Justiça platônica

O juiz não pode exercer sua função tomado por ira

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18 de fevereiro de 2007, 23h00

Antes de apresentarmos a Justiça na cidade platônica, é necessário dizermos que os Diálogos Platônicos são divididos em três fases — Jovens, Médios e os da Maturidade. Tais diálogos demonstram uma transição evolutiva no pensamento de Platão. Em sua obra A Republica, da fase dos diálogos médios, o pensador apresenta a Justiça ideal na cidade.

Nos Diálogos Jovens, como em Protágoras, Platão1 apresenta as quatro virtudes cardinais: temperança, coragem, sabedoria e justiça, sendo todas inseparáveis, para que o homem seja considerado virtuoso, segundo acredita Sócrates, idéia a que se dá o nome de Teoria da Unidade, em que se entende que as virtudes têm nomes distintos para a mesma coisa, qual seja, a virtude maior.

Já nos Diálogos Médios, Platão não mais se utiliza da Teoria da Unidade das Virtudes, mudando sua postura na obra A República ou Da Justiça. Passa a defender que tais virtudes podem ser encontradas separadamente no individuo, ou seja, alguém pode ser temperante, mas não sábio; ou corajoso e injusto, por exemplo.

Ainda nesta obra, Platão apresenta a Justiça na cidade ideal, que é dividida em três grupos: os produtores, os guardiões e os sábios. Os produtores ligam-se à virtude cardinal conhecida como temperança, os guardiões ligam-se à coragem e os sábios ligam-se à sabedoria. Deste modo, para pensador em comento, os produtores são temperantes, os guardiões são temperantes e corajosos e os governantes são temperantes, corajosos e sábios; o que corrobora o abandono pelo filósofo da Teoria da Unidade das virtudes supracitada.

Podemos nos perguntar: “Então, como a justiça é aplicada na cidade?”. Para Platão, cada indivíduo só poderá exercer uma única ocupação, aquela para a qual se encontre naturalmente habilitado. Sendo assim, a justiça reside em cada individuo cuidar do que lhe diz respeito; devendo zelar por suas atribuições, pois deste modo na cidade residirá a Justiça; algo que deve ser partilhado por todos, vale dizer: produtores, guardiões e sábios devem ser justos.

Se a justiça reina quando cada indivíduo exerce suas respectivas funções, podemos inferir que existe apenas uma classe que aglutina as quatro virtudes cardinais: os filósofos, que são temperantes, corajosos, sábios e justos. O modo pelo qual estes exercerão a justiça será diferente dos demais. O fator diferencial para que os sábios sejam e ajam com Justiça é o conhecimento ou sabedoria, função da alma, que existe fortemente apenas nestes indivíduos2. Sendo assim, o conhecimento trará, racionalmente, o caminho para a Justiça.

Nessa cidade justa, os produtores, os guardiões e os sábios deverão agir conforme seus papéis sociais. Entretanto, caso algum indivíduo queira, por qualquer motivo, exercer função diversa da que lhe compete, haverá então elementos para uma cidade injusta. A título de exemplo, um produtor não deve querer ser um guardião, pois não tem capacidade para o ser, mas caso isso aconteça essa cidade será injusta. Por outro lado, tanto o guardião quanto o sábio têm condições de serem produtores, mas não devem ser, pois se isso acontecer estes não exercerão na plenitude suas capacidades e, conseqüentemente, serão injustos.

Mas o que fará com que os produtores e os guardiões aceitem sua classificação e não queiram ser sábios? A resposta para esse questionamento está na Justiça. Os guardiões e os produtores aceitarão essa divisão social, pois são justos. Além disso, foram educados pelos sábios desde crianças em um sistema dirigido a adequá-los às necessidades dessa cidade justa.

E os juristas: são produtores, guardiões ou filósofos/sábios? Entendemos que os juristas devem possuir não apenas uma, nem duas, mas todas as virtudes cardinais para que possam exercer com plenitude o Direito. Assim como para os filósofos, a sabedoria deve guiar os juristas para que sejam justos com conhecimentos verdadeiros e não opiniões.

O juiz, como julgador, deve ter o conhecimento técnico do Direito (sabedoria); deve ser temperante, sabendo o momento certo para exercer seu labor, não podendo, por exemplo, exercê-lo inebriado ou tomado pela ira. Ademais deve ser corajoso e deixar que a venda da Justiça faça recair sua espada em qualquer pessoa independente de seu histórico, sua posição social ou status econômico.

O membro do Ministério Público, via de regra, carrega na denominação de seu próprio cargo uma das virtudes, Justiça (promotor de Justiça, procurador de Justiça); o que reforça a imprescindibilidade de exercer suas funções também guiado pelo conhecimento verdadeiro para, só assim, ser justo. Podemos citar, por exemplo, uma das cenas mais idealizadas dessa carreira: o tribunal do júri. No Plenário, o promotor deve ser temperante para que possa conquistar os jurados; corajoso, pois fica frente a frente com o réu, e, ainda, sábio, pois deverá apresentar uma tese concatenada e verdadeira a fim de guiar os jurados para que exerçam efetivamente a Justiça.

Não menos importante hierarquicamente, o advogado deve também, não só a exemplo do que prevê a legislação federal brasileira (Código de Ética e Disciplina e Estatuto da OAB), agir à luz das virtudes cardinais já expostas. Deve ser corajoso para patrocinar uma demanda jurídica; temperante para tomar a medida processual correta e, acima de tudo, sábio para que possa operar a legislação a fim de buscar a melhor justiça em favor de seu patrocinado.

Diante o exposto, e guardadas as devidas proporções, observa-se que a Justiça platônica do Século IV a.C. é condição sine qua non para balizar os atos dos juristas no século XXI.

Notas de rodapé

1 – Nessa primeira fase, Platão expõe o pensamento socrático. Somente a partir da segunda fase que surge o pensamento platônico por meio de Sócrates como seu porta voz;

2 – Os demais possuirão opiniões, sendo que se estas opiniões forem guiadas pelos sábios estas serão verdadeiras.

Bibliografia

— PLATÃO, Protágoras. Coleção Diálogos. Trad.: Carlos Alberto Nunes. Pará: UFPA, 2002;

— _________, República. Coleção Diálogos. Trad.: Carlos Alberto Nunes. Pará: UFPA, 2000;

— VLASTOS, G. Platonic Studies. Princenton: Princeton University Press. 1973.

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