Sem retroatividade

Leia voto do ministro Ayres Britto sobre pensão por morte

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9 de fevereiro de 2007, 14h36

Por sete votos a quatro, o Supremo Tribunal Federal concluiu que o benefício de pensão por morte concedido antes de 1995 não pode chegar a 100% do salário benefício do segurado morto. O plenário da corte entendeu, nesta quinta-feira (8/2), que a Lei 9.032 de 1995 não tem efeito retroativo. O julgamento foi suspenso em agosto de 2006, quando o ministro Carlos Ayres Britto pediu vista para avaliar de forma mais profunda a questão.

De acordo com o Ministério da Previdência Social, caso o Supremo tivesse votado a favor dos pensionistas, a estimativa de impacto imediato era de R$ 8 bilhões e de R$ 40 bilhões para pagamentos futuros. A maioria dos ministros seguiu voto do relator Gilmar Mendes.

O ministro Carlos Ayres Britto foi voto vencido no julgamento, acompanhado pelos ministros Eros Grau, Cezar Peluso e Sepúlveda Pertence.

Em seu voto-vista, Britto reconhece que o texto da lei foi falho ao deixar de prever a época exata de sua aplicabilidade. No entanto, o ministro declara que o “silêncio” da lei em relação à data exige uma interpretação que favoreça todos os pensionistas. “Na matéria, a retro-incidência da lei mais favorável nem precisa vir expressa”, conclui.

Britto ressalta ainda que à época em que a Lei 9.032/95 entrou em vigor os servidores federais receberam o direito à paridade dos seus vencimentos com os benefícios da aposentadoria, além da conversão integral do valor da aposentadoria na pensão por morte. Para o ministro, não faz sentido que a mesma lei seja mais benéfica a uma parte dos pensionistas do que para a outra.

Além disso, Britto diz que é necessário que as fontes de financiamento do sistema de seguridade social tenham recursos suficientes “para responder pelo total desembolso de cada qual dos beneficiários e serviços inerentes a tal sistema”. Ele cita duas leis complementares (LC 84/1996 e LC 110/2001), a Medida Provisória 2.158-35/2001 e a Lei 10.684/2003, aprovadas para criar fontes de custeio de seguridade social.

Leia o voto do ministro Carlos Ayres Britto

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 416.827-8 SANTA CATARINA

V O T OV I S T A

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO:

Senhora Presidente, com o propósito de conhecer melhor a matéria discutida no presente recurso extraordinário, pedi vista dos respectivos autos. Vista que me foi concedida na Sessão Plenária do dia 31 de agosto do ano de 2006 e que me possibilitou elaborar o voto que ora submeto ao lúcido pensar dos meus dignos pares, precedido do breve relato que passo a fazer.

2. Cuida-se de recurso extraordinário, interposto com fundamento na alínea “a” do inciso III do art. 102 da Constituição Federal, contra acórdão proferido pela Turma Recursal da Seção Judiciária Federal do Estado de Santa Catarina. Acórdão que reconheceu à parte ora recorrida o direito à majoração do seu benefício de pensão por morte.

3. Para reconhecer tal direito subjetivo, o aresto impugnado fez a Lei Federal nº 9.032/95 (que deu nova redação ao art. 75 da Lei nº 8.213/91) incidir sobre o que se tem chamado de “efeitos pendentes de fatos geradores passados”, de sorte a, instantaneamente, elevar a expressão nominal da pensão sub judice. Logo, trata-se de acórdão que aplicou a benfazeja lei mais nova a uma preexistente relação de trato sucessivo ou prestação continuada, como efetivamente são as relações de pagamento do “benefício” em que a pensão por morte consiste. Seja a pensão deixada por servidor público-estatutário, seja, como no caso, a pensão deixada por segurado da previdência social geral. Sendo imprescindível anotar que essa lei federal mais nova e mais benéfica alterou a base de cálculo (que era o valor da aposentadoria e passou a ser o salário de benefício) e elevou de 80 para 100 o percentual de fixação da “renda mensal inicial (RMI)” da pensão em causa.

4. Pois bem, o Instituto Nacional do Seguro Social tem como ofendidos o inciso XXXVI do art. 5o e o § 5o do art. 195 da Constituição Federal. Ofensas que intenta demonstrar neste sintético arrazoado (fls. 59/61):


“(…)

O principal princípio que rege a aplicação da lei no tempo estabelece que, em regra, a lei possui eficácia imediata, regendo as relações jurídicas a que se referem desde o momento em que recebem execução até àquele em que cessa a sua virtude normativa.

Pautado no brocardo latino tempus regit actum, mencionado princípio estabelece que, em tese, a lei não pode alcançar fatos ocorridos em período anterior ao início de sua vigência, nem aplicada àqueles ocorridos após a sua revogação.

(…)

Tem-se, assim, que, instaurada a relação jurídica, deve a mesma reger-se pela lei à época vigente, segundo o princípio tempus regit actum, sendo inoperante, para esta relação que já se concretizou, todas as alterações legislativas posteriores relacionadas ao cálculo da prestação inicial, sejam elas menos ou mais benéficas para o sujeito ativo, a menos que, evidentemente, a lei posterior contenha previsão de aplicação a situações fáticas pretéritas, circunstância inocorrente na hipótese.

(…)”

5. É como pensa, em grau de reflexão mais abrangente, o ministro Gilmar Mendes (Relator), no que foi seguido pelos ministros Carmem Lúcia e Joaquim Barbosa. Eis o que me parece o mais significativo trecho do voto de Sua Excelência:

“(…)

Tendo em vista que a legislação inovadora nada dispôs sobre a concessão ou não do benefício, não parece haver outra alternativa hermenêutica senão a de que a Lei 9.032/95 há de ser interpretada no sentido de que se lhe confira aplicação imediata, sob pena de violação à regra constitucional constante do art. 195, § 5o, da CF, a qual preconiza que ‘nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.’

(…)

Assim, o acórdão recorrido, ao estender a aplicação dos novos critérios de cálculo a todos os beneficiários sob o regime das leis anteriores, acabou por negligenciar a imposição constitucional de que lei que majora o benefício da ‘pensão por morte’, deve, necessariamente e de modo expresso, indicar a fonte de custeio total.

É dizer, não é possível interpretar essa legislação previdenciária inovadora de modo apartado das condicionantes orçamentárias previstas no § 5o do art. 195, da CF. Logo, a lei previdenciária aplicável ao presente caso concreto é a vigente ao tempo da concessão (princípio tempus regit actum).

(…)

Conclusivamente, não é possível cogitar de violação ao princípio da isonomia por duas razões.

Em primeiro lugar, trata-se de exigência operacional do sistema previdenciário que, dada a realidade atuarial disponível, não pode ser simplesmente ignorada, mesmo quando expressamente determinada pelo legislador ordinário.

Assim, na situação presente, em que a ausência de disposição em sentido contrário é manifesta, não é possível invocar a pretensão de aplicação do novo critério de cálculo do benefício da pensão por morte. Isso ocorre porque as regras constitucionais de estipulação de dotação orçamentária expressa e específica vinculam o legislador ordinário.


(…)

Em segundo lugar, ao estabelecer novos critérios diferenciados para o cálculo dos benefícios concedidos a partir da vigência da Lei nº 9.032/1995, a alternativa hermenêutica que se coloca é a da imposição das leis gerais de regulamentação do setor previdenciário.

(…)

Afinal, diante da expressão literal da Lei nº 9.032/1995 não há como presumir o direito de retroação do índice aos benefícios concedidos anteriormente pela lei antiga (Lei nº 8.213/1991). O benefício concedido em momento pretérito deve ser regulado pela legislação vigente ao momento da concessão.

(…)

Assim, por mais que se invoque a idéia menos precisa e, por isso mesmo, mais abrangente do princípio da segurança jurídica, devo frisar que o ato de concessão da pensão por morte envolve, não somente o reconhecimento da titularidade de um direito, mas também a fixação de um parâmetro específico a partir do qual a correção monetária do benefício deve ocorrer (Lei nº 8.213/1991, arts. 28 e ss).

Ademais (e aqui esse argumento é crucial), os limites do exercício dessa prerrogativa devem estar em conformidade com a realidade atuarial assumida pelas políticas públicas de previdência social. A partir desse entendimento, se o direito ao benefício foi adquirido anteriormente à edição de nova lei (no caso, se o evento morte for anterior), o seu cálculo deverá ser efetuado de acordo com a legislação em vigor à época em que foram atendidos os requisitos.

(…)

Por fim, tendo em vista esse perfil do modelo contributivo e da necessidade de fonte de custeio (CF, art. 195, § 5o), o próprio sistema previdenciário, constitucionalmente adequado, deve ser institucionalizado com vigência para o futuro.

(…)

Em outras palavras, a Lei nº 9.032/1995 somente pode ser aplicada às novas concessões do benefício de pensão por morte. Isto é, ela deve ser aplicada, tão-somente, aos novos beneficiários que, por uma questão de imposição constitucional da necessidade de previsão de fonte de custeio (CF, art. 195, §5o), fazem jus a critérios diferenciados na concessão dos benefícios”.

6. Prossigo neste relatório para averbar que, ao contrário do voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, o Ministro Eros Grau negou provimento ao recurso extraordinário. Para fazê-lo, afastou o fundamento recursal da contrariedade ao ato jurídico perfeito e à segurança jurídica, verbis:

“(…)

A Lei 9.032/95, ao dar nova redação a esse artigo 75, estabeleceu que ‘o valor mensal da pensão por morte, inclusive a decorrente de acidente de trabalho, consistirá numa renda mensal correspondente a 100% (cem por cento) do salário-de-contribuição’. Não afetou os pressupostos constitutivos da concessão da pensão. Limitou-se a alterar o quantum percebido, cujo parâmetro é a contribuição previdenciária a que o beneficiário esteve obrigado. Por isso, reportando-me às razões do recorrente, observo de pronto que não há, no caso, violação de ato jurídico perfeito.

(…)” (no original, sem os caracteres negritados).


7. De se informar, ainda, que um quinto ministro deste Supremo Tribunal Federal proferiu voto no feito. Foi o ministro Ricardo Lewandowski, para quem

“(…)

Não se mostra possível, portanto, concessa vênia, aplicar-se a uma relação jurídica já consumada as alterações legislativas posteriores relacionadas ao cálculo da renda previdenciária mensal, inicialmente determinada, sejam elas mais ou menos benéficas ao segurado ou dependente deste.

De outra parte, não há que se cogitar, penso eu, de aplicação imediata da lei às prestações futuras, ou ao que se denomina de factia pendentia decorrentes de eventos passados, pois, em verdade, tais prestações decorrem do fato gerador único que é o evento morte. E o benefício que lhe sucede é regido pela Lei vigente à época deste fato. Impõe-se, portanto, a aplicação à espécie do princípio tempus regit actum.

É dizer, concedida a pensão sob a égide da lei vigente à época do óbito, apura-se a renda mensal inicial (RMI) do benefício em valor monetário. Daí para frente, os percentuais empregados no momento da concessão do benefício não são mais utilizados, aplicando-se a ele somente os índices de reajustamento periódico sobre o referido valor, conforme prevê o art. 201, §4o, da Constituição.

(…)”

8. Assim resenhando o processo, passo à elaboração do voto que me cabe. Para o que tentarei, inicialmente, fixar os principais contornos constitucionais da previdência social. Depois, já de posse do que me parecer o conhecimento daquilo que há de mais geral sobre a matéria, partirei para a revelação do que também se me afigurar como o particularizado regime jurídico da pensão mortis causa (por ser esse tipo de pensão a própria questão de fundo a resolver neste recurso extraordinário). Noutros termos, seguirei o itinerário mental que vai da apreensão do geral para o particular, que outra coisa não é senão o emprego do raciocínio dedutivo (também chamado de processo discursivo), pelo qual, por descendência ou mediatidade puramente intelectual, se passa de uma verdade geral para outra particular, esta última assim considerada em razão do vínculo que mantém com a primeira[1]).

9. Com este propósito, pergunto: quais os principais contornos da previdência social enquanto categoria de Direito Constitucional brasileiro? Previdência social em que se aloca o tema da pensão pelo falecimento do instituidor?

10. Bem, antes de tudo, a previdência social vem regrada como um dos nove “direitos sociais” de que trata o art. 6º da Constituição. Direito social que, a exemplo dos demais, se vocaciona para um desfrute pessoalizado. Logo, direito que se define pela sua titularidade individual, compondo uma bem caracterizada situação jurídica ativa ou de particularizado gozo. Típico direito subjetivo, portanto[2].


11. Assim fazendo parte da lista dos “direitos sociais” de que versa o art. 6º da Constituição, a previdência social é direito fundamental. Quero dizer: direito que se inscreve num dos capítulos (o de nº II) daquele segmento da Lei Republicana que porta consigo o altissonante nome de “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” (Título de nº II). E porque direito fundamental, constitui-se em situação jurídica ativa que, no caso, está voltada para a concretização de dois dos “fundamentos” da República Federativa do Brasil; quais sejam, os fundamentos da “dignidade da pessoa humana” e dos “valores sociais do trabalho”, assim literalmente grafados pelos incisos III e IV, respectivamente, do art. 1º da Constituição (há uma correspondência nominal, bem se vê, entre direitos “fundamentais” e “fundamentos” do Estado republicano brasileiro, estes a se densificar, a se especificar, a se concretizar, enfim, naqueles).

12. Também como os demais direitos do art. 6º, esse da previdência social não é servil ou instrumental de nenhum outro. É direito do tipo substantivo ou material, e não direito da espécie adjetiva ou processual. Direito que, além de gravitar em sua própria órbita (como todo direito substantivo), é de compostura econômica ou exigente de prestação material.

13. Com efeito, característica central dos direitos sociais é que o respectivo desfrute se dá como conseqüência de políticas públicas de conteúdo econômico ou material. A implicar, então, onerosidade ou desembolso de recursos financeiros, como bem se lê na seguinte passagem da Constituição brasileira:

“Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:

I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;

II – proteção à maternidade, especialmente à gestante;

III – proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;

IV – salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda;

V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º”.

14. Daqui já se percebe quão peculiar é o direito social à previdência! De uma banda, por antessupor uma obrigatoriedade de contribuição que alcança até mesmo aqueles que somente percebem o salário mínimo como fonte de subsistência material (inciso IV do art. 7º da Constituição)[3]. De outra parte, por lhe assentar melhor o sistemático uso no plural – direitos de previdência -, Pois o certo é que a previdência social de que trata o art. 6º é relançada pelo art. 201 como um verdadeiro conjunto de direitos subjetivos, literalmente chamados de “benefícios” (§§ 2º, 3º, 4º, 7º e 11, só para citar esse artigo de nº 201). Por conseguinte, está-se diante de um verdadeiro direito-continente, a albergar múltiplos conteúdos. Cada um destes a tipificar situação jurídica ativa ou particularizado direito subjetivo, como o auxílio-doença, o seguro-desemprego, o salário-família, os proventos da aposentadoria, a pensão mortis-causa”, etc.


15. Também já se infere que dois desses benefícios previdenciários se dotam de especial relevo. São os benefícios da aposentadoria e da pensão mortis causa, porquanto destinados a substituir, de modo continuado, um ganho mensal que se auferia por efeito do trabalho (seja o assalariado, seja o de qualquer outra natureza). Ganho mensal constitutivo de meio de vida, ainda que parcialmente. Donde a sua natureza alimentar, instantaneamente repassada para o seu sucedâneo: os proventos da aposentação, ou a pensão post-mortem. Por isso que ambos os benefícios são constitucionalmente qualificados como de trato sucessivo ou “prestação continuada” (art. 58 do ADCT), além de igualmente apanhados pela cláusula da “irredutibilidade” no seu valor nominal (inciso IV do art. 194 da Constituição). Irredutibilidade, a seu turno, que opera como o último reduto do direito adquirido, em tema de estipêndios. Vale dizer, irredutibilidade enquanto “aplicação tópica do princípio do direito adquirido, tanto quanto o direito adquirido se manifesta como aplicação pontual do princípio da segurança das relações jurídicas” (é como está na p. 149 do estudo que fiz publicar na Revista de Direito Administrativo nº 206 (FGV), ano de 1996, com o título de “O REGIME CONSTITUCIONAL DOS PROVENTOS DA APOSENTADORIA DO SERVIDOR PÚBLICO EFETIVO)”[4].

16. É neste ponto de inflexão que me parece imperioso falar de previdência social como um subsistema constitucional. Parte elementar do “sistema da seguridade social” (§ 3º do art. 195), concebido este como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art. 194, caput). Mas um subsistema financeiro-atuarial de mão dupla ou de contribuição-retribuição (em regra), porque estruturado a partir do imbricamento de fontes de custeio e concessões de benefícios.

17. Reexplico. Trata-se de um subsistema que opera a partir de financiamentos (“fontes de custeio”) que se direcionam para a formação de uma economia comum a todos os provedores e beneficiários. Logo, espécie de pecúlio coletivo, porém de aplicabilidade benfazeja individual. Sendo que alguns desses benefícios – já dissemos – são de trato sucessivo ou prestação continuada, como é o caso da pensão que ora se discute. Pensão por morte de um instituidor a que a nossa Magna Carta apõe o rótulo de “segurado” (inciso V do art. 201). Por que o faz?

18. Bem, assim procede a Constituição porque a previdência social é também organizada enquanto genuína atividade estatal de obrigatório desempenho (“A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória (…)”. Modalidade de política pública de caráter permanente, por ser uma das justificativas lógicas da própria existência do Estado brasileiro (visto que umbilicalmente ligada à concretização dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho). Daí porque estruturada como elemento do precitado sistema de seguridade social, bloco normativo-constitucional que se traduz no mais assumido programa de transferência de renda e de apoio material direto à população obreira e aos necessitados econômicos em geral (capítulo II do título VIII, a englobar, conforme visto, as ações de saúde pública, previdência e assistência social[5]).


19. Salta à compreensão, portanto, que a Seguridade Social é constitutiva de um aparato bem maior de contínua provisão de recursos para concessão de benefícios e serviços que também trazem consigo o timbre da permanência. Mais exatamente, aparato que se eleva ao patamar de um sistema que se operacionaliza por um solidário aporte de recursos oriundos do Estado e das pessoas a quem se comete o dever das contribuições sociais referidas no artigo 195 da Constituição.

20. Noutro modo de dizer as coisas, penso que o subsistema de previdência social geral acaba por se transfundir num modelo de permanente e heterodoxa relação securitária. Relação securitária que se constitui pela vontade objetiva da Constituição e das leis infraconstitucionais, e não pela vontade contratual das partes, além de financiada mediante contribuições de natureza tributária (donde a encarecida heterodoxia). Com sua onerosidade de mão dupla radicada na operacionalização de “planos de custeio” que se enlaçam, em equilibrada equação atuarial, à operacionalização de “planos de benefícios”. Tudo conforme as seguintes passagens da fala normativa da Constituição: “plano de custeio e benefícios” (parte final do caput do art. 58 do ADCT); “equilíbrio financeiro e atuarial” (arts. 40 e 201, cabeça; “rendimento do trabalho do segurado” (§ 2º do art. 201); “Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total” (§ 5º do art. 195)[6].

21. Pois bem, Senhora Presidente, Senhores Ministros, exatamente por se traduzir num modelo de permanente e heterodoxa relação securitária é que o subsistema de previdência social é grafado pela Constituição como um “regime” (ainda uma vez o caput do art. 40 e do art. 201 da Magna Carta Federal). Um regime jurídico, mais precisamente, por se tratar de relação jurídica sempre ajustável à vontade legislativa do Estado, a partir da Constituição mesma.

22. Ajunte-se: esse regime jurídico-previdenciário, por ser da espécie legal ou institucional, tem a mesma natureza daquele que timbra a interação do Estado com os seus servidores estatutários. Interação que Celso Antônio Bandeira de Melo explica por esta forma:

“A relação jurídica que interliga o Poder Público e os titulares de cargo público, – ao contrário do que se passa com os empregados -, não é de índole contratual, mas estatutária, institucional. Nas relações contratuais, como se sabe, direitos e obrigações recíprocos, constituídos nos termos e na ocasião da avença, são unilateralmente imutáveis e passam a integrar de imediato o patrimônio jurídico das partes, gerando, desde logo, direitos adquiridos em relação a eles. Diversamente, no liame de função pública, composto sob égide estatutária, o Estado, ressalvadas as pertinentes disposições constitucionais impositivas, deterá o poder de alterar legislativamente o regime jurídico de seus servidores, inexistindo a garantia de que continuarão sempre disciplinados pelas disposições vigentes quando do seu ingresso” (p. 235 da obra “CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO”, 19ª edição, Malheiros Editores, 2005, sem os caracteres em negrito[7]).


23. Afinando sua voz por esse mesmo diapasão, averba Antônio de Maia e Pádua, defensor público da União, em memorial distribuído a Vossa Excelência, Senhora Presidente, e aos demais ministros desta nossa Corte Suprema:

“Não há acordo ligando o segurado ao instituto gestor da previdência social. Um e outro estão atados por disposição legal que assim o determina. É apenas a lei o elemento que dá a liga ao sistema, ou seja, que faz surgir as obrigações de pagar as contribuições e os benefícios previdenciários. Todos os que têm renda própria, e que não contribuem para um regime previdenciário especial, estão vinculados – quer queiram, quer não queiram – ao regime geral da previdência social. Disso pode-se concluir o seguinte: o regime geral da previdência social é um regime jurídico”[8].

24. Ora bem, se o vínculo jurídico entre partes é daqueles que se instauram sob a forma de “regime”, e não de contrato, como resolver o problema da sua convivência com a garantia do ato jurídico perfeito? Instituto pré-questionado neste recurso extraordinário e que, para além da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (art. 6º), faz parte do próprio corpo de dispositivos da Constituição Federal (inciso XXXVI do art. 5º, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”)?

25. Eis a resposta que tenho como acertada para a situação dos autos: a garantia do ato jurídico perfeito começa por se manifestar na intocabilidade das verbas ou parcelas financeiras que entram, de Direito, na concreta e formal composição de qualquer dos dois benefícios em comento. Noutros termos, os valores estipendiários que a Constituição e as leis mandarem computar para a formação dos proventos da aposentadoria e da pensão post mortem, uma vez formalizados em fidedigno ato individual e concreto, passam a compor um somatório pecuniário insuscetível de redutibilidade. Somatório inicial que é o próprio recheio pecuniário de cada ato formal-individualizado de concessão do benefício e, mais que isso, a própria referência objetiva da garantia da irredutibilidade.

26. É precisamente essa garantia de irredutibilidade da expressão financeira do ato concessivo do benefício que vai conferir a esse ato concreto, no ponto, a sua primeira nota de perfectibilidade; ou seja, a condição de ato jurídico já aperfeiçoado no plano da sua compostura monetária ou sistemática de cálculo. Pelo que se torna garantia constitucional contra mudanças legislativas eventualmente prejudiciais. Digo “prejudiciais”, considerando que a nossa Constituição não proíbe a retroação em si da lei (inciso XXXVI do art. 5º). O que ela proíbe é a retroação lesiva ou prejudicial do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada enquanto situações jurídicas intrinsecamente proveitosas para alguém em particular. O que é bem diferente.

27. Convém repetir. O empírico ato administrativo de concessão de qualquer dos dois benefícios da aposentadoria ou da pensão mortis causa, desde que escorreitamente expedido, alberga uma fórmula de composição estipendiária que é a própria referência objetiva do direito à irredutibilidade nominal. Nessa medida, opera como ato jurídico perfeito para o fim de resistir a danosa retroatividade de eventual medida legislativa do Estado. Ainda que agindo este por meio de emenda à Constituição, também ela carente de força para romper a barreira lógica de que os proventos da aposentadoria e a pensão mortis causa se regem pelas leis vigentes à época do perfazimento das respectivas condições de titularidade. É o que, no tema, se procura explicar pela invocação da parêmia do tempus regit actum, no sentido de que há um vínculo funcional permanente – vínculo de fidelidade – entre a originária relação jurídica e sua matriz legislativa. Ainda que essa matriz venha a ser derrogada ou até mesmo revogada, pois os efeitos por ela deflagrados passam a fazer parte da história de vida do respectivo beneficiário, e não da história de vida da própria lei matricial (fenômeno da ultra-atividade pontual ou ultra-operatividade tópica da lei). Daí porque dissemos nas páginas 9, 10 e 14 do nosso “Teoria da Constituição”, editora Forense, 3ª tiragem, ano de 2006:


“Cada vez mais nos convencemos de que os institutos do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada têm a unificá-los o fato de: a)procederem, originariamente, de uma lei em sentido formal; b) constituírem relações jurídicas do tipo concreto e de conteúdo proveitoso para alguém em particular. Por isso que a Magna Carta fala que “a lei não prejudicará”… e é claro que essa vedação de prejuízo significa tornar incólume algo intrinsecamente valioso (pois que, se valioso não fosse, deixaria de se expor a prejuízo). Já no tocante àquilo que os diferencia, pensamos que tudo se hospeda é na fonte imediata de geração de cada um deles. Por hipótese, se um determinado funcionário alcança o tempo mínimo de 35 anos de contribuição previdenciária, ele ganha o direito à aposentadoria com proventos integrais, e esse direito, por fluir direta e exclusivamente de uma norma geral, se categoriza como adquirido. Contudo, se o funcionário formaliza o seu pedido de aposentação e a Administração Pública expede o respectivo ato, com seqüenciada aprovação pelo Tribunal de Contas, o direito subjetivo, que era do tipo adquirido, passa a se chamar ato jurídico perfeito. E se alguém impugna em Juízo a validade de tal aposentadoria, vindo o Judiciário a definitivamente confirmar, não a impugnação, mas o ato jurídico da aposentação, o direito subjetivo, que já teve a sua fase de direito adquirido e o seu estádio de ato jurídico perfeito, agora muda outra vez de nome e passa a se chamar coisa julgada. (…) Note-se bem. Agora, o que fica a salvo de retroatividade da lei não é o dispositivo sob cuja preceituação nasceu o direito apelidado de adquirido, ou foi expedido o ato jurídico perfeito, ou prolatada a res judicata. Não! O que fica imune à retroatividade danosa da nova lei são determinados efeitos da velha regra legal. Sejam os efeitos deflagrados imediata e exclusivamente pela norma em abstrato (direito adquirido), sejam aqueles que precisaram de confirmação pela via do ato jurídico dito perfeito, ou da decisão judicial que se transformou em coisa julgada. A distinção essencial é esta: a norma geral, enquanto ´pedaço de vida humana objetivada´ (RECASÉNS SICHES), pode ir embora do Ordenamento (por revogação), ou ter a sua carga protetiva quebrantada (por derrogação), mas não é exatamente isto o que sucede com todos os seus efeitos. Aqueles efeitos que já se exteriorizaram sob a forma de direito adquirido, ou de ato jurídico perfeito, ou de coisa julgada, já não podem sofrer desfazimento, paralisia, ou quebrantamento. Continuam, íntegros, a repercutir no restrito universo de certos atores, pois já passaram de efeitos objetivos a subjetivos, e, mais que isso, permanentes e identificáveis pelos nomes patronímicos ou pessoais dos seus beneficiários. O que fica intocável, portanto, é aquela dimensão da norma geral que passou, em caráter definitivo, de pedaço de vida humana objetivada a pedaço de vida humana subjetivada”.

28. Sucede que o próprio valor nominal dos proventos ou das pensões é categoria que já se preordena ao experimento de majorações. Seja porque as relações de previdência consubstanciam direitos sociais que, quanto mais adensados, mais concretizam os dois precitados fundamentos da República Federativa do Brasil (“dignidade da pessoa humana” e “valores sociais do trabalho”), seja pelo caráter alimentar das aposentadorias e pensões, seja, enfim, porque assim determina a própria Constituição por modo direto. Veja-se: “É assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios definidos em lei” (§5º do art. 201). Ora, em tais hipóteses, é de se reconhecer a cada novo ato de incremento dos proventos ou da pensão a força de também operar como ato jurídico perfeito. Sendo que, tanto nessas prefigurações como naquela inicial (gradualidade benévola de concretizações), a garantia contra a retroatividade malsã do Direito legislado só opera em favor do titular do benefício. Não do Estado que edita o ato da ordem legislativa, pois exatamente contra o poder normativo-primário do Estado é que foi erigida a garantia constitucional da irretroatividade danosa. Irretroatividade que “…não é invocável pela entidade estatal que a tenha editado” (Súmula nº 654 deste nosso excelso Tribunal)[9].


29. Avanço na fundamentação. A garantia constitucional da irretroatividade da lei gravosa já é, por princípio, uma paliçada que se ergue contra as arremetidas do poder legislativo do Estado (este o próprio cenário histórico-político-liberal em que se deu, como sabido, a positivação das estelares figuras do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada como as principais manifestações pontuais do sumo princípio da segurança jurídica). Depois, em se tratando dos dois benefícios aqui analisados (aposentadoria e pensão mortis causa), o ato jurídico perfeito é garantia que funciona como contraponto ou compensação ao prefalado regime jurídico não-contratual das relações de previdência social. Equivale a dizer: as relações de previdência social jazem, sim, ao dispor do querer legislativo do Estado; respeitado, porém, o direito à irredutibilidade dos benefícios que nelas se constituírem, validamente. Respeito que se efetiva pela intocabilidade do somatório financeiro de cada ato administrativo-estatal de formalização de qualquer dos dois benefícios. Assim o primeiro ato formal como os que se lhe seguirem para simplesmente atualizar ou até mesmo incorporar ganhos reais às suas expressões financeiras[10].

30. Numa primeira síntese conclusiva, então, descabe ao Estado-autarquia de nome “Instituto Nacional do Seguro social (INSS)”, ora recorrente, invocar em seu favor a aplicabilidade da garantia constitucional do ato jurídico perfeito. O escudo do “tempus regit actum”. Isto como fundamento para se opor à tese da aplicabilidade imediata da lei aos preexistentes valores de cada pensão previdenciária já formalmente concedida.

31. É fato que a lei nº 9.032/95 foi silente quanto à época exata de sua aplicabilidade. Não se nega. Mas se é próprio da Lei Maior apenas permitir, ou até mesmo obrigar que se modifique para o alto as expressões financeiras das aposentadorias e pensões, o silêncio da lei menor parece exigir uma postura interpretativa que favoreça, no caso, todos os pensionistas. Não somente aqueles que se habilitarem a partir da vigência do novo diploma legal. É compreender: na matéria, a retro-incidência da lei mais favorável nem precisa vir expressa. Daí porque vocalizamos, já no mencionado artigo sobre o regime constitucional dos proventos da aposentadoria do servidor público, as seguintes proposições que ainda uma vez pensamos aplicáveis à pensão sub judice:

“somente para o alto é que pode haver alteração no valor nominal dos vencimentos ou remuneração, e, por conseqüência, no pagamento mensal dos aposentados. Este o motivo pelo qual a Constituição não inclui na competência reservada ao Poder Executivo Federal a iniciativa das leis que disponham sobre redução de vencimentos, nem na competência do Tribunal de Contas da União a apreciação da legalidade das reduções de proventos, reformas ou pensões. Aqui, tanto quanto ali, a Magna Carta só trabalha com as hipóteses de “aumento” ou “melhorias” (art. 61, § 1º, inciso II, alínea a, e art. 71, inciso III, parte final), em sintonia fina com as normas assecuratórias da irredução de tudo quanto faça parte dos vencimentos ou remuneração”.

32. Uma outra ordem de consideração nos anima a porfiar na postura interpretativa que estamos a preconizar. É que a finalidade do benfazejo art. 75 da lei nº 9.032/95 foi conferir aos aposentados e pensionistas da previdência social geral um tratamento assemelhado ao que vigorava para os pensionistas e aposentados do chamado “sistema próprio de previdência pública federal” (consubstanciador das originárias relações entre a União, suas Autarquias e Fundações, e os seus servidores efetivos). Forcejando, então, por encurtar distâncias ou reduzir assimetrias entre os dois regimes de previdência. Sempre para o alto ou para cima – nunca é demasiado frisar -, sabido que os servidores federais investidos em cargo de provimento efetivo gozavam, à época, do direito subjetivo à paridade entre os seus vencimentos e os proventos da aposentadoria, tanto quanto os proventos da aposentadoria se marcavam pela sua integral conversão em pensão mortis causa. Ora, se era assim, a essa opção legislativo-ordinária de combate a assimetrias exógenas só podia corresponder uma outra de eliminação de assimetrias endógenas. Quero dizer, por inversão argumentativa: não faz sentido aplicar a lei mais benéfica somente a uma parte do universo de pensionistas do sistema geral de previdência social, porque essa divisão entre pensionistas de primeira e de segunda categoria estipendiária instaura um regime de assimetrias endógenas que já não corresponde àquela finalidade legal de combater assimetrias exógenas. Quanto mais que:


I – toda pensão previdenciária se dota do mesmo caráter alimentar, a exigir aplicabilidade da lei mais generosa no menor espaço de tempo possível;

II – sobre instituir o princípio da igualdade como norma de estatura superior (desde o seu preâmbulo e com mais realce no caput do art. 5º), a Constituição dispõe que “É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social (…)”. Sendo certo – penso – que o substantivo “requisitos” exprime os pressupostos constitucionais de individualizada entronização na titularidade do benefício, tanto quanto o substantivo “critérios” diz com a própria sistemática de cálculo de tal benefício (e que resulta no conteúdo financeiro dele, portanto).

33. Tudo isso considerado, o que se me afigura transcorrer entre a lei 9.032/95 e a Constituição Federal é um típico fenômeno de coalescência de vontades normativas que se fundem em um só núcleo deôntico. Uma só unidade de sentido ou conteúdo. A Constituição inicia a formulação de um direito social da espécie fundamental e de caráter alimentar para que a norma infraconstitucional venha a dar uma segunda e necessária demão. A primeira a se predispor a adensamentos pela segunda, mas com tamanha e antecipada carga de empatia que os dois comandos são como que irmãos siameses. De sorte que o enunciado de escalão menor é formalmente infraconstitucional, sim, porém materialmente constitucional. Com o traço eficacial da mais imediata e generalizada incidência, porque assim é como se definem, em regra, os comandos que, integrando a parte permanente da Constituição, veiculem um direito subjetivo triplamente qualificado pelos signos do social, do fundamental e do alimentar.

34. Daqui para a conclusão de que o referido silêncio da Lei 9.032/95 só pode significar tratamento isonômico imediato a todos os pensionistas do sistema geral de previdência social é um passo. Um passo que respeitosamente dou, para entender que os efeitos benéficos do diploma em comento apanham sim as pensões preexistentes à data de sua entrada em vigor.

35. Resta o equacionamento da outra e necessária coalescência, já agora a se dar entre fontes de custeio e concessão de benefícios previdenciários. Isto porque não se pode ignorar o vínculo que a própria Constituição estabeleceu entre as duas matérias, desde a sua virginal redação. Redação que era e continua sendo esta:

“Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total” (§ 5º do art. 195).

36. Acontece que esse parágrafo quinto do art. 195 da nossa Lei Fundamental não me parece traduzir senão:

I – uma especificação ou densificação do objetivo que a própria Constituição designa por “universalidade da cobertura e do atendimento” (inciso I do parágrafo único do art. 194). Vale afirmar, é preciso que as fontes de financiamento do sistema da seguridade social sejam legalmente instituídas e administrativamente mantidas em patamar financeiro capaz de responder pelo total desembolso de cada qual dos benefícios e serviços inerentes a tal sistema, de parelha com a força de viabilizar um pronto atendimento a todas as pessoas para as quais ele se volta;


II – um dispositivo constitucional que, já na esfera menor do subsistema da previdência social, opera como critério de preservação do equilíbrio financeiro e atuarial a que se reporta o mencionado caput do art. 201. Logo, enunciado normativo que a lei tem que observar para manter esse equilíbrio. Atuando, então: a) como norma que tem por destinatários imediatos os Poderes Executivo e Legislativo, que são as instâncias de co-produção da lei em sentido formal, na matéria; b) como norma de garantia da auto-sustentação de um pecúlio coletivo que não pode deixar de ser tão perene quanto bastantemente suprido.

37. Esse imperativo da auto-sustentação atuarial-financeira do subsistema de previdência social é dever que recai sobre o Estado-administração, destarte, como contrapartida lógica da filiação obrigatória dos segurados e da própria natureza institucional do vínculo entre partes. Dever do Estado e garantia dos segurados, portanto, sob o reforço da seguinte disposição constitucional:

“Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento dos benefícios concedidos pelo regime geral de previdência social, em adição aos recursos de sua arrecadação, a União poderá constituir fundo integrado por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e administração desse fundo” (art. 250, introduzido pela EC nº 20/98).

38. Neste passo, a possibilidade de criação de tão multitudinário fundo de reserva, a se dar do lado de fora do esquema tributário de contribuições, já significa o quê? O reconhecimento, pela própria Constituição, do equilíbrio factualmente instável ou intrinsecamente precário entre fontes de suprimento financeiro do subsistema e os respectivos itens de despesas.

39. Seja como for, está-se a lidar com normas constitucionais que fazem recair sobre o Poder Público o inarredável dever de “organizar” tanto o sistema da seguridade social quanto o subsistema da previdência social geral (parágrafo único do art. 194, combinado com o caput do art. 201 da Constituição, mais o art. 59 do Ato das Disposições Constitucionais Transitória). Com a particularidade de que não é preciso que cada uma das fontes de custeio figure no mesmo diploma legal que instituir, majorar ou estender qualquer dos benefícios aqui tantas vezes citados (até como decorrência do também mencionado equilíbrio factualmente instável da equação custos/benefícios).

40. Deveras, desde a redação do art. 59 do ADCT que se fala de autonomizados projetos de lei para o plano de custeio, de uma parte, e, de outra, para o plano de benefício, na órbita do subsistema da previdência social geral[11]. Daí a lei federal nº 8.212/91, instituidora do mais dilargado plano de custeio, promulgada em paralelo à lei nº 8.213/91, veiculadora do correlato plano de concessão de benefícios. Também assim a crônica legislativa que figura do seguinte quadro exemplificativo, evidenciador desse não-estritamente necessário casamento legal entre benefícios previdenciários e suas fontes de financiamento:

DIPLOMA

O QUE FEZ?

QUAL FOI O RESULTADO?

LC 84 de 1996, arts. 1o e 2o;

Instituiu contribuição social das empresas e pessoas jurídicas outras (inclusive cooperativas em geral e cooperativas de trabalho;

Criação solitária de novas fontes de custeio da Seguridade Social;

LC 110/2001;

Instituiu contribuições sociais devidas pelo empregador em caso de despedida de empregado sem justa causa;

(Obs.: ADI 2.556-MC e ADI 2.568-MC)

Criação solitária de uma nova fonte de custeio da Seguridade Social;

Medida Provisória 2.158-35/2001 (alínea b do inciso II do art. 93);

Revogou totalmente a LC nº 85/1996, que concedia isenção de contribuições sociais previstas na LC nº 70/1991;

Incremento solitário no custeio da Seguridade Social;

Lei 10.684, de 2003, art. 22;

Majorou a base de cálculo (de 12 para 32%) da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das empresas de que trata o inciso III do art. 15 da Lei nº 9.249/1995;

Incremento solitário no custeio da Seguridade Social;

41. Não é tudo, porque a solução jurídica ora perfilhada ainda se me afigura rimada com a exposição de motivos do projeto da própria lei nº 9.032/95. Confira-se:


“(…)

2. Preliminarmente, deve-se assinalar que a Previdência Social tem-se caracterizado por uma situação de equilíbrio instável. A maioria dos especialistas que se manifestam sobre o tema convergem quanto à necessidade de uma reestruturação global do sistema previdenciário.

3. Nesse sentido, pretende-se implementar uma estratégia de ação objetivando a obtenção de resultados a curto, médio e longo prazos.

4. Por um lado, com um conteúdo de mais longo prazo, o Ministério da Previdência e Assistência Social propõe um novo desenho para o sistema de previdência social brasileiro, que seja simultaneamente justo do ponto de vista social e atuarialmente viável sob a ótica financeira.

(…)

7….Com efeito, a legislação básica da Previdência Social é complexa e o desafio de seu aperfeiçoamento será o de criar um sistema mais estável, seguro e socialmente mais justo para a manutenção dos atuais e futuros aposentados, pois o que se verifica hoje é a incongruência de regras, benefícios díspares, tratamento não equânime para os segurados, enfim, injustiça na distribuição dos benefícios sociais.

8. Pretende-se que as alterações tenham início imediatamente, mediante a alteração emergencial da atual legislação básica, procurando corrigir erros e vícios instituídos. O encaminhamento do anexo anteprojeto de lei representa mais uma etapa do processo mediante o qual se reformará a Previdência Social.

9. Nesse sentido, o que se objetiva, no momento, é a reformulação da legislação básica, de modo a acabar com o tratamento diferenciado dado a determinados grupos de segurados, eliminar as distorções existentes na concessão de benefícios especiais, bem como buscar condições de aumentar a arrecadação visando ao superávit necessário para melhorar as condições de quem já está aposentado.

(…)”

14. Finalmente, ressalto que, (…) A recuperação do adequado padrão de operacionalidade do sistema é sem dúvida condição fundamental para a reengenharia das funções que devem ser executadas pelo moderno Estado social, reformado para bem cumprir uma legislação efetivamente garantidora dos direitos sociais fundamentais (…)”.

42. Essa transcrição bem demonstra o assumido propósito governamental de operar verdadeira “reestruturação global do sistema previdenciário”, de modo a robustecer o seu tônus eminentemente social. Quero dizer: salta aos olhos o caráter estrutural da referida proposta, que se dispôs a redesenhar o modelo de previdência social geral para corrigir distorções e assim melhor servir ao princípio constitucional da isonomia entre os segurados e da simetria mesma entre os institutos da aposentadoria e da pensão mortis causa. Daí porque a lei em que veio a se transformar instituiu novas fontes de custeio, incrementou benefícios (dentre eles a pensão mortis causa) e extinguiu itens de despesas, como, por amostragem, vedação do acúmulo de mais de uma aposentadoria, de salário-maternidade com auxílio-doença, de mais de um auxílio-acidente, de mais de uma pensão deixada por cônjuge ou companheiro, bem como proibição do recebimento conjunto do seguro-desemprego com benefício previdenciário de prestação continuada.

43. É o quanto me basta para emitir o juízo de que esse estrutural diploma legislativo foi idealizado e redigido com fiel apego às coordenadas constitucionais do equilíbrio financeiro e atuarial. Inclusive para alcançar de modo benigno, em tema de pensão mortis causa, os propalados “efeitos pendentes de fatos geradores passados”.


44. Tudo medido e contado, Senhora Presidente, Senhores Ministros, conheço do recurso extraordinário mas lhe nego provimento.

É como voto.


[1] Ver “Dicionário de Filosofia” de J. Ferrater Mora, Edições Loyola, Tomo I, p. 646, São Paulo, 2000.

[2] “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

[3] “Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.

[4] Garantia que o ministro Sepúlveda Pertence rotula como “direito adquirido qualificado”, a teor do voto proferido no RE 298.694 (Plenário DJ de 23.04.2004).

[5] No âmbito das políticas públicas de assistência social é que se inscreve “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei” (inciso V do art. 203). Benefício, entretanto, a ser custeado diretamente pelo Tesouro ou Erário da União, por se dar inteiramente à margem do esquema de contribuição-retribuição que é próprio da obrigatória filiação ao regime de previdência social geral.

[6] Deixo de falar do “regime de previdência privada, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social” (art. 202, caput), por entendê-lo desvalioso para o equacionamento jurídico da presente demanda.

[7] No particular, Paulo Modesto faz um precioso balanço da jurisprudência pretoriana brasileira em prol do reconhecimento da relação estatutária como relação de permanente conformação legal, no sentido de que o servidor não tem o cargo nem a função pública imunes às valorações políticas novas que o Estado vier a fazer, de modo a alcançar até mesmo institutos de conteúdo pecuniário. É o que se lê do estudo publicado às pp. 127/178 da “REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO” da Bahia, v. 4, nº 6, ano de 1995.

[8] Quando pessoalmente buscamos, na discussão da ADIN 3.105 (Relator para o acórdão o Ministro Cezar Peluso), enxergar um leve traço de contratualidade na relação de previdência pública ou estatutária, considerando o fato de que os proventos da aposentadoria e a pensão por morte são os únicos direitos para cujo gozo os servidores efetivos contribuem com recursos financeiros próprios, que sucedeu? Vimos o nosso particular ponto de vista esbarrar na vontade quase unânime da Corte. Isto sob o entendimento plenário de que a relação do tipo estatutário, consubstanciando, justamente, um regime jurídico do tipo institucional ou ortodoxamente legal, se forma e se desenvolve à luz de um querer legislativo que opera de cima pra baixo. Verticalmente, e não no plano da horizontalidade de um livre ajuste entre sujeitos jurídicos.

[9] É bem verdade que os precedentes em que se baseou esse entendimento tratavam de situações em que o próprio diploma legal previa expressamente a retroatividade de seus efeitos. Sendo que o Estado, ao invocar a irretroatividade da lei (inciso XXXVI do art. 5o da CF/88), pretendia exonerar-se do respectivo cumprimento . (RE 206.965, Rel. Min. Ilmar Galvão, entre outros).

[10] A razão de ser do modo englobado com que estamos a analisar os dois institutos da aposentadoria e da pensão por morte radica no tratamento igualitário que a própria Constituição conferiu às duas figuras de direito. Isto na redação originária da nossa Lei Fundamental, artigos 40, 5º, 201, inciso V, combinadamente com os arts. 20 e 58 do ADCT.

[11] Os projetos de lei relativos à organização da seguridade social e aos planos de custeio e de benefícios serão apresentados no prazo máximo de seis meses da promulgação da Constituição ao Congresso Nacional, que terá seis meses para apreciá-los. Parágrafo único. Aprovados pelo Congresso Nacional, os planos serão implantados progressivamente nos dezoito meses seguintes”;

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