Às custas da felicidade

O ser humano continua tão bárbaro como sempre foi

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17 de fevereiro de 2007, 23h01

É de cediça sabença que a riqueza e o progresso não trazem a felicidade. Podem ajudar ou, ao revés, até impedi-la. O progresso, em regra, apenas aumenta o poder dos homens, das nações, das empresas, das famílias e até de tribos. O Kuwait é uma tribo petrofinanciada pela realpolitik britânica e depois americana. “Dividir para reinar” sempre foi o lema da pérfida Albion, em sua fase colonialista.

A acumulação do capital na Europa se fez às custas da América, da Ásia e da África, colonizadas após as descobertas marítimas, o mercantilismo, a revolução industrial e, no plano cultural, o iluminismo liberal. Hoje assistimos ao ímpeto do crescimento asiático e à afirmação islâmica, contra-torpedos à civilização ocidental imperialista, nos marcos da globalização, tão eficiente quanto confusa.

E já começam os filmes subliminares de Hollywood projetando o conflito bélico EUA-China. A natureza humana não muda. Quando soltaram bombas atômicas sobre cidades japonesas habitadas e os japoneses estouraram as barragens do rio Amarelo, matando 20 milhões de chineses, e os alemães trucidaram os judeus e estes trucidam os árabes que, a seu turno, aterrorizam os judeus, americanos e aliados, me acode a idéia de que continuamos tão bárbaros — em nome de valores políticos, econômicos, éticos e religiosos — como sempre fomos, desde os dias primevos do nosso surgimento sobre a face da terra, após milhões de anos de evolução dos primatas.

Certa feita, vi uma manifestação pacifista japonesa onde havia um cartaz: “Bomba atômica, progresso tecnológico, regresso ético”. Eu diria que no mundo há progresso técnico e regresso ético generalizadamente. A desgraça pós-moderna vem de dois pólos contrapostos: da riqueza (poder) e da pobreza (miséria material). Então é preciso extinguir a pobreza e domar a riqueza, porque o “ter” deve subordinar-se ao “ser” e não o contrário, sem esquecer o Aquinata: “É preciso um mínimo de conforto para se praticar a virtude”.

Estou a dizer essas reflexões porque outro dia disseram-me exclusivamente preocupado com o crescimento econômico. Até certo ponto concordo. Quero um Brasil pujante e igual, e podemos sê-lo. Quero um mundo em progresso material também, mormente em prol dos mais pobres na América do Sul, Ásia e África. Quisera que os países ricos fossem menos hipócritas e mais solidários. Vejam as travas inaceitáveis que puseram na rodada de Doha (não permitindo aos países em desenvolvimento acesso a mercados maduros, encharcados de subsídios agrícolas).

Mas me fazem injustiça os que pensam ser estritamente materialistas os meus escritos. Muito ao contrário. O progresso material é o pré-escolar de uma reflexão isenta sobre a condição humana e o papel — tão rápido — de nosso existir na terra. E vez por outra deixo passar idéias humanistas e pingos metafísicos neste curto espaço jornalístico, colimando espicaçar a filosofia dos leitores. Sejamos justos.

Para ultimar, transcrevo as palavras de Lewis Morgan, antropólogo americano: “Desde o advento da civilização, chegou a ser tão grande o aumento da riqueza, assumindo formas tão variadas, de aplicação tão extensa, e tão habilmente administrada no interesse dos seus possuidores, que ela, a riqueza, transformou-se numa força irredutível, oposta ao povo. A inteligência humana vê-se impotente e desnorteada diante de sua própria criação. Contudo, chegará um tempo em que a razão humana será suficientemente forte para dominar a riqueza e fixar as relações do Estado com a propriedade que ele protege e os limites aos direitos dos proprietários”.

Os interesses da sociedade são absolutamente superiores aos interesses individuais, e entre uns e outros deve estabelecer-se uma relação justa e harmônica. A simples caça à riqueza não é finalidade, o destino da humanidade, a menos que o progresso deixe de ser a lei no futuro, como tem sido no passado. O tempo que transcorreu desde o início da civilização não passa de uma fração ínfima da existência passada da humanidade, uma fração ínfima das épocas vindouras. A dissolução da sociedade ergue-se, diante de nós, como uma ameaça; é o fim de um período histórico — cuja única meta tem sido a propriedade da riqueza — porque esse período encerra os elementos de sua própria ruína.

A democracia na administração, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e a instrução geral farão despontar a próxima etapa superior da sociedade, para a qual tendem constantemente a experiência, a ciência e o conhecimento. Será uma revivescência da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas genes, mas sob uma forma superior”. (La Sociedad Primitiva, trad. de Alfredo Palacios, México, Ediciones Pavlov, DF, 1977).

Faço minhas as suas palavras, com o assentimento do Bianor, a lembrar-se de Jesus: “Amai-vos uns aos outros”. Sem dignidade humana, a começar pela material, liberdade, igualdade e justiça são palavras vazias.

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    é advogado tributarista, professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sócio do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados.

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