Direito do réu

Leia o voto que garantiu a Beira-Mar o direito de ir a audiência

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16 de fevereiro de 2007, 9h50

É dever do Estado assegurar ao réu preso o direito de comparecer a audiência de inquirição de testemunhas, ainda mais quando arroladas pelo Ministério Público. O entendimento é do ministro Celso de Mello, no Habeas Corpus que garantiu para Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, o direito de estar presente em todos os atos processuais e exercer seu direito de defesa.

No dia 5 de março Beira-Mar já tem uma audiência marcada. Ele vai até o Rio de Janeiro para participar de audiência das testemunhas de acusação no processo que responde por lavagem de dinheiro e tráfico de drogas. O réu está preso na penitenciária de segurança máxima de Catanduvas, no Paraná. Beira-Mar comparece sem advogado.

A decisão foi tomada pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal em dezembro de 2006. A ida de Fernandinho Beira-Mar era impedida pela Justiça, por razões de segurança pública. Celso de Mello esclareceu que “razões de conveniência administrativa ou governamental não podem legitimar o desrespeito nem comprometer a eficácia e a observância da franquia constitucional”.

O ministro disse que seu entendimento está “fundado na natureza dialógica do processo penal acusatório, impregnado de caráter essencialmente democrático, de que o direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, traduzem prerrogativas jurídicas que derivam da garantia constitucional do due process of law [devido processo legal]”.

O ministro defendeu ainda a possibilidade de o próprio acusado intervir direta e pessoalmente na realização dos atos processuais, que constitui a autodefesa que se desdobra em direito de audiência e direito de presença. Para ele, “tem o acusado direito de ser ouvido e de falar durante os atos processuais, bem como o direito de assistir à realização desses atos, sendo dever do Estado facilitar seu exercício”.

O direito de presença do réu na audiência de instrução penal, especialmente quando preso, também encontra sua legitimidade em convenções internacionais, “que proclamam a essencialidade dessa franquia processual que compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, que ampara qualquer acusado na persecução penal”, afirmou o relator.

Leia o voto:

18/12/006

SEGUNDA TURMA

HABEAS CORPUS 86.634-4 RIO DE JANEIRO

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): LUIZ FERNANDO DA COSTA

IMPETRANTE(S): MARCO AURÉLIO TORRES SANTOS

COATOR(A/S)(ES): RELATOR DO HABEAS CORPUS Nº 46.974 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

E M E N T A: “HABEAS CORPUS” – INSTRUÇÃO PROCESSUALRÉU PRESOPRETENDIDO COMPARECIMENTO À AUDIÊNCIA PENAL – PLEITO RECUSADOREQUISIÇÃO JUDICIAL NEGADA SOB FUNDAMENTO DA PERICULOSIDADE DO ACUSADO – INADMISSIBILIDADEA GARANTIA CONSTITUCIONAL DA PLENITUDE DE DEFESA: UMA DAS PROJEÇÕES CONCRETIZADORAS DA CLÁUSULA DO “DUE PROCESS OF LAW” – CARÁTER GLOBAL E ABRANGENTE DA FUNÇÃO DEFENSIVA: DEFESA TÉCNICA E AUTODEFESA (DIREITO DE AUDIÊNCIA E DIREITO DE PRESENÇA) – PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS/ONU (ARTIGO 14, N. 3, “D”) E CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS/OEA (ARTIGO 8º, § 2º, “D” E “F”) – DEVER DO ESTADO DE ASSEGURAR, AO RÉU PRESO, O EXERCÍCIO DESSA PRERROGATIVA ESSENCIAL, ESPECIALMENTE A DE COMPARECER À AUDIÊNCIA DE INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS, AINDA MAIS QUANDO ARROLADAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO – RAZÕES DE CONVENIÊNCIA ADMINISTRATIVA OU GOVERNAMENTAL NÃO PODEM LEGITIMAR O DESRESPEITO NEM COMPROMETER A EFICÁCIA E A OBSERVÂNCIA DESSA FRANQUIA CONSTITUCIONALNULIDADE PROCESSUAL ABSOLUTAAFASTAMENTO, EM CARÁTER EXCEPCIONAL, NO CASO CONCRETO, DA INCIDÊNCIA DA SÚMULA 691/STF – “HABEAS CORPUSCONCEDIDO DE OFÍCIO.


O acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do contraditório. São irrelevantes, para esse efeito, as alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou inconveniência de proceder à remoção de acusados presos a outros pontos do Estado ou do País, eis que razões de mera conveniência administrativa não têm – nem podem ter – precedência sobre as inafastáveis exigências de cumprimento e respeito ao que determina a Constituição. Doutrina. Jurisprudência.

O direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do “due process of lawe que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/ONU (Artigo 14, n. 3, “d”) e Convenção Americana de Direitos Humanos/OEA (Artigo 8º, § 2º, “d” e “f”).

– Essa prerrogativa processual reveste-se de caráter fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados. Precedentes.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, preliminarmente, por votação unânime, em afastar a incidência da Súmula 691 e, também por unanimidade, em deferir, “ex officio”, o pedido de “habeas corpus”, nos termos do voto do Relator.

Brasília, 18 de dezembro de 2006.

CELSO DE MELLO – PRESIDENTE E RELATOR

HABEAS CORPUS 86.634-4 RIO DE JANEIRO

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): LUIZ FERNANDO DA COSTA

IMPETRANTE(S): MARCO AURÉLIO TORRES SANTOS

COATOR(A/S)(ES): RELATOR DO HABEAS CORPUS Nº 46.974 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Trata-se de “habeas corpuscontra decisão emanada do eminente Min. FELIX FISCHER, Relator do HC 46.974/RJ, na qual esse ilustre Magistrado denegou pedido de medida liminar, fazendo-o com apoio nos seguintes fundamentos (fls. 133):


Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado em favor de LUIZ FERNANDO DA COSTA, apontando como autoridade coatora o Juiz Federal convocado em substituição à Desembargadora Relatora do habeas corpus nº 2002.02.01.007978-0, da Primeira Turma Especializada do e. Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que indeferiu liminar pleiteada em favor da ora paciente.

Consta dos autos que o paciente foi denunciado pela suposta prática dos crimes previstos nos arts. 18, I, da Lei 6.368/76; 1º, I, § 1º, II, da Lei 9.613/98 e 22, parágrafo único, da Lei 7.492/86. Alega o impetrante que a audiência de instrução foi realizada sem a presença do réu, que se encontrava preso, o que configuraria cerceamento de defesa. Impetrado habeas corpus com pedido de liminar perante o e. Tribunal a quo, no qual o impetrante buscava a suspensão da audiência designada para o dia 18/08/2005, esta restou indeferida, consoante se extrai do documento de fl. 19.

Daí o presente mandamus por meio do qual se busca liminarmente, a suspensão da audiência designada para o dia 14/09/2005. No mérito, requer ‘concessão de ordem para sobrestar o andamento do processo até o julgamento final do habeas corpus impetrado no TRF’ (fl. 12).

É o breve relatório.

Esta Corte tem entendido que descabe o instrumento heróico em situação como a presente, sob pena de ensejar supressão de instância. Assim o entendimento do Pretório Excelso: HCPR 80.288/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJU de 02/08/2000; HCQO 76.347/MS, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJU de 08/05/98; STF, HC 79.748/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 23/06/2000.

Ressalte-se, por sinal, que tal orientação veio a ser, inclusive, objeto da Súmula 691/STF, verbis:

‘Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar.’

Da mesma forma, nesta Corte: AGRHC 12.340/RR, 5ª Turma, Rel. Min. Edson Vidigal, DJU de 02/05/2000; HC 8.326/SP, 5ª Turma, DJU de 16/08/99; HC 8.744/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU de 07/06/99.

Feitas essas considerações, denego a liminar.” (grifei)

Ao analisar a pretensão cautelar deduzida na presente sede, deferi o pedido liminar formulado pela parte impetrante, considerada a excepcionalidade de que se reveste o caso ora em exame, (fls. 137/142). Proferi, então, decisão consubstanciada na seguinte ementa (fls. 137):

A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA PLENITUDE DE DEFESA: UMA DAS PROJEÇÕES CONCRETIZADORAS DA CLÁUSULA DO ‘DUE PROCESS OF LAW’. CARÁTER GLOBAL E ABRANGENTE DA FUNÇÃO DEFENSIVA: DEFESA TÉCNICA E AUTODEFESA (DIREITO DE AUDIÊNCIA E DIREITO DE PRESENÇA). PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS/ONU (ART. 14, N. 3, ‘D’) E CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS/OEA (ART. 8º, § 2º, ‘D’ E ‘F’). DEVER DO ESTADO DE ASSEGURAR, AO RÉU PRESO, O EXERCÍCIO DESSA PRERROGATIVA ESSENCIAL, ESPECIALMENTE A DE COMPARECER À AUDIÊNCIA DE INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS, AINDA MAIS QUANDO ARROLADAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. RAZÕES DE CONVENIÊNCIA ADMINISTRATIVA OU GOVERNAMENTAL NÃO PODEM LEGITIMAR O DESRESPEITO NEM COMPROMETER A EFICÁCIA E A OBSERVÂNCIA DESSA FRANQUIA CONSTITUCIONAL. DOUTRINA. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.


A douta Procuradoria-Geral da República, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. CLÁUDIO LEMOS FONTELES, manifestou-se pelo não-conhecimento do presente “writ” constitucional (fls. 197/199).

Cumpre registrar, neste ponto, que o E. Tribunal Regional Federal da 2ª Região, ao apreciar, em caráter definitivo, a ação de “habeas corpusajuizada em favor do ora paciente, denegou a ordem, em julgamento consubstanciado em acórdão assim ementado (fls. 187):

HABEAS CORPUS. ALEGAÇÃO DE NULIDADE ABSOLUTA DOS ATOS PROCESSUAIS, DESDE A COLHEITA DA PROVA ORAL, EM VIRTUDE DA AUSÊNCIA DO PACIENTE NAS AUDIÊNCIAS DO SUMÁRIO DE ACUSAÇÃO. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA.

ISe ao juiz é concedida a prerrogativa de retirar o acusado da audiência de oitiva de testemunhas quando a presença do mesmo comprometer o teor do depoimento (art. 217, do CPP), da mesma maneira pode o juiz, por motivo justo e proporcional, assegurando a presença do advogado do acusado, impedir que o mesmo compareça à audiência.

IIConsiderando a periculosidade do paciente, transferido para fora do Estado por questão de segurança pública, e não demonstrado o prejuízo para a sua defesa, não há se falar em nulidade absoluta dos atos processuais ocorridos até o presente momento.

IIIOrdem que se denega.” (grifei)

O E. Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, ao julgar o pedido de “habeas corpusimpetrado contra a denegação da medida liminar pelo E. TRF/2ª Região, proferiu decisão na qual considerou prejudicado o “writ” constitucional em questão (fls. 200):

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. INSTRUÇÃO PROCESSUAL. OITIVA DE TESTEMUNHAS DA ACUSAÇÃO. WRIT CONTRA LIMINAR. ACÓRDÃO PROLATADO. CONHECIMENTO. JULGAMENTO DA ORDEM PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. PREJUDICADO.

ITratando-se de habeas corpus contra decisão que indeferiu liminar em writ anteriormente impetrado, e evidenciado o julgamento pelo Tribunal a quo, a impetração deve ser conhecida como substitutiva de recurso ordinário.

IICom o julgamento da ordem pelo e. Tribunal a quo, denegando o habeas corpus originário, resta sem objeto o presente mandamus impetrado com o mesmo fim.

Writ prejudicado.

(HC 46.974/RJ, Rel. Min. FELIX FISCHER – grifei)

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Preliminarmente, entendo inaplicável, ao caso ora em exame, a Súmula 691/STF, pois a decisão proferida por eminente Ministro do E. Superior Tribunal de Justiça – que não suspendeu a eficácia de ato decisório emanado do E. Tribunal Regional Federal/2ª Região – importou em frontal desrespeito à garantia constitucional de defesa, que assiste, em nosso sistema de direito positivo, a qualquer pessoa que sofra persecução penal instaurada pelo Estado, notadamente se se tratar, como sucede na espécie, de pessoa presa e posta sob a imediata custódia do Estado.


O indiscutível relevo jurídico do tema suscitado na presente sede – que envolve discussão em torno do direito de presença do réu, especialmente quando preso, na audiência de instrução penal – permite superar, a meu juízo, embora em caráter excepcional, o obstáculo representado pelo enunciado constante da Súmula 691/STF.

Como se sabe, esta Suprema Corte tem excepcionalmente afastado a incidência da referida formulação sumular, sempre que a matéria em exame revelar-se impregnada de alta significação jurídica (como sucede na espécie), ou, então, nos casos em que o ato impugnado caracterizar-se por sua evidente ilegalidade ou abusividade, ou, ainda, quando a decisão questionada em sede de “habeas corpusdivergir, frontalmente, da jurisprudência prevalecente no Supremo Tribunal Federal.

A não-aplicação da Súmula 691/STF tem ocorrido na prática processual desta Corte, como o evidenciam diversas decisões proferidas quer em sede monocrática (HC 90.112-MC/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 89.113-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 87.353-MC/ES, Rel. Min. GILMAR MENDES – HC 88.050-MC/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES – HC 88.569-MC/PE, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 88.129-AgR/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – HC 89.132-MC/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 89.414-MC/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO, HC 86.634-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.) quer em sede colegiada (HC 84.014-AgR/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 85.185/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO):

1. COMPETÊNCIA CRIMINAL. Habeas corpus. Impetração contra decisão de ministro relator do Superior Tribunal de Justiça. Indeferimento de liminar em habeas corpus, sem fundamentação. Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal. Conhecimento admitido no caso, com atenuação do alcance do enunciado da súmula. Precedentes. O enunciado da súmula 691 do Supremo não o impede de, tal seja a hipótese, conhecer de habeas corpus contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido ao Superior Tribunal de Justiça, indefere pedido de liminar.

(HC 87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO)

Cumpre registrar, neste ponto, que a colenda Segunda Turma desta Corte reafirmou esse entendimento e, em conseqüência – considerada a excepcionalidade da questão jurídico-constitucional suscitada no processo de “habeas corpus” -, afastou a incidência da Súmula 691/STF (HC 89.025-AgR/SP, Rel. p/ o acórdão Min. EROS GRAU).

Sendo assim, e por entender que a impetração suscita tema impregnado do mais alto relevo jurídico–constitucional – que envolve discussão em torno do reconhecimento, ou não, do direito de presença do acusado nas audiências de instrução realizadas no processo penal contra ele instaurado -, afasto a incidência, no caso, da Súmula 691/STF.

Cabe assinalar, desde logo, que os fundamentos que dão suporte a esta impetração revestem-se de inquestionável importância jurídica, pois o caso ora em exame põe em evidência controvérsia consistente no reconhecimento de que assiste, ao réu preso, sob pena de nulidade absoluta, o direito de comparecer, mediante requisição do Poder Judiciário, à audiência de instrução processual em que serão inquiridas testemunhas em geral, notadamente aquelas arroladas pelo Ministério Público.


Tenho sustentado, nesta Suprema Corte, com apoio em autorizado magistério doutrinário (FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Processo Penal”, vol. 3/136, 10ª ed., 1987, Saraiva; FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO, “Processo Penal – O Direito de Defesa”, p. 240, 1986, Forense; JAQUES DE CAMARGO PENTEADO, “Acusação, Defesa e Julgamento”, p. 261/262, item n. 17, e p. 276, item n. 18.3, 2001, Millennium; ADA PELLEGRINI GRINOVER, “Novas Tendências do Direito Processual”, p. 10, item n. 7, 1990, Forense Universitária; ANTONIO SCARANCE FERNANDES, “Processo Penal Constitucional”, p. 280/281, item n. 26.10, 3ª ed., 2003, RT; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 189, item n. 7.2, 2ª ed., 2004, RT; ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “Direito à Prova no Processo Penal”, p. 154/155, item n. 9, 1997, RT; VICENTE GRECO FILHO, “Tutela Constitucional das Liberdades”, p. 110, item n. 5, 1989, Saraiva; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Direito Processual Penal”, vol. 1/431-432, item n. 3, 1974, Coimbra Editora, v.g.), que o acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do contraditório, sendo irrelevantes, para esse efeito, “(…) as alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou inconveniência de proceder à remoção de acusados presos a outros pontos do Estado ou do País”, eis que(…) alegações de mera conveniência administrativa não têm – nem podem ter – precedência sobre as inafastáveis exigências de cumprimento e respeito ao que determina a Constituição” (RTJ 142/477-478, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Esse entendimento tem por suporte o reconhecimentofundado na natureza dialógica do processo penal acusatório, impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático (JOSÉ FREDERICO MARQUES, “O Processo Penal na Atualidade”, “in” “Processo Penal e Constituição Federal”, p. 13/20, 1993, APAMAGIS/Ed. Acadêmica) – de que o direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do “due process of lawe que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu.

Vale referir, neste ponto, ante a extrema pertinência de suas observações, o douto magistério de ROGÉRIO SCHIETTI MACHADO CRUZ (“Garantias Processuais nos Recursos Criminais”, p. 132/133, item n. 5.1, 2002, Atlas):

A possibilidade de que o próprio acusado intervenha, direta e pessoalmente, na realização dos atos processuais, constitui, assim, a autodefesa (…).

Saliente-se que a autodefesa não se resume à participação do acusado no interrogatório judicial, mas há de estender-se a todos os atos de que o imputado participe. (…).

Na verdade, desdobra-se a autodefesa em ‘direito de audiência’ e em ‘direito de presença’, é dizer, tem o acusado o direito de ser ouvido e falar durante os atos processuais (…), bem assim o direito de assistir à realização dos atos processuais, sendo dever do Estado facilitar seu exercício, máxime quando o imputado se encontre preso, impossibilitado de livremente deslocar-se ao fórum.” (grifei)


Incensurável, por isso mesmo, sob tal perspectiva, o julgamento desta Suprema Corte, de que foi Relator o eminente Ministro LEITÃO DE ABREU, consubstanciado em acórdão que está assim ementado (RTJ 79/110):

Habeas Corpus. Nulidade processual. O direito de estar presente à instrução criminal, conferido ao réu, assenta na cláusula constitucional que garante ao acusado ampla defesa. A violação desse direito importa nulidade absoluta, e não simplesmente relativa, do processo.

……………………………………………

Nulidade do processo a partir dessa audiência.

Pedido deferido.” (grifei)

Cumpre destacar, nesse mesmo sentido, inúmeras outras decisões emanadas deste Supremo Tribunal Federal que consagraram esse entendimento (RTJ 64/332 – RTJ 66/72 – RTJ 70/69 – RTJ 80/37 – RTJ 80/703), cabendo registrar, por relevante, julgamento em que esta Suprema Corte reconheceu essencial a presença do réu preso na audiência de inquirição de testemunhas arroladas pelo órgão da acusação estatal, sob pena de ofensa à garantia constitucional da plenitude de defesa:

Habeas corpus’. Nulidade processual. O direito de estar presente à instrução criminal, conferido ao réu e seu defensor, assenta no princípio do contraditório. Ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, através da presença do acusado aos atos processuais. (…).

(RTJ 46/653, Rel. Min. DJACI FALCÃO – grifei)

Essa percepção do tema em exame – que reconhece a ocorrência de nulidade absoluta na preterição de formalidade tão essencial ao exercício do direito de defesa – reflete-se no magistério jurisprudencial de outros Tribunais (RT 522/369 – RT 537/337 – RT 562/346 – RT 568/287 – RT 569/309 – RT 718/415):

O direito conferido ao réu de estar presente à instrução criminal assenta-se na cláusula constitucional que garante ao acusado ampla defesa. A violação desse direito importa nulidade absoluta, e não apenas relativa, do processo.

(RT 607/306, Rel. Des. BAPTISTA GARCIA – grifei)

Não constitui demasia assinalar, neste ponto, analisada a função defensiva sob uma perspectiva global, que o direito de presença do réu na audiência de instrução penal, especialmente quando preso, além de traduzir expressão concreta do direito de defesa (mais especificamente da prerrogativa de autodefesa), também encontra suporte legitimador em convenções internacionais que proclamam a essencialidade dessa franquia processual, que compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados.


A justa preocupação da comunidade internacional com a preservação da integridade das garantias processuais básicas reconhecidas às pessoas meramente acusadas de práticas delituosas tem representado, em tema de proteção aos direitos humanos, um dos tópicos mais sensíveis e delicados da agenda dos organismos internacionais, seja em âmbito regional, como o Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 8º, § 2º, “def”), aplicável ao sistema interamericano, seja em âmbito universal, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 14, n. 3, “d”), celebrado sob a égide da Organização das Nações Unidas, e que representam instrumentos que reconhecem, a qualquer réu, dentre outras prerrogativas eminentes, o direito de comparecer e de estar presente à instrução processual, independentemente de achar-se sujeito, ou não, à custódia do Estado.

Devo reconhecer, lealmente, no entanto, que esse entendimento já não tem mais prevalecido na jurisprudência desta Corte (RTJ 137/720 – RTJ 139/161 – RTJ 139/519 – RTJ 152/533 – RTJ 175/1065, v.g.), consoante evidencia recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na qual – fiel à minha pessoal convicção – restei vencido como Relator originário da causa, pois entendia revelar-se essencial e imprescindível, tratando-se de réu preso, a sua requisição para comparecer e assistir à instrução processual, sob pena de nulidade absoluta:

Recurso ordinário em habeas corpus. 2. Oitiva de testemunhas por precatória. 3. Prescindibilidade da requisição do réu preso, sendo bastante a intimação do defensor da expedição da carta precatória. 4. Desnecessidade de intimação do advogado da data da inquirição da testemunha. 5. Precedentes. 6. Recurso desprovido.” (RHC 81.322/SP, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES – grifei)

A despeito dessa diretriz consagrada pela jurisprudência desta Suprema Corte, em relação à qual guardo respeitosa divergência, tenho para mim que a magnitude do tema constitucional versado na presente impetração impõe que se conceda a presente ordem de “habeas corpus”, seja para impedir que se desrespeite uma garantia instituída pela Constituição da República em favor de qualquer réu, seja para evitar eventual declaração de nulidade do processo penal instaurado contra o ora paciente e em curso perante a Justiça Federal da Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro.

Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, concedo, excepcionalmente, “ex officio”, a presente ordem de “habeas corpus”, para assegurar, ao ora paciente, o direito de presença em todos os atos de instrução a serem realizados no âmbito do Processo- -crime nº 2004.5101508953-0, ora em tramitação perante a 5ª Vara Federal Criminal da cidade do Rio de Janeiro, Seção Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, sob pena de nulidade absoluta daqueles aos quais se negar o comparecimento pessoal do paciente em questão, restando invalidada, ainda, por ser absolutamente nula, qualquer audiência de instrução que já tenha sido realizada sem a presença pessoal do ora paciente.

É o meu voto.

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