Lei de Tóxicos

Usuário não comete crime nem contravenção penal

Autor

17 de fevereiro de 2007, 14h37

Conquanto o Supremo Tribunal Federal tenha entendido que a Lei 11.343/2006 não descriminou o uso e porte para uso próprio de substância entorpecente, tese que tem sido perfilhada por muitos, tal entendimento não vinga ao lume de uma interpretação lógico-sistemática do Direito.

A Constituição Federal não define o que seja crime. E força convir, antes de se tipificar os delitos é preciso definir o que pode ser considerado crime.

Essa tarefa ficou a cargo da legislação infraconstitucional. O Decreto-Lei 3.914, de 09/12/1941, Lei de Introdução ao Código Penal, estatui em seu artigo 1º que crime é a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. O mesmo dispositivo define contravenção como a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

Assim, só é crime o ato ilícito cuja conseqüência jurídica consiste na aplicação da pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa.

Se a lei não comina pena de reclusão nem de detenção, ainda que comine a pena de multa, que no caso do artigo 28 da Lei 11.343/2006 (nova Lei de Tóxicos – nLT), só aparece no parágrafo 6º, II, como ultima ratio para o caso da renitência do infrator, certamente não está a tratar de crime, mas sim de pena civil.

E nem se diga que em nosso ordenamento jurídico não existem penas civis. O artigo 940 do Código Civil estabelece genuína pena civil quando preordena o pagamento em dobro ou do equivalente nos casos que descreve. A pena aí possui natureza civil e privada, uma vez que castiga o infrator e aproveita diretamente à vítima.

Outra pena de natureza híbrida é a multa reparatória prevista no artigo 297 do Código de Trânsito Brasileiro, cujo fundamento de sua aplicação é a constatação, na sentença penal, de prejuízos materiais resultantes do delito de trânsito. A hibridez está em que não é suficiente o crime para aplicar-se a penalidade de multa reparatória. Ao revés, o que induz sua aplicação é a verificação de danos materiais cuja causa reside no fato delitivo. Avulta, a multa reparatória não tem por escopo um castigo nem a ressocialização do que delinqüiu, mas reparar um prejuízo material. Sob esse aspecto sua natureza é eminentemente civil. Em abono dessa exegese vem o parágrafo 3º do mesmo artigo 297, segundo o qual havendo ação ex delicto na esfera cível visando a reparação total dos danos, a multa reparatória será descontada da indenização. Esse o golpe fatal a consolidar a natureza cível predominante na multa reparatória, a despeito de ser cominada como penalidade que deriva indiretamente da prática de crime de trânsito.

Por outro lado, afigura-se equivocado o argumento de que a Lei de Introdução ao Código Penal fora revogada ou não fora recepcionada pelo novo regime do estatuto repressor depois da reforma promovida em sua parte geral pela Lei 7.209/1984 e pela Lei 9.714/1998.

O artigo 32 do Código estabelece os tipos de penas existentes. Todavia, as penas restritivas de direitos e a de multa nunca são cominadas isoladamente em abstrato a qualquer tipo penal. Podem ser aplicadas in concreto isoladamente, como alternativa à pena privativa de liberdade, ou cumuladas com esta, mas não há referência de sua cominação em abstrato per se. Isso significa que a caracterização de uma conduta como crime está subordinada à definição de crime estatuída pela LICP, a qual exige a cominação em abstrato da pena de reclusão ou detenção, podendo ser essa pena cumulada com multa ou substituída por esta ou pena restritiva de direitos. O que não pode faltar na caracterização de uma conduta como crime é a cominação em abstrato de pena privativa de liberdade consistente na reclusão ou detenção.

Dessume-se que o que caracteriza um ato como criminoso não é o fato de vir topologicamente classificado sob a rubrica “Dos Crimes e das penas”, mas sim a cominação em abstrato de pena de reclusão ou detenção. O sistema adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro não estabelece a conduta criminosa a partir do modal da proibição direta. Antes, utiliza a técnica da definição do que são crime e contravenção penal em sentido geral, tais como preceituados no artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal: crime é a conduta apenada em abstrato com reclusão ou detenção, isolada, alternativa ou cumulativamente com multa; contravenção, aquela cuja pena cominada em abstrato é a prisão simples ou multa, alternativa ou cumulativamente.

É o artigo 1º da LICP que possibilita a utilização da técnica legislativa do Código Penal que descreve o tipo penal sem modalizá-lo. A proibição decorre por ilação do segundo termo da norma penal que descreve e impõe a aplicação da sanção penal. A pena cominada em abstrato deve estar conforme o disposto no artigo 1º da LICP para discernir-se sobre a qualificação da conduta, se crime ou contravenção penal.

À guisa de exemplo, o Código Penal não contém um comando modalizado pela proibição de matar. Não diz que matar é proibido. O enunciado do artigo 121 do CP dita: matar alguém: pena de reclusão de 6 a 20 anos. O homicídio é crime porque o artigo 121 do CP exprime uma conduta que, praticada, sujeita o agente à sanção de reclusão e isso é suficiente para qualificá-la como crime porque está conforme o artigo 1º da LICP.

Por outro falar, o que permite identificar a conduta “matar alguém” como criminosa é exatamente a pena de reclusão cominada em abstrato à prática positiva da ação descrita no primeiro membro da norma jurídica em apreço, à medida que a enquadra na definição de crime estabelecida no artigo 1º da LICP. Não fora assim, não seria crime.

Todos os tipos penais seguem o mesmo padrão, e é exatamente a pena cominada em abstrato que permite classificar a conduta como criminosa ou não no cotejo do enunciado no artigo 1º da LICP.

As penas restritivas de direito não são abstratamente cominadas em nenhum tipo penal. Ao contrário, só se utilizam como substituição das privativas de liberdade, desde que atendidos determinados requisitos. Donde se conclui que a cominação em abstrato das penas privativas de liberdade constitui pressuposto das penas restritivas de direito. A conduta típica caracteriza-se a partir da cominação de pena privativa de liberdade e não da possibilidade de ser substituída por restritiva de direitos. Quando a lei diz que a pena restritiva de direito é autônoma, isso significa que sua aplicação não se cumula com a privativa de liberdade. Não poderia mesmo ser assim, porquanto a pena restritiva de direitos só existe para ser aplicada em substituição da privativa de liberdade sob certas circunstâncias.

Não há nenhuma incompatibilidade entre a Lei de Introdução ao CP e este depois da alteração da parte geral. Ambos os diplomas se harmonizam perfeitamente.

Força reconhecer o artigo 28 da nLT não se apresenta com os característicos preestabelecidos no artigo 1º da LICP, e por essa razão a conduta nele (= art. 28 da nLT) descrita não pode ser reputada criminosa. Não há cominação em abstrato de pena privativa de liberdade. Tampouco há cominação de pena de multa pela prática do delito. A multa cominada no parágrafo 6º tem como causa a resistência do agente em cumprir as penalidades que lhe sejam aplicadas e que vão estatuídas no caput do mesmo artigo, o que significa não ter por escopo a conduta descrita no artigo 28, mas a garantia do cumprimento das sanções previstas, o que é coisa muito diferente.

A causa da multa assenta menos na prática do uso e do porte para uso próprio de drogas não autorizadas do que na desobediência do sujeito em acatar as sanções que lhe sejam aplicadas conforme os ns. I usque III do caput do artigo 28. Em outras palavras, a multa prevista no parágrafo 6º do artigo 28 da nLT não constitui sanção direta pela prática da conduta descrita no indigitado dispositivo legal, mas à conduta de recusa do agente em acatar a reprimenda aplicada consoante o caput. A multa aí constitui uma sanção indireta, o que também discrepa do artigo 1º da LICP para que se pudesse nela fundar a qualificação delitiva que alguns pretendem cometer ao artigo 28 da nLT.

Ademais, o artigo 1º da LICP admite a pena de multa tanto para crimes quanto para contravenções penais. Isso somente é possível se a pena de multa vier cominada como pena alternativa ou cumulada à privativa de liberdade. Do contrário seria impossível saber-se de que modalidade delitiva se trata, se de crime ou contravenção penal, caso fosse a pena de multa a única cominada em abstrato, pois o que distingue uma modalidade da outra é exatamente a pena privativa de liberdade, reclusão ou detenção num caso, prisão simples no outro, respectivamente.

Quando mais não fora, se se retém que a pena cominada em abstrato, rectius: o rigor da pena cominada em abstrato, traduz a gravidade do delito, o suposto tipo do artigo 28 não se enquadraria sequer como contravenção penal, dado que nestas as penas cominadas são mais severas do que as penalidades estabelecidas no dispositivo sob comento. Constitui um absurdo, para dizer o mínimo, admitir como crime uma conduta cuja sanção legal é menos rigorosa do que aquela cominada para as contravenções penais, as quais tipificam infrações de baixo potencial ofensivo.

Infere-se que o fato descrito no artigo 28 da Lei 11.343/2006 não se plasma na definição nem de crime nem de contravenção penal. Ao revés, situa-se fora desses conceitos. Portanto, de duas uma: ou o legislador criou uma terceira modalidade de infração penal, um tertium genus sem definição prévia, ou o fato descrito no artigo 28 da nova Lei de Tóxicos não constitui infração penal, sendo as penalidades ali cominadas de natureza civil, embora não possuam caráter privado, no sentido de que interessam apenas ao Estado, enquanto ente personificando a sociedade na execução de políticas públicas educativas, não aproveitando a ninguém em particular, mas a todos difusamente.

Nessa vereda, considerar que o legislador tenha criado uma terceira espécie de infração penal sem definição prévia aberra do direito e arrosta a Constituição Federal, ainda que indiretamente, à medida que esta estatui no artigo 5º, inciso XXXIX, não haver crime sem lei anterior que o defina.

Como o sistema adotado pelo ordenamento fixou suas bases na definição genérica do que seja crime, tal como preordenado no artigo 1º da LICP, a qual abre ensejo para a definição específica dos diversos tipos de infração penal ali previstos, quais os crimes e as contravenções penais a partir da descrição de uma conduta típica cuja proibição não vai modalizada, mas deflui da sanção aplicada que a subsume na qualificação definida no artigo 1º da LICP, se a pena aplicada não entra na definição nem de crime nem de contravenção penal, força convir não se tratar de infração penal, pois falta-lhe a descrição e enquadramento legal prévio, imperando o primado constitucional da cerrada legalidade.

Deflui destas razões, como única conclusão a que se pode chegar, salvo melhor juízo, que não se trata de crime ou outra infração penal qualquer a conduta prevista no artigo 28 da nova Lei de Tóxicos.

Autores

  • Brave

    é advogado, diretor do Departamento de Prerrogativas da Federação das Associações dos Advogados do Estado de São Paulo (Fadesp) e mestre em Direito pela USP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!