Simples assim

Se não houver pena privativa de liberdade, não há crime

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21 de fevereiro de 2007, 13h25

Toda lei, obra do gênio humano, segue uma formulação básica: dado o fato, deve ser a conseqüência. Tal forma da lei assimila-se às fórmulas algébricas. Por exemplo, quando digo A + B = C, é preciso determinar o domínio a que pertencem A, B e C, sob pena de a expressão algébrica ser inválida. O mesmo ocorre com o Direito.

O que a álgebra e o Direito têm em comum é que ambos são criações do homem. Emanam da sua razão e por isso não têm uma mera aspiração em ser lógicos: têm mesmo a necessidade de serem lógicos, pois do contrário não produzirão os resultados para que foram projetados.

Esse esquema da lei não pode ser rompido sob pena de causar uma fissura irremediável nos diques que guarnecem em porto seguro a objetividade do sistema jurídico. Por objetividade deve-se reter a independência que o sistema guarda das pessoas responsáveis em aplicá-lo, em fazê-lo valer. Por outras palavras, se a lei depender da subjetividade intelectiva deste ou daquele aplicador da norma jurídica de que é portadora, não haverá segurança nem previsibilidade quanto ao significado e à extensão dessa mesma norma, esvaindo-se sua finalidade, quer a primária, enquanto norma de conduta dirigida a todos e a cada um isoladamente como elemento pré-conformador do comportamento individual, quer a secundária, tida como norma de composição dirigida ao juiz, que dela se socorre para resolver o conflito de interesses instaurado no seio social.

A tarefa de subsunção legal é idêntica às operações algébricas. Identifica-se o fato e decide-se sobre sua contrariedade à determinada norma que o tem na base, ou no primeiro membro da fórmula geral: se F(ato), então deve ser C(onseqüência jurídica eleita). O primeiro membro “F” consiste na identificação descritiva do fato jurígeno, isto é, tem natureza meramente descritiva e estabelece os contornos do fato com aptidão para gerar efeitos jurídicos. O segundo membro “C” da nomoequação tem índole prescritiva; fixa a atribuição valorativa eleita, a ser imposta como conseqüência sempre que for decidida a existência concreta do fato descrito no primeiro membro.

Em lógica o preceito normativo pode ser reduzido à fórmula F → C (leia-se: se “F”, então deve ser “C”). Não é por outra que toda sentença, como já ensinava Francesco Carnelutti e Luigi Ferrajoli constitui um lavor de lógica pura, mais precisamente um argumento do tipo Modus Ponens. Esse argumento se expressa do seguinte modo: a premissa maior é a lei, consistente em um enunciado condicional do tipo se “F”, então deve ser “C” (F → C); a premissa menor é o fato “F” descrito no primeiro membro da fórmula normativa; a conclusão é a conseqüência “C” prescrita no segundo membro da mesma fórmula normativa.

P-1: F → C

P-2: F

Logo: C


O modus ponens é o argumento em que, partindo-se de um enunciado condicional, afirma-se o antecedente, resultando, inexoravelmente, o conseqüente. A validade desse argumento afere-se por meio de uma simples tabela de valores verdade (“v” = verdadeiro; “f” = falso):

F

C

F → C

(F → C) & F

l.1

v

v

v

v

l.2

v

f

f

f

l.3

f

v

v

f

l.4

f

f

v

f

c.1

c.2

c.3

c.4


Analisando a tabela acima verifica-se que só há uma hipótese em que F → C e “F” são ambos verdadeiros ao mesmo tempo: a linha 1. E nesta linha a conseqüência “C” aparece também como verdadeira. Portanto, sempre que o fato estiver concretizado, isto é, sempre que o juiz decidir que o fato alegado realmente ocorreu, ou seja, que é verdadeiro (é verdade o fato “F”), então, havendo norma jurídica em que ele figure no primeiro membro, deverá ser aplicada a conseqüência “C”.

Repare-se que a relação de causalidade inerente à norma jurídica, embora não derive de lei natural, em tudo assimila-se à causalidade naturalística. Por outras palavras, dado o fato “F”, deve ser a conseqüência “C” semelha-se com: dada a causa natural “N”, então ocorre o efeito natural “E” (a maçã é mais pesada que o ar; tudo que é mais pesado que o ar cai; se se solta a maçã no ar, ela cai).

Feitos estes esclarecimentos preliminares, a questão da qualificação jurídica da conduta descrita no artigo 28 da nova Lei de Tóxicos pode ser esclarecida muito facilmente.

A Constituição Federal afirma não haver crime sem lei anterior que o defina (art. 5º, inc. XXXIX). A definição do crime ficou, então, a cargo da lei infraconstitucional. Esse comando pode ser expresso em termos lógicos do seguinte modo: ~n → ~c (em que n = “há norma definidora de crime”; e c = “a conduta é criminosa”, devendo a fórmula ser lida: se não há norma definidora de crime, então a conduta não é criminosa). Isto demonstra que “n” é condição necessária para “c”, pois se determinada conduta é crime, então há lei que o define.

Por outro lado, o artigo 1º da LICP estabelece que: “considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”. Esse comando legal pode ser expresso em termos lógicos da forma seguinte: crime é toda conduta para a qual a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, que alternativa ou cumulativamente. Deste modo, se determinada conduta é crime, então a lei comina, pela sua prática, pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. Esse enunciado exprime-se em notação lógica da maneira seguinte: c → p (onde c = “a conduta ‘y’ é crime”; p = “a pena cominada em abstrato para a prática da conduta ‘y’ é de reclusão ou a detenção”). A expressão c → p é equivalente a ~p → ~c, o que demonstra ser “c” condição necessária para “p”, isto é, se a pena cominada pela prática da conduta “y” não é a reclusão nem a detenção, então a conduta “y” não é criminosa. Repare-se que o operador lógico negativo atua sobre o verbo, elidindo a cominação daquela modalidade de pena, o que significa ser possível a existência de outras modalidades de pena para infrações que não as criminosas.

Dizer que uma condição é necessária para alcançar determinado resultado significa asserir que este resultado não será alcançado sem o preenchimento daquela condição. Quando afirmamos que “p” constitui condição necessária para “c”, simbolizando essa afirmação na expressão lógica ~p → ~c, queremos dizer que “c” não ocorre se não ocorrer “p”. Ou seja, a conduta “y” somente é criminosa se a pena cominada em abstrato pela sua prática for de reclusão ou de detenção, ou, o que é rigorosamente o mesmo, a menos que a pena cominada para a prática da conduta “y” seja a reclusão ou a detenção, a conduta “y” não será criminosa.


A cominação da pena de reclusão ou detenção, nos moldes do artigo 1º da LICP, não constitui mera condição suficiente para a caracterização de uma conduta como crime, mas sim condição necessária. Isto porque a norma ali contida é imperativa ao impor que se considera crime a conduta a que a lei comine a pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a de multa. Se não houver a cominação da pena privativa de liberdade, então a conduta não pode ser considerada crime. Simples assim.

Insta ressaltar, as premissas de que se deve partir são aquelas postas na lei, e não as premissas do homem, ou premissas subjetivas que negam, restringem ou ampliam aquelas fixadas na norma jurídica com clareza solar, pois em assim agindo, quem o fizer estará afrontando a norma jurídica, deturpando-a.

Precisamente este o caso sob comento, traduzido em termos lógicos. Quem quiser aferir a validade lógica dos argumentos retrodeduzidos poderá fazê-lo elaborando a tabela de valores veritativos funcionais pertinente.

Ao lume de todos esses fundamentos é possível espancar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE 430.105-9/RJ, que considerou as condutas capituladas no artigo 28 da nLT como criminosas.

O critério, para usar as palavras do Min. Sepúlveda Pertence, adotado pelo ordenamento jurídico pátrio foi o do artigo 1º da LICP, que define como crime as condutas cuja prática sejam apenadas com privação da liberdade na modalidade de reclusão e detenção. É a partir desse critério geral, estabelecido em lei ordinária, é verdade, que se desincumbe o ordenamento em tipificar as diversas condutas criminosas. E o faz segundo a técnica normativa já mencionada, descrevendo a conduta repudiada como um fato comissivo ou omissivo, cuja realização enseja a aplicação da conseqüência prescrita no esquema normativo tipificador.

Alhures exemplifiquei com o homicídio. O artigo 121 assim se expressa: “Matar alguém: pena – reclusão de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.” O que permite identificar a conduta “matar alguém” como crime não é o fato de a lei exprimir um comando direto proscrevendo essa conduta dizendo-a criminosa. Não importa que o artigo 121 esteja localizado topologicamente sob a rubrica “Dos crimes contra a pessoa” na Parte Especial do Código Penal. Nada disso é relevante para caracterizar o homicídio como crime. A única coisa que importa nessa caracterização é a pena cominada em abstrato, que em sendo a de reclusão (privativa de liberdade) subsume o preceito legal sob a égide do artigo 1º da LICP.

Suponha-se que o legislador edite norma jurídica com o seguinte conteúdo: “fumar cigarro, charuto ou cachimbo em local destinado à freqüentação pública é crime.” Poder-se-ia afirmar a natureza delitiva de tal provisão legal? Obviamente impõe-se a resposta negativa. Nem tanto porque ausente a reprimenda, mas porque não se enquadra no conceito de crime estabelecido no artigo 1º da LICP. Suponha-se, agora, que tal disposição hipotética se complementasse com o seguinte enunciado: “os crimes para os quais a lei definidora não prescreve pena serão punidos com pena de prestação de serviços à sociedade”. Poder-se-ia afirmar que tais condutas constituem crimes? Mais uma vez, ao lume da Constituição Federal, a resposta negativa é a que cabe.


Isto porque admite-se a pena de prestação de serviços enquanto revestida da natureza substitutiva da pena privativa de liberdade. Jamais como pena principal, singular, própria. A substituição opera um efeito que dá ao condenado a opção de escolher se aceita o trabalho que lhe é imposto ou prefere cumprir a pena recolhido ao cárcere. Não fora assim, não houvera a possibilidade de o condenado escolher se aceita a substituição concedida pelo juiz, força convir que a pena de prestação de serviço à comunidade constitui trabalho forçado, quase escravo, porquanto desprovida de remuneração, e nisso incorre em manifesta inconstitucionalidade. Por outro falar, a pena restritiva de direitos consistente na imposição de trabalho ao agente, qual a prestação de serviço à comunidade, somente não será considerada inconstitucional se revestida do caráter substitutivo, pois nessa hipótese, em se recusando a prestar o serviço, aplicar-se-á a pena principal (substituída), que é a privação da liberdade. A cominação isolada, sem caráter substitutivo, da pena de prestação de serviço à comunidade, como pena primária, afigura-se inconstitucional porque enceta testilha com o disposto no artigo 5º, inciso XLVII, alínea “d”, da Magna Lex.

Seguindo por essa vereda, a penalidade de admoestação, prevista no inciso I, do artigo 28, da nLT, que aliás não integra o rol das penas restritivas de direitos previstas no artigo 43 do CP, não é suficiente para considerar crime as condutas descritas no caput do artigo 28 da nLT. Na verdade, não passa de um “puxão de orelha” que o juiz dará no agente. A imposição de medida educativa consistente no comparecimento do agente a programas e cursos que, obviamente, tenham por escopo conscientizá-lo dos males que o consumo de drogas pode acarretar, também não se afigura suficiente para caracterizar a conduta como delitiva. Basta lembrar que o infrator das regras de trânsito, mesmo que não tenha cometido nenhum crime dessa natureza, está sujeito a medidas quejandas no âmbito meramente administrativo. Com relação à penalidade de prestação de serviços à comunidade, prevista no inciso II do artigo 28, estamos que é manifestamente inconstitucional. E aqui outra importantíssima conclusão. Não se tratando pena substitutiva de privativa de liberdade, passa a constituir imposição de trabalho forçado ao sujeito, o que está expressamente proscrito pela Carta da República no artigo 5º, inciso LXVII, alínea “d”. Se o agente não cumprir a prestação de serviço à comunidade que lhe fora imposta, não poderá ser compelido a fazê-lo. Restará ao juiz, como única possibilidade que a lei lhe defere, aplicar a multa prescrita no parágrafo 6º do mesmo dispositivo legal. Mas se o agente não tiver recursos, tampouco a multa poderá ser-lhe cobrada, pois não haverá bens sobre os quais possa ser executada. O agente simplesmente ficará imune de qualquer sanção. Decorridos 2 anos da sentença transitada em julgado, prescreverá toda e qualquer possibilidade de excussão (artigo 30 da nLT).

Destarte, nem mesmo a sanção mais gravosa, qual seja a de prestação de serviços à comunidade, que somente pode ser aceita em nosso sistema como pena substitutiva, pode ser agitada como fundamento para classificarem-se as condutas previstas no art. 28, caput, da nLT, como crimes. A inconstitucionalidade palmar dessa reprimenda cominada isolada ou alternativamente como sanção principal conduz a que deve ser arredada, retirando-se-lhe toda eficácia e reputando-a não escrita no texto legal. Desaparece, assim, o último reduto em que se apegam os defensores da interpretação conservadora e retrospectiva que consideram criminosas as condutas previstas no caput do artigo 28 da nLT com espeque no fato de uma das penalidades, qual seja, a de prestação de serviços à comunidade, constar expressamente entre aquelas previstas no artigo 43 do CP para crimes, porque essa modalidade de pena somente pode ser aceita como constitucional enquanto revestida da natureza substitutiva. No momento em que o legislador a aplica como pena primária, isolada ou alternativamente, perde esse caráter e ingressa no submundo da inconstitucionalidade por traduzir trabalho forçado.


Sobram, pois, as sanções contidas nos incisos I e III, as quais não encontram nenhuma guarida no rol do indigitado artigo 43 do Código Penal, não se podendo reputá-las sequer como penas.

Esboroa-se, conseguintemente, a espinha dorsal do argumento agitado pelo Ministro Sepúlveda Pertence para sustentar o caráter criminal da posse de drogas para uso próprio e suplantar a dificuldade derivada do conteúdo normativo, a qual, devo reiterar, há militar tout court em favor do agente para afastar o aspecto criminal da conduta.

Em meu sentir afigura-se assaz forçada a conclusão do Min. Sepúlveda Pertence de que uma das conseqüências de se considerar não criminosa a conduta descrita no art. 28 seria a de ter de se admitir como não infracional a conduta consistente em um menor cultivar drogas para consumo próprio. Na verdade tal ilação extravasa os limites das premissas legais. A lei não elenca no rol plurinuclear da figura do artigo 28 a conduta consubstanciada no verbo “cultivar”, a qual pertence ao artigo 33, n. II, da nLT. Destarte, o sujeito que cultivar no quintal de casa plantas alucinógenas ou das quais se extraem substâncias entorpecentes, ainda que exclusivamente para uso próprio, incide no tipo legal do artigo 33, n. II, da nLT. Em sendo ele menor, estará incurso em ato infracional, no termos que prevê a Lei 8.069/1990. O Ministro foi infeliz no exemplo, incidindo na falácia do salto indutivo, verdadeiro non sequitur para ajustar o fundamento à conclusão desejada, de modo a forçá-la sem deixar que defluisse naturalmente das premissas postuladas na lei, o que é no mínimo inaceitável segundo o compromisso de honestidade intelectual e racional que deve permear a aplicação da lei.

É verdade que o critério estabelecido pela LICP, que é lei ordinária, pode ser alterado. Mas, força convir, por se tratar de lei geral, a lei que define o que seja crime, aplica-se à generalidade das leis que estabelecem os mais diversos tipos penais em específico, e sua modificação deve ser feita de modo expresso, sob pena de não produzir nenhum efeito dada a regra do parágrafo 2º do artigo 2º da LICC.

Nesse diapasão, a Parte Especial do Código Penal, e mesmo sua Parte Geral, que não contém a definição genérica de crime, devem ser interpretados tendo em mira sua integração com a LICP. Na Parte Geral do CP não há uma só disposição legal definidora do que seja crime. Se houvesse, derrogado estaria o artigo 1º da LICP. Não havendo, permanece em vigor a definição de crime estatuída nesta última.

O preceito constitucional insculpido no inciso XXXIX do artigo 5º, da Carta da República harmoniza-se perfeitamente com o sistema infraconstitucional adotado. O que se passa é que a definição de crime ali prevista ocorre em dois momentos normativos: o primeiro sucede quando o artigo 1º da LICP define o que seja crime e contravenção penal; o segundo, ocorre sempre que a lei descreve um tipo penal específico, tornando criminosa determinada(s) conduta(s) pela aplicação de uma das penas previstas no artigo 1º da LICP. Este segundo momento, também imprescindível sob os auspícios da Constituição Federal, implica que a conduta deve ser descrita pormenorizadamente, e à sua prática, seguindo a técnica adotada pelo sistema jurídico brasileiro, cominada uma das penas privativas de liberdade mencionadas no artigo 1º da LICP.


Se a pena cominada em abstrato não estiver conforme uma daquelas previstas no artigo 1º da LICP, a conduta será ilícita, mas de crime não se cogitará, a despeito do que possa ter o legislador pretendido ou até da localização topológica sob a qual se tenha inserido a descrição legal. A razão é simples: esta é a lógica do sistema, que não se pode admitir seja rompida, corrompida ou desvirtuada sob nenhum pretexto, muito menos para corrigir eventual equívoco do legislador.

Ademais, em matéria de Direito Penal a dúvida há de resolver-se em favor do sujeito, evitando ou até mesmo abolindo a interpretação de que tenha praticado um crime. Nesse sentido, o Ministro Sepúlveda Pertence admite, expressamente, a celeuma que a nova lei vem causando e isso, por si só, já é suficiente para se aplicar o favor rei, privilegiando a interpretação mais benéfica aos que, de outro modo, figurariam como réus em processo penal, pois é patente a dúvida a respeito da classificação das condutas descritas no artigo 28 da nLT.

Numa palavra, não atendido o requisito legal da pena cominada em abstrato sob uma das modalidades estabelecidas pela lei geral (LICP), resulta que a infração não pode ser considerada crime.

Também não vinga o argumento do eminente Ministro segundo o qual tal interpretação seria perplexa, eis que partiria do excepcional desapreço do legislador com o rigor técnico relativo ao processo normativo e à nomogênese.

Força convir não se cuidar de presumir a exceção, porquanto é manifesta a multiplicidade de equívocos que se verificam em os mais diversos níveis do corpo normativo pátrio, decorrentes da incúria da falta de conhecimento do legislador relativamente ao rigor técnico que deveria observar. Não é por outra razão que no Brasil o cipoal de normas jurídicas ultrapassa a casa de 1.000.000 (um milhão), sendo literalmente impossível para qualquer ser humano, por mais capaz que seja, conhecer todos os preceitos que o vinculam e conformam sua conduta, inclusive aos magistrados, incumbidos em aplicar as normas constantes desse emaranhado preceptivo. Entre nós, a qualificação técnica do legislador fala por si, de modo que aquilo que o insigne Ministro chama de excepcional, na verdade nada tem de exceção à regra, antes constitui vezo recorrente.

O Ministro alude a outros elementos de perplexidade e cita, como que para exemplificar, a reincidência.

Data vênia também aí equivocado afigura-se o argumento agitado. A uma, pela importância da matéria deveria expor todos os elementos capazes de sustentar como criminosas as condutas previstas no artigo 28 da nLT. A duas, a reincidência não constitui elemento definicional de infração criminal nem contravencional penal; não entra nas definições de crime e contravenção estatuídas no artigo 1º da LICP. Pretender radicar nela a caracterização de uma conduta como criminosa constitui aberração inominável, em que se força um conceito emprestando os efeitos que defluem de um instituto de aplicação acessória. Vale dizer, define-se o principal a partir do acessório, o que constitui um absurdo, para dizer o mínimo. A três, a reincidência não é um instituto exclusivo do Direito Penal. Está presente, por exemplo, no caso da falência e da recuperação judicial, tanto que aquele que tiver falido ou aproveitado da recuperação judicial nos últimos cinco anos não terá direito ao benefício desta se reincidir na falha. A reincidência constitui uma circunstância jurígena, mas não é característico exclusivo de condutas criminosas. Produz efeitos relativos que se cingem à dosimetria da pena, isto é, à quantidade da pena privativa de liberdade ou de multa a ser aplicada. Só isso, mais nada. Restabelecida a primariedade, desaparece a reincidência como circunstância negativa. Em seu lugar entra a condenação anterior como maus antecedentes. Mas nada disso diz com a definição de crime. Portanto, o recurso à reincidência como “indício” ou “pista” de que as condutas descritas no artigo 28 da nLT são criminosas carece de apoio. Neste passo, mais uma vez, impende invocar o primado do favor rei atrás aludido, pois não se pode admitir qualificar uma conduta como crime porque a norma jurídica que a descreve traz indícios de que deva ser assim. Ou é, ou não é. Todo crime deve definir-se explicitamente, sem margem para dúvidas. Em as havendo, impõe-se o primado da interpretação mais favorável, o qual remete para considerar tal conduta como atípica, ou seja, não criminosa.


Outro argumento que não pode prosperar é que a nLT prevê, no artigo 48, parágrafo 1º, a aplicação da Lei 9.099/1995 – LJE para a apuração da conduta e aplicação das medidas previstas no artigo 28 da nLT. A norma tipificadora de crime possui natureza substantiva, inadmissível que se defina um crime a partir de lei adjetiva ou de procedimentos. Por outro lado, não fora o parágrafo 1º do artigo 48 da nLT, haveria um hiato no sistema processual, pois não se saberia como proceder judicialmente para aplicar as medidas previstas no artigo 28.

Isso não implica classificar a posse para uso próprio de drogas como crime de menor potencial ofensivo. Aliás, ofensividade mínima, inferior até mesmo às contravenções penais. Por que, então, chamar tal conduta de criminosa, se o próprio legislador, num juízo prévio de gradação da ofensividade, a situa abaixo das contravenções penais?

O que pretendeu o legislador com a aplicação da LJE nas hipóteses do artigo 28 foi tão somente cometer uma forma procedimental para a apuração dos fatos e aplicação das medidas previstas nesse dispositivo da nLT. Causaria perplexidade, isto sim, admitir classificar-se uma conduta como crime menos por subsumir-se no critério legal substantivo, expressamente definido, do que por sujeitar-se a um procedimento judicial emprestado de outras infrações só porque estas se caracterizam como de natureza criminal. O caráter infracional do artigo 28 é incontestável. Discute-se sobre sua natureza, se criminosa ou outra. Nada impede, ainda que despido da índole criminosa, seja apurada a conduta por aplicação do rito previsto na LJE. Isso não a torna delitiva, apesar de seu caráter ilícito. Se o legislador, amanhã, atribuir o caráter de ilicitude a uma conduta administrativa qualquer, sem no entanto criminalizá-la, poderá, outrossim, determinar que tal infração administrativa seja apurada e processada na forma da LJE. Não há nenhum problema nisso, e não será tal estatuição que terá o condão de torná-la criminosa, alterando a natureza que emana da classificação jurídica da infração segundo os critérios de enquadramento existentes no ordenamento jurídico em vigor.

Por todo o exposto, s.m.j., persevero no meu entendimento de que o STF equivocou-se na sua decisão ao considerar criminosas as condutas previstas no artigo 28 da nLT. Ademais, aditando manifestação minha alhures, consoante os fundamentos retrodelineados, no meu sentir a pena estatuída no inc. II do artigo 28 da nLT é manifestamente inconstitucional por configurar a imposição de trabalho forçado, já que não possui caráter substitutivo, retirando do sujeito passivo qualquer possibilidade de escolha entre uma pena principal e a substitutiva de prestação de serviços à comunidade, figurando esta como pena principal e primária, inda que alternativa (alternatividade e substitutividade não se confundem), o que a coloca, como dito atrás, no submundo da inconstitucionalidade dos trabalhos forçados.

Autores

  • Brave

    é advogado, diretor do Departamento de Prerrogativas da Federação das Associações dos Advogados do Estado de São Paulo (Fadesp) e mestre em Direito pela USP.

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