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Escolha de procurador-geral do Equador causa polêmica

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de fevereiro de 2007, 23h01

O Equador é um país com 270,6 mil quilômetros quadrados, aproximadamente 13 milhões de habitantes, que se caracteriza por belezas naturais, um patrimônio histórico-cultural privilegiado, rica biodiversidade e um povo cordial e religioso. Sofre o país, todavia, com um elevado grau de corrupção, que levou inclusive à, previsão constitucional (artigo 220) de uma pessoa jurídica denominada “Comissão de Controle Cívico da Corrupção”.

Uma expressão popular (palanca) expressa o protecionismo, a fraude, as maneiras existentes para solucionar-se as coisas com vista a interesses pessoais e não públicos. Algo assemelhado ao jeitinho brasileiro, que nada mais é do que uma maneira suave de justificar-se o desvio da lei. Mas o importante é que o país andino vem tentando alterar este estado de coisas.

Nos últimos dias, o Equador passa por um incidente político-jurídico inusitado. Trata-se da indicação pelo Congresso Nacional e posse em 18 de janeiro passado do promotor Cucalón (fiscal, na linguagem da América espanhola) para ocupar o cargo de procurador-geral da República (fiscal general). A primeira indagação que se faz é qual o interesse desta ocorrência para o mundo jurídico brasileiro. Qual o link, dir-se-ia na linguagem cibernética. Aparentemente, nenhum. Na realidade, muito grande.

Com efeito, a América Latina, historicamente, apresenta seus movimentos sociais de forma conjunta. Assim se sucederam, nos 30 primeiros anos do século XIX, os movimentos de Independência. Mais tarde, os de libertação dos escravos. Em tempos mais recentes, os governos militares, a abertura política, as privatizações, a criação de Conselhos de Justiça, Tribunais Constitucionais (esta iniciativa não foi adotada no Brasil) e, agora, a notória tendência de governos de esquerda.

Diante desta situação de fato, soa estranho em 2007 o contido no artigo 386 do Decreto 848 que, em 11 de outubro de 1890, que introduziu a Justiça Federal no Brasil, pouco tempo depois da Proclamação da República. Com efeito, naquele dispositivo se determinava a aplicação subsidiária da antiga legislação processual e também os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na República dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity.

Passados mais de cem anos, vê-se que nossa realidade latino-americana apresenta problemas e soluções mais próximos dos nossos vizinhos do que dos países da desenvolvida Comunidade Européia ou da América do Norte. Saindo dos padrões formais do Direito, pode-se dizer que tudo isso está bem claro na antiga e consagrada música de Belchior, Rapaz latino-americano, quando afirma que “por força deste destino, um tango argentino me cai bem melhor que o blues”.

O caso Cucalón

No Equador, a escolha do procurador-geral da República é feita pelo Congresso Nacional, a partir de uma lista tríplice elaborada pelo Conselho Nacional da Magistratura, na forma do artigo 218 da Constituição Equatoriana de 1988. Todavia, o CNM não faz a indicação por critérios políticos, mas sim após a realização de um concurso público aberto aos integrantes da classe.

Todavia, face ao atraso decorrente do tramitar do concurso, que se divide em várias fases, a Câmara dos Deputados (não há Senado no Equador), valendo-se de permissivo previsto no artigo 130, inciso 11, da Constituição, que menciona prazo para o conselho enviar a lista, nomeou o promotor Francisco Cucalón com 73 votos dos 83 deputados.

Até aí, a discussão ficaria na órbita jurídica. Mas assim não foi. É que o promotor Cucalón, segundo se afirma, além de ter sido reprovado no concurso, tinha contra si acusações de improbidade e de manter relações com pessoas envolvidas em tráfico de entorpecentes (Jornal El Comercio, 1/2/07, C1, p. 8).

Resultado disto foi que os promotores, funcionários do Ministério Público e ativistas iniciaram uma greve e fecharam as Promotorias por todos o país. Além disto, impediram que o nomeado entrasse em exercício na Procuradoria-Geral. Este buscou apoio de colegas e de servidores, sem sucesso. O incidente tornou-se um fato político grave, noticiado diariamente pela imprensa, e resultou na paralisação das atividades criminais do Ministério Público.

Entrementes, o Conselho Nacional da Magistratura prosseguiu no concurso e enviou a lista tríplice ao Poder Legislativo. Pressionado politicamente, o promotor Cucalón, no dia 1º de fevereiro, desistiu da nomeação. Pende de exame na Câmara dos Deputados, com definição prevista para os próximos dias, a escolha de um dos três nomes apontados pelo conselho, todos submetidos à análise pública, com suas carreiras minuciosamente examinadas e apontadas nos meios de comunicação. As instalações do Ministério Público, aos poucos, foram sendo deixadas pelos ativistas (Jornal El Pais, 2/2/07, p. B5).

A realidade brasileira

No Brasil, o Poder Judiciário e o Ministério Público são instituições fortes e estáveis. A magistratura faz concursos de ingresso há mais de 100 anos (o primeiro foi feito pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em 21 de novembro de 1891). Os concursos para juiz, que eram apenas boas e voluntárias iniciativas, a partir da Constituição de 1934 passaram a ser obrigatórios (artigo 104, alínea “a”).

Já o Ministério Público, a partir dos anos 40, foi criando uma carreira estável, proibindo o exercício da advocacia aos seus integrantes, culminando por obter, com a Constituição de 1988, absoluto profissionalismo e independência (artigos 127 a 130).

No âmbito dos estados, o procurador-geral é nomeado pelo governador, mediante a apresentação de lista tríplice eleita por toda a classe. Na esfera federal, a indicação é feita pelo presidente da República, submetido o escolhido à avaliação do Senado Federal (Constituição Federal, artigo 84, inciso XIV). O sistema vem funcionando com sucesso.

Os procuradores-gerais da Justiça, regra geral, gozam e atuam com total independência junto aos governadores de seus estados. Quanto ao procurador-geral da República, todos que acompanham a vida política nacional sabem que atua com vistas ao interesse público, totalmente isento de influência do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário. Cabe aqui lembrar que o atual procurador-geral, Antonio Fernando Souza, foi o mais votado em eleição espontânea da classe, tendo sido o escolhido pelo presidente da República.

O sucedido no Equador, comparado à prática brasileira, permite que se chegue a algumas conclusões:

1ª) O ocorrido naquele país, ainda que possa apontar para a instabilidade das instituições, tem o aspecto positivo de demonstrar que a cidadania está atenta aos fatos políticos e a exigir a restauração da ética e da probidade;

2ª) No Brasil, as instituições que compõem o que genericamente se chama de Justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, OAB, AGU e outras) chegaram a uma reconhecida fase de estabilização e amadurecimento;

3ª) O fortalecimento da democracia passa necessariamente por instituições fortes, revelando-se menos importante quem exerça o poder em determinado instante e mais importante os meios de controle sobre os órgãos e as pessoas que fazem parte da organização do Estado.

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