Mundo sem pudor

Entrevista: Francisco Rezek, ex-ministro do STF

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10 de fevereiro de 2007, 23h00

Francisco Rezek - por SpaccaSpacca" data-GUID="francisco_rezek.jpeg">Durante seus 63 anos de vida, o mineiro Francisco Rezek passou pelas três principais carreiras do Direito: é advogado e foi promotor e juiz, dentro e fora do Brasil. Hoje, ele tem experiência suficiente para diagnosticar: o Direito está em crise no mundo. A prova mais cabal disso é a existência da prisão de Guantánamo, em Cuba.

Para Rezek, Guantánamo nunca será esquecida porque representa um marco da falta de pudor em cometer arbitrariedades e barbáries. Denúncias de torturas, prisões arbitrárias, tudo isso, hoje, é exposto à luz do dia. “No passado, todas essas torturas aconteciam nos porões das ditaduras. O Estado tinha consciência da violência e a escondia.” Hoje, não.

Francisco Rezek considera a situação do Direito Internacional alarmante. “Ele existe, é velho na sua concepção, é extremamente importante, mas entrou em colapso na virada do século.” Esse colapso, acredita Rezek, é o efeito colateral do encontro tardio de muitas nações com a democracia.

O ministro aposentado traz na bagagem um currículo recheado. Passou pelo Supremo Tribunal Federal duas vezes. Foi nomeado ministro em março de 1983, passou pelo Tribunal Superior Eleitoral e deixou o STF em março de 1990 para assumir o Ministério das Relações Exteriores. Voltou ao Supremo em maio de 1992, onde ficou até fevereiro de 1997. Da corte suprema brasileira foi para a Corte Internacional de Haia, tribunal máximo da Organização das Nações Unidas.

Foi escolhido para cumprir mandato de nove anos na Corte de Haia. Como juiz do Tribunal Internacional, comemora os conflitos que a corte consegue resolver sem a necessidade de uma guerra. Mas, por outro lado, lamenta que os casos mais escabrosos ainda sejam resolvidos à bala, e não em Haia.

Francisco Rezek deixou o Tribunal Internacional em abril de 2006 e, de volta ao Brasil, foi trabalhar como advogado junto com Ives Gandra Martins Filho, outro grande nome do Direito. Juntos, os dois formam uma das bancas de advocacia mais admiradas do país. E foi de lá, como advogado, que Rezek assistiu ao julgamento do ex-ditador iraquiano Saddam Hussein. “Foi a pantomima mais vergonhosa deste começo de século.”

Nesse cenário de horrores, a participação do Brasil tem sido boa, avalia Rezek. Para ele, o país se posicionou corretamente sempre que houve guerras. Em situações como a da Bolívia, que se apropriou do patrimônio da Petrobras em território boliviano, Rezek entende que não houve erros, mas gafes. “Enquanto o presidente da República dizia tolices, o presidente da Petrobras agiu como deveria. Portanto, não houve erros, apenas gafes monumentais, mas que foram neutralizadas pelas posturas corretas do setor técnico.”

Em entrevista à Consultor Jurídico, Francisco Rezek também avaliou a situação do Direito no Brasil. Para ele, não há tantos motivos para pessimismo. “O sistema judiciário brasileiro têm os seus defeitos, mas, de modo geral é o sistema correto de instituição da Justiça.” Mesmo assim, reconhece a avalanche de processos nos tribunais e culpa o Legislativo e a mania do Executivo de legislar por isso.

Leia a entrevista, da qual participaram também os jornalistas Daniel Roncaglia, Gláucia Milício, Lílian Matsuura, Maurício Cardoso e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Para o que serve o Direito Internacional?

Francisco Rezek — Esse é um tema que atormenta os alunos do curso de Direito. Eles vêem o Direito Penal, Civil e até ramos novos, como o Direito do Consumidor e Ecológico, funcionando, bem ou mal, no dia a dia. Perguntam-me, então, qual a eficácia do Direito Internacional já que não dá para dispor no plano internacional de um mecanismo de sanções como aquele que existe no Direito interno. No plano interno, a ordem jurídica é implementada pelo Estado, o responsável por garantir a eficácia dessa ordem. Para isso, ele tem o poder legal de usar inclusive a violência, quando necessário.

ConJur — Ou seja, o Direito Internacional é difícil de ser aplicado por causa da ausência de sanções?

Francisco Rezek — Isso não é verdade. Existem mecanismos de sanção no Direito Internacional, embora eles sejam mais imperfeitos do que nos países com ordem jurídica nacional de qualidade satisfatória. Existem sociedades organizadas sob a forma de Estado, mas de tal maneira reduzidas a uma situação de miserabilidade econômica, social, moral e política, que a ordem jurídica disponível diz muito pouco. Mas, em geral, as políticas nacionais de poder têm muito mais capacidade de impor a sua vontade pela violência do que o sistema centralizado de autoridade das Nações Unidas.

ConJur — O sistema de sanções da ONU não é bom?

Francisco Rezek — Essa virada de século foi dramática. A ONU foi submetida a uma humilhação sem precedentes. Nos últimos episódios de violência contra o Direito Internacional e contra várias nações, o que se viu foi uma sociedade convencida por um discurso absolutamente primário, rudimentar, rupestre, e não aquele inteligente e capaz de seduzir pessoas minimamente sensatas, como antigamente. As razões de esse discurso contemporâneo ter vingado estão vinculadas ao medo. Há uma troca de correspondências entre Albert Einstein e Sigmund Freud, na década de 30, em que eles diziam como as sociedades são sensíveis a um discurso que manipula o medo. É possível, por meio da manipulação do sentimento do medo, criar nas sociedades aquilo que Freud chamou na época de psicose coletiva. O que se observa hoje em determinadas nações que até algum tempo atrás pretendiam ser modelos de democracia é exatamente o fenômeno da psicose coletiva de que falava Freud. Só isso explica determinadas decisões coletivas, como a de reeleger determinadas propostas.


ConJur — Qual é a situação atual do Direito no mundo?

Francisco Rezek — O Direito Internacional chegou, na segunda metade do século XX, a uma fase de relativa notoriedade e prestígio, sobretudo por causa da experiência dolorosa que foram as duas grandes guerras mundiais. Isso fazia crer que, para o final do século XX, viriam dias bem melhores em matéria justamente de primado do Direito. Ou seja, a recomposição do Estado de Direito. No entanto, no momento em que tantas nações ou se reconstruíram ou conquistaram, pela primeira vez, o Estado de Direito, esse Estado, no plano internacional, entrou em parafuso, desceu ladeira abaixo e vive hoje um momento de pressão sem precedentes. Isso porque Estados que ficaram décadas afastadas da democracia ou que nem sequer tinham a experimentado começaram a instalá-la. Talvez essa lua de mel com o desconhecido tenha sido a causa dos erros. Todos sabem a que extremos levou o deslumbramento excessivo de algumas nações ex-socialistas com a proposta ocidental. O que vivemos hoje é o efeito colateral perverso do encontro muito tardio das nações com as liberdades públicas e o princípio democrático. Nisso tudo, me assusta a maneira como o noticiário internacional não se escandaliza com o cenário no mundo. A mídia mostra ao mundo algo escabroso, mas não apresenta como escabroso. Há uma perda da noção exata da fronteira entre o crime e a legalidade no plano internacional. Hoje é difícil distinguir estadistas de gângsteres. Isso é alarmante.

ConJur — A prisão de Guantánamo representa o fim do Estado de Direito no plano internacional?

Francisco Rezek — Guantánamo é um símbolo incomparável da crise do Direito em geral. Apesar de todas as arbitrariedades e violações aos direitos humanos que acontecem, o que há de importante lá e nunca será esquecido é a ausência daquilo que chamamos de formação de culpa. No passado, todas essas torturas aconteciam nos porões das ditaduras, mas o Estado tinha consciência da violência e a escondia. Havia um pudor que fazia com que as agressões mais graves fossem escondidas. Hoje, a Corte Suprema dos Estados Unidos convive com Guantánamo sem dizer nada. Tudo é exposto à luz do dia. É a primeira vez na história da raça humana que a zona do não Direito é assumida por quem se pretende ser um modelo de democracia e dá lições de direitos humanos para outros povos. Esse fato é um colapso do Direito em geral.

ConJur — Como o senhor viu o julgamento do ex-ditador iraquiano Saddam Hussein?

Francisco Rezek — Foi uma farsa. Um país sob ocupação militar estrangeira não tem condições de julgar ninguém. Um governo sob ocupação militar estrangeira não é governo. E é essa a culpa maior da mídia internacional: jogar na tela da televisão ante os olhos dos incautos a idéia fraudulenta de que aquilo é um governo, de que aquele indivíduo que está fantasiado de juiz é um juiz. Isso foi a pantomima mais vergonhosa deste começo de século. Pessoas com uma biografia muito semelhante à de Saddam obtiveram asilo político e terminaram pacificamente as suas vidas. O asilo político de Saddam Hussein nos Estados Unidos da América não teria sido nenhum absurdo. As coisas andaram mal para ele. Foi um ditador sim, mas não encabeça a lista dos ditadores que teriam merecido castigo.

ConJur — O Direito Internacional é mais eficaz na área comercial?

Francisco Rezek — Sim. Essa é a área que sofreu menos, onde as organizações internacionais funcionam melhor. A Organização Mundial do Comércio tem uma estrutura muito bem definida e, principalmente para o Brasil, tem sido muito eficaz. A OMC conseguiu acordos sobre tarifas e comércio que permitem a discussão equilibrada entre economias tão desiguais. Mas também há outras áreas em que organizações internacionais funcionam bem. A Organização Internacional do Trabalho, que é a mais antiga, criada em 1919, funciona exemplarmente como fonte de produção de Direito para se integrar à ordem jurídica dos vários países e regular as relações entre o capital e o trabalho. As organizações relacionadas com a saúde, alimentação, agricultura e aquelas integrativas de regiões também cumprem bem seu papel. A União Européia, por exemplo. Muitos historiadores sustentam que ela foi criada para criar laços entre os países e evitar uma terceira guerra. Reuniu vencedores e vencidos. Se o propósito foi realmente esse, posso dizer que foi e é plenamente cumprido.

ConJur — Os mecanismos do Direito Internacional usados na área comercial não funcionam na política?

Francisco Rezek — A área política é contaminada pela própria estrutura das Nações Unidas. A organização tem, como órgão legislativo, uma assembléia geral e, como órgão executivo, um conselho permanente, com poder de veto. São cinco Estados-membros vitalícios com poder de veto. Quando se sentiu que esse poder de veto podia frustrar tudo que a organização poderia fazer, ela foi deixada de lado. Bastaria um voto para ter vetado a aventura militar no Iraque. Mas, repito, a ONU foi deixada de lado.


ConJur — O Bush seria o Bush sem o 11 de setembro?

Francisco Rezek — O 11 de setembro foi um detonador e não acho despropositado acreditar que pelo menos alguns atores estavam pedindo a Deus que o detonador viesse. Sob a ótica da indústria do petróleo e da indústria da guerra, é impossível acreditar na sinceridade das lágrimas derramadas no dia 11 de setembro. Dá para afirmar que, se não fosse o 11 de setembro, outro detonador seria arranjado para não deixar que determinados planos relacionados perdessem a sua energia. Não creio que tenha sido o carisma do presidente americano, mas sim o 11 de setembro que tornou fácil convencer tantas pessoas de que o caminho era aquele, para que fosse garantido o projeto com as maiores fontes de petróleo do Oriente Médio e para que fosse dada uma satisfação à indústria da guerra.

ConJur — Como é o comportamento do Brasil nesse cenário mundial?

Francisco Rezek — O comportamento do Brasil tem sido irrepreensível, como sempre foi. Até nos momentos em que a nossa política interna era a mais triste, em que a nossa metodologia interna de prática do Estado de Direito estava congelada, o Brasil sempre foi um país cioso da sua independência. É possível que os Estados Unidos tenham contribuído para alterar rumos da política interna brasileira, mas, em nenhum momento da história do Brasil, os Estados Unidos fizeram a cabeça do Itamaraty.

ConJur — Não há erros, então, na política externa brasileira?

Francisco Rezek — Em relação ao seu posicionamento sobre as guerras, não. Os erros têm sido em um plano bem mais estreito. E nem sei se são erros graves ou apenas gafes, coisa em que o atual governo não é econômico. Eu achei uma lástima, por exemplo, quando a Bolívia se apropriou de instalações da Petrobras, ouvir o presidente da República dizer que a Bolívia estava exercendo os seus direitos soberanos e era preciso compreendê-la. Isso não é uma questão de soberania, mas sim de noção dos limites do que é próprio e do que é alheio. Enquanto o presidente da República dizia tolices, o presidente da Petrobras agiu como deveria. Portanto, me pergunto: houve crime de responsabilidade? Acho que não. Houve apenas gafes monumentais, mas que foram neutralizadas pelas posturas corretas do setor técnico.

ConJur — O Mercosul tem futuro?

Francisco Rezek — Tem.

ConJur — A entrada de novos membros não coloca em risco a integração do bloco?

Francisco Rezek — A Bolívia quer entrar no Mercosul de qualquer maneira, mas com algumas características diferentes dos outros parceiros. Isso é possível. A estrutura do Mercosul permite a participação de parceiros em bases não absolutamente igualitárias. Se essas diferenças forem bem balanceadas para não serem desfavoráveis aos membros fundadores, a entrada da Bolívia não vai degenerar todo o bloco. Já a Venezuela não pediu regramento especial. Entrou como membro pleno. Hoje, pode-se dizer que a Venezuela é um fato positivo no Mercosul. Politicamente, a vocação de liderança do coronel Hugo Chávez deve ser um fantasma que perturba o sono do nosso presidente a cada noite. Mas, sinceramente, isso não é um problema para o Brasil, mas sim do presidente Lula.

ConJur — O Mercosul não se enfraquece quando dois países levam seus problemas para a Corte de Haia, como fizeram o Uruguai e a Argentina no caso das papeleiras [a Argentina contesta a construção de uma fábrica de papel em território uruguaio por causa dos danos ambientais ao rio da Prata que divide os dois países]?

Francisco Rezek — Eu estava em exercício na Corte de Haia quando o conflito entre os dois países chegou ao tribunal. Na hora, não quis acreditar. Pensei que devia ter acontecido algum engano e fiquei profundamente desalentado com isso. Mas, depois, desenvolvi outro raciocínio. A Argentina deve ter se convencido de que a linha de argumentação contemporânea que usaria no processo — com base no fator ecológico — contra os interesses legítimos de desenvolvimento do Uruguai seria mais aceita numa instituição como a Corte da Haia do que no bloco regional. Talvez a Argentina tenha pensado que, se o caso fosse submetido à arbitragem no próprio Mercosul, o fator desenvolvimento de um país falaria mais alto do que o fator ecológico. Se eu fosse um governante argentino, teria decidido exatamente como eles decidiram.

ConJur — Como juiz da Corte de Haia, diante do cenário mundial atual, o senhor não tem uma sensação de frustração?

Francisco Rezek — Não. Cumprimos uma tarefa fundamental. Resolvemos uma porção de casos que, no passado, teriam causado guerras. Às vezes, a Corte resolve os conflitos de tal maneira que as duas partes ficam satisfeitas. Mas sabemos também que os casos mais espinhosos não vão para Haia. São resolvidos com bala. Isso sim frustra, sem dúvida.


ConJur — A solução para o sistema judiciário do Brasil é transformar o Supremo Tribunal Federal em corte constitucional?

Francisco Rezek — A competência do Supremo foi tão estreitada que ele já é quase isso. Em pouquíssimas ocasiões em que não têm necessariamente a ver com a Constituição, como pedidos de Habeas Corpus, o STF tem de se manifestar. Eu acho que não dá mais para reduzir a competência do tribunal. Chegou ao ponto ideal. Mesmo assim, o excesso de casos atormentava o Supremo há nove anos, quando eu saí de lá, e hoje atormenta ainda mais.

ConJur — De quem é a culpa?

Francisco Rezek — O que é culpa da própria máquina judiciária é a metodologia, que ainda é muito afeiçoada à palavra. Ainda se fala, se debate e se escreve mais do que seria rigorosamente necessário para liquidar os casos fazendo justiça. Mas a causa principal do congestionamento do Supremo e dos outros tribunais está no legislador.

ConJur — A grande possibilidade de recursos contribui para a lentidão?

Francisco Rezek — No passado, muitos atribuíam o congestionamento do Judiciário à classe dos advogados e à tendência de levar à Justiça aquilo que poderia ser resolvido de outra maneira. É claro que essa classe contribui, como qualquer outra. Mas eu não acho que esteja nos hábitos do advogado brasileiro a responsabilidade pela lentidão da Justiça. Mais uma vez eu digo: a responsabilidade é da legislação. Toda demanda no Judiciário é resultado da interpretação diferente que cada parte dá para a norma jurídica. Se a ordem jurídica fosse mais depurada, compacta, clara e menos profusa, o número de pessoas que lêem a lei, mas interpretam de maneiras diversas, reduziria substancialmente.

ConJur — O mal, então, está no Legislativo?

Francisco Rezek — Não só. O governo brasileiro gosta de legislar. Sempre foi assim. Hoje, é a técnica da Medida Provisória. No passado, existiam outras. Quando o governo legisla, ela suscita um contencioso maior do que o Congresso quando legisla. Lógico que não estou excluindo a responsabilidade maior do Congresso pela fartura incalculável da nossa ordem jurídica. Mas os problemas maiores no contencioso judiciário vêm da legislação produzida no plano governamental. Outra culpa do governo é a imposição aos seus representantes para que insistam nas causas judiciais até o fim, mesmo sabendo que o governo não tem razão. O representante do Estado é preparado ideologicamente para recorrer sempre porque essa atitude, pelo menos, retarda a solução.

ConJur — Ou seja, a mentalidade do advogado da União de que tem de tentar até o fim adiar a perda prejudica a própria Justiça.

Francisco Rezek — É esse o problema e não vejo solução. Seria preciso mudar a concepção que a advocacia pública tem do que é o seu dever. Há muitos anos, discutia-se se os procuradores da República deveriam ser uma carreira única ou se aqueles responsáveis pela defesa da União a qualquer custo deveriam ser separados. Para mim, a defesa da União é, acima de tudo, a defesa da ordem jurídica corretamente interpretada. Não pode haver uma defesa da União se o defensor não sente que está defendendo a ordem jurídica tal qual ela foi concebida pelo constituinte e pelo legislador. Eu era procurador na época, defendi meu ponto de vista e perdi. Daí nasceu a Advocacia-Geral da União, herdeira do Ministério Público que ainda tem muito dele quando os interesses financeiros da União não estão em jogo.

ConJur — O que a AGU tem do MP?

Francisco Rezek — O advogado-geral da União interfere de modo primoroso em processos em que se discute, por exemplo, a constitucionalidade de uma lei estadual. Mas, sempre que há interesses da União em jogo, o dever da casa é defender a União de todas as maneiras possíveis.

ConJur — Como os tribunais agem diante dessa postura da AGU?

Francisco Rezek — Os tribunais conhecem a postura. Hoje, eles sabem que a inspiração neutra a que se acostumaram a receber só vem do Ministério Público. O MP foi a minha primeira casa e eu tenho muito orgulho disso. Foi a única instituição pela qual eu optei, fui lá e bati na porta. Todo o resto foi obra do acaso.

ConJur — Qual contribuição o Judiciário pode dar para que a Justiça seja mais célere?

Francisco Rezek — O Judiciário depende da iniciativa alheia. O juiz não pode proceder como xerife. Tem de guardar. O juiz pode ser rápido naquilo que depende dele, mas não pode impedir as partes de parar para refletir sobre a causa. Além de ser conciso, objetivo e rápido nas suas próprias decisões, o juiz não pode fazer mais nada. Ele não interfere no global desse mecanismo pela histórica falta de poder de iniciativa. O maior exemplo de que o juiz não pode agir de iniciativa própria aconteceu na França, no que ficou conhecido como o maior escândalo judiciário da Europa contemporânea. Um juiz do chamado juizado de instrução francês ouviu queixas de uma suposta rede de pedofilia. Pelo sistema, ele pode fazer todo o processo sozinho. Depois de mais de dois anos de prisão de um grupo de acusados, foi descoberto que não havia nada. Isso nunca teria acontecido em um lugar onde o juiz não é xerife. Não devemos nos aborrecer pelo sistema brasileiro ser como é. Ele tem alguns efeitos colaterais ruins, mas, de modo geral, é o sistema correto de instituição da Justiça.


ConJur — Os críticos da Súmula Vinculante, ferramenta que promete ajudar a reduzir o número de recursos, dizem que ela vai engessar os juízes. O que o senhor pensa disso?

Francisco Rezek — A Súmula Vinculante quer evitar algo ruim, que é a insistência em suscitar decisões rebeldes, que não têm futuro e que produzem no cidadão a ilusão de que ele tem chances que não existem. Aí me surgem com essa: “mas se permitirmos que o juiz dê asas a imaginação criativa e invente, quem sabe pode aparecer uma solução melhor que inspire os tribunais superiores”. Eu não me lembro de nenhum caso. E digo sempre: se alguém tem uma idéia melhor do que aquela que está prevalecendo no Supremo, dê uma entrevista à Consultor Jurídico, leve para a imprensa, publique um livro. Isso é muito mais eficaz para convidar os juízes à reciclagem do que a rebeldia dentro da própria máquina judiciária. A Súmula Vinculante não vai ofuscar as luzes criativas dos juízes. Elas ainda poderão brilhar em meios muito mais eficazes. Não tenho dúvidas. A Súmula Vinculante é uma instituição mais do que saudável.

ConJur — O Judiciário brasileiro interfere no desenvolvimento do país?

Francisco Rezek — Sim. O Brasil é um modelo perfeito daquilo que o Barão de Montesquieu teorizou como tripartição dos poderes e participação da instituição judiciária na correção de rumos e na determinação dos destinos do país. No Brasil, o poder que se deu ao Judiciário é maior que nos Estados Unidos da América. Primeiro pela isenção da instituição judiciária. No Brasil, nós não temos juízes que são eleitos. Não temos juízes que tiveram de sair às ruas pedindo votos.

ConJur — Isso é bom?

Francisco Rezek — É sim. São carreiras determinadas pelo mérito. A competição está mais alta do que nunca. Todos, portanto, entram na magistratura mediante uma brutal demonstração de mérito. Além disso, no Brasil, o Judiciário pode decidir situações abstratas. Não é preciso ter o caso concreto como nos Estados Unidos.

ConJur — Qual é o alcance do poder do Judiciário?

Francisco Rezek — No Brasil, praticamente a única questão que não é resolvida em juízo é a economia interna das casas do Congresso. Se um deputado entrar com pedido de Mandado de Segurança no Supremo para se queixar de que o presidente da casa não lhe dá a palavra quando ele pede, o Supremo dirá que isso não é algo que tenha de ser resolvido pelos juízes. Tirando esses casos, tudo no Brasil é da competência do Judiciário e isso valoriza o Judiciário perante a cidadania. Na maioria dos países, o conflito entre o cidadão e a administração é resolvido pela própria administração.

ConJur — Por que no Brasil é diferente?

Francisco Rezek — O Brasil copiou o modelo americano. Nos Estados Unidos, surgiu a seguinte questão: como alguém pode ser juiz e parte ao mesmo tempo? Nos outros países, as instituições que eles têm devem ser boas para eles, mas não funcionariam no Brasil. Algum brasileiro alguma vez pensou que o processo eleitoral no Brasil pudesse ser administrado por uma repartição do governo? Fale isso a qualquer brasileiro e ele subirá pelas paredes. Isso escandalizaria o brasileiro habituado à nossa instituição da Justiça Eleitoral.

ConJur — Como o senhor avalia a atual composição do Supremo?

Francisco Rezek — Sempre fui um admirador do Supremo e sou um entusiasta do tribunal com a sua composição atual. Considero-a exemplar. Fui professor de Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, que considero o mais cosmopolita dos ministros atuais. Ellen Gracie é minha colega de carreira na Procuradoria da República. Além disso, tem Sepúlveda Pertence, com quem eu aprendi tanto. Celso de Melo e Marco Aurélio, que considero presenças fundamentais no STF. Enfim, todos os ministros, sem exceção, têm um papel fundamental.

ConJur — Que lembrança o senhor tem da passagem no STF?

Francisco Rezek — A lembrança do Supremo é, para mim, um exercício de admiração. É um grande tribunal. Uma casa imaculada, onde se erra de vez em quando, mas eu acredito que o próprio tribunal tem uma grande tendência a corrigir os seus próprios erros alguns anos mais tarde. Eu sempre insisti que o Supremo é um arquipélago, porque cada ministro tem histórias, cultura e educação tão diferentes. Alguns são mais conservadores, outros nem tanto. Alguns escrevem seus votos em 90 páginas, outros se expressam em apenas duas. São ideologias e metodologias diferentes. Mas, quando eu fui para a Corte de Haia, me convenci de que aquilo sim é um arquipélago, e não o Supremo. Na corte brasileira, todos lutam pela mesma causa, embora ela possa ser descrita com palavras diferentes. Em Haia, são 15 pessoas que leram e aprenderam quase tudo, se tratam de uma maneira cordial, mas, como vieram de diferentes partes do mundo, não há a sensação de que todos servem a mesma causa. As visões da história e do futuro e, sobretudo, do direito do futuro e dos interesses sociais são diferentes.

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