DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES – De acordo.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Presidente – Apelação Cível nº 70017460387, Comarca de Canoas: “DERAM PARCIAL PROVIMENTO. UNÂNIME.”

Julgador(a) de 1º Grau: MARCELO MAIRON RODRIGUES

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