Crime xampu

Por que a Justiça perde tempo com vasos do cemitério

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2 de fevereiro de 2007, 23h01

No dia 19 de janeiro, um estilista paulista de certo renome saía do cemitério do Araçá, no centro de São Paulo, com dois vasos de cimento alheios, supostamente com a intenção de acrescentá-los ao seu próprio patrimônio. Surpreendido por funcionários do cemitério que chamaram a polícia, ele foi levado à delegacia, autuado em flagrante e metido preso.

Treze dias depois, o promotor Leonardo Leonel Romanelli, do Ministério Público de São Paulo, apresentou denúncia ao juiz da 30ª Vara Criminal da Capital que deverá decidir se a aceita ou não. Enquadrado no artigo 155 do Código Penal por “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, o subtraidor de vasos está sujeito a pena de um a quatro anos de prisão e multa.

Em raras oportunidades, como nessa, é possível ver as instituições de repressão ao crime e de garantia da ordem agir com tanta presteza. A pergunta que fica é: e precisava de tudo isso, por um crime apenas insignificante? Num país onde a impunidade é a regra e onde o Judiciário não dá conta de julgar os processos em tempo razoável, faz sentido gastar tempo e recursos para tratar de bagatelas?

A decisão está nas mãos do juiz. Com a simples apresentação da denúncia, ele terá de cumprir o ritual de pedir a folha de antecedentes do acusado e, se receber a denúncia, irá proceder a instrução criminal, no qual acusação e defesa apresentarão suas provas e razões até a sentença.

O juiz pode também aplicar ao caso o princípio da bagatela, cada vez mais usado pelo Judiciário brasileiro, mesmo não estando previsto em lei. Cresce o entendimento de que o furto, consumado ou não, de objetos de pequeno valor não merece atenção do Direito Penal.

Loucas por xampu

O princípio da insignificância teve, pela primeira vez, seu acolhimento expresso pelo Supremo Tribunal Federal em julho de 1988. No caso, o STF arquivou Ação Penal com o fundamento de que um ferimento de três centímetros de diâmetro, causado por um acidente de trânsito, escapa do interesse punitivo do Estado, por causa do princípio da insignificância. Segundo a Corte, o prosseguimento da ação não traria nenhum resultado. Só sobrecarregaria mais os serviços da Justiça e incomodaria inutilmente a vítima.

Ronaldo Ésper — este o nome do estilista que subtraiu os vasos — vem fazer companhia a um número não insignificante de anônimos que chegaram a ser punidos de fato pela falta de atenção do aparelho de repressão do Estado. É o caso da Angélica Aparecida Souza Teodoro, condenada a quatro anos de prisão por tentativa de roubo de um pote de manteiga. Antes de ser julgada, ficou 4 meses presa.

O banco de dados da ConJur registra pelo menos quatro casos de pessoas que roubaram frascos de xampu em supermercados e foram parar atrás das grades no ano passado. Tão estranha quanto a obsessão destas pessoas em subtrair o xampu alheio é a obsessão do Estado em punir crimes sem conseqüências. Num dos casos, o processo pelo furto de dois frascos de xampu no valor total de R$ 24 só foi solucionado no Superior Tribunal de Justiça. Absolvida, a acusada voltou para casa depois de um ano na prisão.

Pode sair mais caro

No caso de Ronaldo Ésper, a pergunta que fica é: cabe Ação Penal para quem tenta furtar dois vasos de pequeno valor? Para o advogado criminalista Luís Guilherme Vieira, não. O caso, segundo ele, sequer merece atenção da Justiça. “Trata-se de algo que gastará tanto tempo e dinheiro do Estado, que qualquer punição não compensará”, afirma.

A posição defendida pelo advogado é de que o Ministério Público poderia ter aplicado a bagatela, antes mesmo de oferecer a denúncia. “Só não aceita essa posição quem é realmente muito legalista.”

De acordo com o advogado, “se o réu é primário e o objeto do furto for de pequeno valor — entende-se nesse caso até um salário mínimo — pode ser aplicada multa ao acusado, mas não pena de prisão. O processo poderá custar mais de R$ 1,8 mil só na fase de instrução. Valor nitidamente maior do que o dos vasos furtados pelo estilista”.

O promotor de Justiça Roberto Livianu defende a mesma tese. “É claro que tudo depende da interpretação do promotor. Existe uma variedade muito grande de pontos de vista. E não se trata só disso. Se há qualquer dúvida, é obrigação do MP oferecer denúncia. Levando em consideração que a dúvida sempre beneficia o réu, há grandes chances de o acusado ser absolvido”, ressalta.

O advogado Jair Jaloreto Júnior, também criminalista, diz que “não há irregularidade no oferecimento da denúncia”. Ele nem considera aplicável o princípio da bagatela. De acordo com Jaloreto, o preço dos vasos não é irrelevante.

Marcelo Furman, advogado responsável pela defesa do estilista, já prepara a tese que vai defender na Justiça. O argumento é de que não houve furto, nem tentativa. “Não se furta o que está abandonado”, afirma.

Muito por pouco

A jurisprudência do STF e do STJ caminha do sentido de que não há crime quando o furto não causa danos ao patrimônio da vítima. Há quase três anos, o ministro Celso de Mello, do Supremo, concedeu liminar em Habeas Corpus para determinar a suspensão da condenação de oito meses de reclusão imposta a um rapaz que furtou uma fita de vídeo-game avaliada em R$ 25.

Celso de Mello começou a fundamentar sua decisão com uma pergunta: “Revela-se aplicável, ou não, o princípio da insignificância, quando se tratar de delito de furto que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 25?” Para, ao final, decidir que a condenação do rapaz é ausente de justa causa.

Na ocasião, o ministro ressaltou que o STF, quando se trata de crime que envolve tráfico de entorpecentes, “tem assinalado que a pequena quantidade de substância tóxica apreendida em poder do agente não afeta nem exclui o relevo jurídico-penal do comportamento transgressor do ordenamento jurídico, por entender inaplicável, em tais casos, o princípio da insignificância”.

E concluiu que, como o caso em exame não se enquadra nessa hipótese e se resume “a simples delito de furto de um bem cujo valor é inferior a 10% do vigente salário mínimo”, deve-se aplicar o também conhecido como princípio da bagatela.

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