Sob nova direção

Veja discurso de posse de Cezar Britto na presidência da OAB

Autor

1 de fevereiro de 2007, 20h31

O novo presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, criticou os chamados administradores da Justiça — advogados, juízes e promotores. Em seu discurso de posse na entidade, nesta quinta-feira (1/2) Britto sustentou que “não podemos ficar mudos, dormentes e cegos para a triste realidade que vive o Brasil. Não podemos mais deixar de reconhecer a nossa surdez aos apelos da sociedade. Não podemos mais recusar o mandato que nos faz defensores do Direito e da Justiça.” Ele assumiu o lugar deixado por Roberto Busato.

Cezar Britto defendeu que os administradores da Justiça não podem continuar “vivendo como habitantes privilegiados e voluntários de um mundo encantado, distante e fictício”. “Estamos falhando no cumprimento da nossa missão constitucional. Não assumimos integralmente nosso papel político e não estamos fazendo o nosso dever de casa. Não fazemos do Poder Judiciário o que dele quer a Constituição Federal.”

Britto convocou toda a comunidade jurídica a renovar e a dinamizar a atuação do Poder Judiciário. “Eu os convido a revolucionar, a partir de nós mesmos, este poder que é fundamental para que o Brasil seja efetivamente democrático, onde a Justiça seja um bem consumido por todos.” Ele prometeu atuar energicamente no combate à morosidade processual, à impunidade e ao crime organizado.

A atuação conjunta dos pilares do Judiciário deve ser a tônica de seus três anos de gestão à frente da OAB. “Convido-os para que possamos, unidos, combater veementemente, a prática elitista que separa os cidadãos em duas categoriais, os que têm advogados e os que são obrigados a procurar justiça sozinho, desamparados, sem poder exercer integralmente o seu constitucional direito de defesa.”

Entre as prioridades de sua gestão, Cezar Britto enfatizou o combate à proliferação desenfreada de cursos jurídicos. A entidade dos advogados continuará combatendo sobretudo aqueles aprovados sem que sejam observados critérios mínimos para seu funcionamento, como a qualidade, o projeto pedagógico e o critério de necessidade social. “Os alarmantes resultados negativos das provas do Exame de Ordem denunciam os casos que atingiu violentamente o ensino jurídico, criando uma nova e perversa espécie de desigualdade entre os brasileiros.”

Veja o discurso

A todos, no bom estilo de Norberto Bobbio, as saudações igualitárias da OAB.

Não assumo sozinho o honroso cargo de presidente nacional da Ordem dos Advogados Brasil. Uma convergência de quereres toma posse, hoje, nesta tribuna. Cada querer no momento certo, cada um com o seu devido peso.

É evidente que a ousadia do querer individual correspondeu à primeira fase. Mas ele seria um nada-querer se não houvesse a reciprocidade cúmplice da Ordem dos Advogados do Brasil. Aliás, há uma frase que bem simboliza esta fantástica relação. Diz ela:

“Não basta que você queira o presidir a OAB; a OAB também precisa querer ser presidida por você”.

E o querer da OAB se fez em vários momentos, concretizou-se em diversas formas. Começou quando, convidado por Clóvis Barbosa, presidente da minha seccional, integrei o seu grupo como Conselheiro, o que mereceu o acolhimento dos advogados sergipanos, fazendo-me, apesar de um jovem calouro, o mais votado naquela eleição.

Depois, sempre com o querer altivo da advocacia sergipana, quando sucessivamente eleito Conselheiro Federal, Presidente da Seccional e Conselheiro Federal por mais três mandatos. No mesmo patamar de importância, destaco o prestígio adquirido em razão dos trabalhos dos presidentes da Seccional, dirigentes e conselheiros que me antecederam, todos contribuindo para firmar o nome da advocacia sergipana no cenário nacional, a exemplo de Carlos Britto (Ministro do STF) e José Simpliciano Fontes (Ministro do TST), ambos conselheiros federais eleitos pela terra do cacique Serigy.

O certo é que sem o querer da advocacia sergipana, consolidado na reeleição do presidente Henri Clay Andrade e do grupo que hoje conduz os destinos da minha Seccional, restaria natimorto o projeto que agora nasce.

O tempo, continuando o seu avançar, trouxe a aceitação do querer da advocacia nacional. Após o apoio da imensa maioria das seccionais, somente uma chapa concorreu à direção do Conselho Federal da OAB, transformando em quase homologação o resultado de ontem.

Sem a contribuição dos dirigentes seccionais e dos Conselheiros Federais também não haveria a posse nos exatos termos em que agora ocorre. Madre Teresa de Calcutá ensinou que “por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no mar. Mas o mar seria menor se lhe faltasse uma gota”.

A presidência, sem qualquer dúvida, estaria menor se lhe faltasse um único dirigente ou conselheiro federal da OAB.

Nesta reunião indissolúvel de quereres, não posso excluir o papel da diretoria do Conselho Federal que tive a honra de integrar como Secretário-Geral. Aquela que, sem desmerecer as demais, é considerada a mais fraterna de todas. Não seria exagero afirmar que estou presidente em conseqüência de ter estado diretor de uma gestão que dignificou a História da OAB. Uma gestão que carrega a marca registrada do combativo líder Roberto Busato.


Uma gestão que ousou combater o bom combate, destemidamente, como se espera de um advogado.

Uma gestão que tornou real a regra de que “nenhum receio de desagradar a magistrado ou qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão”.

Uma gestão tão azeitada, compartilhada e respeitada que dois de seus dirigentes ousaram continuar seguindo em frente, participando ativamente da corrida de revezamento sempre citada pelo presidente Busato ao longo do mandato.

Caso o bastão estivesse nas mãos do meu incansável amigo Aristóteles Atheniense eu também me sentiria orgulhoso e representado, pois fui testemunha de sua generosidade, honradez e compromisso com o ideário da Ordem dos Advogados do Brasil.

Também assim me sentiria se o encargo de conduzir a OAB recaísse sobre o meu filósofo-irmão Ercílio Bezerra, admirado por todos por sua lealdade, destemor e rebeldia cívica (Paciência, lucrou a OAB/TO com a sua opção).

Não ficaria descontente se o escolhido fosse o vigilante Vladimir Rossi, com a sua repetida e econômica frase “de que o dinheiro da advocacia não pode pagar este investimento”. Ainda bem que ele deixou o controle financeiro da OAB para assumir a vice-presidência, embora, perigosamente, esteja conversando demais com o novo diretor-tesoureiro.

Tenho a certeza de que a diretoria que agora assume, integrada pelos não menos combativos e amigos Vladimir Rossi, Cléa Carpi, Alberto Toron e Ophir Cavalcanti Figueiras terá na gestão que agora finda, uma estrela a nos guiar. É que não tenho qualquer dúvida da capacidade de cada um de Vossas Excelências, pois todos, sem exceção, são velhos conhecidos desta Casa. Todos integrantes da categoria dos que já fizeram a História da OAB e, portanto, pós-graduados nas funções que agora assumem.

A Ordem foi sábia quando conseguiu reunir a diversidade regional em um único querer, o querer coletivo que agora toma corpo nos nomes de Vossas Excelências.

Não posso deixar de destacar o querer da advocacia trabalhista, desde o meu mestre Ailton Daltro Martins, passando pelos colegas da ABRAT, AJUTRA, ALAL e ASSAT, que peço vênia para saudar na pessoa de Nilton Correia, que, fazendo jus ao nome, correu este Brasil continental na emocionada defesa de meu nome para assumir a presidência nacional da OAB. Estou honrado com a presença dos bravos colegas que labutam na Justiça do Trabalho, espalhados, massivamente, nas diversas salas deste Conselho, e que também empresta o advogado Ofhir Cavalcanti Figueiras, atual vice-presidente da ABRAT para a Região Norte, para a diretoria da OAB.

Também ressalto o querer dos meus colegas de escritório, da Sociedade Semear, do Jornal Cinform, dos servidores da OAB, dos dirigentes sindicais, dos trabalhadores e de todos que lutam por um mundo mais justo, igual e solidário, enfim, de todos os amigos espalhados pelo Brasil, advogados ou não, vários aqui presentes, que torceram, rezaram e sonharam comigo o sonho que agora se torna realidade.

Por fim, alguns quereres mais restritos ao Tribunal do Coração. Inicialmente o querer da minha pequena e fértil Propriá, que me orgulha com a presença do seu prefeito Paulo Britto.

Quis o destino deferir, nesta cidade banhada pelo Velho Chico, o pedido de conciliação de duas famílias, unindo-as através da benção dos meus avós (Miguel, Mariana, Britinho e Dalva). Uma sentença definitiva, a que não cabe ação rescisória ou qualquer destas questionáveis teses que revogam a coisa julgada e abalam a segurança jurídica. As teorias criadas pelo homem não poderiam anular a bela história construída pelos autores Aragão e Helena (meus pais), hoje consolidada, como bons nordestinos, em oito filhos, sete agregados e vinte e dois netos (salvo pelos netos, todos reunidos nesta solenidade).

Mas não se pode falar em jurisdição amorosa sem mencionar o querer da comarca de Aracaju, a cidade que me acolheu como filho e que me faz orgulhoso com a presença do seu prefeito Edvaldo Nogueira e tantos outros amigos aqui reunidos.

Aracaju é, também, a cidade que fez nascer em mim outro amor definitivo, irrevogável e inimigo de qualquer medida anulatória. Nada (Marluce) abalará, mesmo a momentânea transferência para a jurisdição de Brasília, os quereres e sonhares que construímos nestes vinte e sete anos de vida absolutamente comum, corporificada nos nossos fantásticos filhos Diego, Manuela, Gabriella e Ruan.

Como se vê, não estou presidente sozinho. A presidência que está sendo empossada não passa de um somatório de quereres, com muitos pais assumidos, cada um trazendo para a OAB suas próprias características, fazendo nascer uma espécie de DNA diferente e em mutação permanente. Cada um tão importante quanto o outro, como se fossem veias e artérias que se interligam e dão vida a um único e pulsante corpo.


Presidente honorário vitalício Roberto Busato,

Tenho plena consciência de que não é tarefa fácil presidir a Casa da Cidadania, ainda mais depois da peregrinação de Vossa Excelência pelo Brasil continental. Percebi, tão-logo anunciada a possibilidade de uma candidatura única, o peso de representar uma entidade cuja História se confunde com a História do Brasil. Uma História construída com destemor, sangue derramado, rebeldia, indignação, resistência, inovação, solidariedade, firmeza e esperança.

Destemor, quando enfrentou os períodos de arbítrio, exigiu o fim das torturas, a volta do habeas corpus, o estabelecimento da anistia, eleições diretas e a convocação da Assembléia Nacional Constituinte.

Sangue derramado, a exemplo de Lyda Monteiro, finalmente reconhecida como vítima da cruel Ditadura Militar que desonrou o Brasil.

Rebeldia, quando saiu à ruas, junto com os jovens caras-pintadas, exigindo o impeachment que corretamente afastou o ex-Presidente Fernando Collor de Mello.

Indignação, quando denunciou o desmonte do Estado brasileiro, através de um processo de privatização cercado de segredos e CPI’s arquivadas.

Resistência, quando condenou toda e qualquer forma de concentração de poder, a exemplo das medidas provisórias, que tanto encantam o Poder Executivo; o poder de arquivar CPIs dos presidentes do Poder Legislativo, que tanto desencantam a sociedade; e as súmulas vinculantes que fossilizam o Judiciário.

Inovação, quando lutou para criar o Conselho Nacional de Justiça, combater o nepotismo e a sua absurda idéia de que somente os nascidos em berço juridicamente esplêndido podem ocupar cargos públicos – idéia que, diga-se de passagem, ainda persiste nos Poderes Executivo e Legislativo.

Solidariedade, quando acredita que somente respeitando os direitos humanos é possível fazer nascer um novo mundo, mais fraterno, justo e igual.

Firmeza, quando apoiou as investigações contra aqueles que trocaram a política pela politicagem e fizeram incluir no vocabulário do brasileiro palavras como mensaleiro, sanguessuga e valerioduto, todas, significando o que Chico Buarque traduziu por “subtrair a pátria-mãe em tenebrosas transações”.

E, finalmente, esperança, quando ainda acredita que é possível avançar, mudar e crescer sem perder o rumo da ética. A esperança de quem contribuiu e continuará contribuindo para fazer do Brasil um país melhor.

A esperança de quem efetivamente espera, em estado de alerta, a aprovação de uma profunda Reforma Política, o divisor de águas a pautar os próximos anos da Republica, deixando no passado a Política de Cooptação que tanto mal fez ao país.

Meus Conselheiros, MHV e dirigentes da OAB,

É evidente que o iniciar de mais uma jornada desperta dúvidas, curiosidade e expectativas sobre os caminhos a serem percorridos. Perguntas surgem, respostas são cobradas. Qual a OAB que se desenhará nos próximos três anos? O que ela quer dos futuros dirigentes? Quais desafios ela colocará à disposição do advogado que conduzirá o bastão agora transmitido?

Não sei o que se nos reserva para o futuro. Não sei o que será do mundo no próximo triênio. Ainda que queira, não tenho o dom da profecia. Não posso antecipar o amanhã.

Cabe-me, tão-somente, como cidadão-advogado, trazer para a OAB as coisas que aprendi, assim como cada um de nós certamente fará durante o caminhar da gestão.

Cabe-me, também, tornar real a proposta que enviei durante a fase inicial da campanha. Cabe-me, ainda, nesta noite, registrar um pouco do que a vida me ensinou, para que se compreenda o que, conjuntamente, poderemos ensinar e fazer para transformar o Brasil num país mais ético, justo e democrático.

Aviso-lhes, então, que trago no meu bornal a experiência de quem conviveu, advogou e defendeu aqueles que “não tinham, mas tinham que ter para dar”, no meu português djavaniano.

Carrego na minha bagagem lições não ensinadas nos bancos acadêmicos, a exemplo das histórias dos que são proibidos de entrar nas construções por eles próprios edificadas; dos que moram em casas engraçadas, sem teto, sem nada; dos que passam fome trabalhando em grandes plantações; dos que ainda morrem de “morte severina” e dos que “não querem só comida”, assistencialismo e “pela metade”.

Porto na minha valise, não arma de fogo, mas o desejo obstinado de fazer da Justiça uma palavra conhecida e pronunciada por todos os cidadãos brasileiros, independentemente de cor, raça, gênero, trabalho, berço ou local do nascimento.

Mas “por ser de lá, do Sertão lá do Cerrado, lá do interior do mato, da caatinga do roçado”, trago no meu “matulão” uma história que devemos fazer passado e que tem como enredo, seguindo narração de Dominguinhos e Gilberto Gil, um personagem que “quase não sai, quase não tem amigos, quase não consegue ficar na cidade sem viver contrariado (…), rês desgarrada nessa multidão boiada caminhando a esmo”.


Esse personagem está corporificado na mulher sertaneja. Essa mulher que todo dia acorda junto com o sol que lhe castigará a face. Que caminha léguas em busca de um pote d`água, proibida de retirá-la do poço que um vizinho do governo construiu sem gastar um tostão; sem ser percebida pelos carros-pipas que passam, aceleradamente, trazendo água de um abandonado rio que resiste um pouco mais adiante.

Sobra-lhe, no cair da noite, escondida dos filhos, conformada pela fé, o consolo do lamento. O lamento de quem nada pode fazer.

O lamento que Fernando Pessoa batizou de “universal”, que “aflora no teu ser”, que “só tem de ti a voz e o momento, que o fez em tua voz aparecer”.

O mesmo lamento que rasga os seios das mães dos meninos carvoeiros do Pará, dos bóias-frias paulistas, dos alagados pernambucanos, das favelas cariocas, das ocas amazonenses, das pedreiras catarinenses, das crianças prostituídas, das mulheres violentadas, da infância roubada. Um lamento “ensurdecedor”, que, na canção de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro – “Canto das Três Raças” – “ecoa pelos ares, desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou”.

Advogadas e advogados, magistrados e membros do Ministério Público,

Pertencemos àquele pequeno grupo destinatário dos lamentos aqui narrados. Somos nós as autoridades que detêm a exclusiva função constitucional de administrar a Justiça e zelar, como guardião supremo, pelo postulado do Estado Democrático de Direito.

Somos nós os encarregados da punibilidade dos que desviam as verbas públicas, dos que se apropriam dos sonhos de igualdade, dos que se alimentam da fome alheia, dos que abusam do poder econômico, dos que fazem tráfico de influência, dos que viciam a vontade das urnas, dos que zombam da Justiça.

Somos nós, integrantes e responsáveis pela administração do Poder Judiciário, os encarregados de fazer do Brasil um país que “assegura o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, como expresso já no preâmbulo da Constituição Federal.

Não somos, portanto, responsáveis comuns, destes que temporariamente são avaliados e submetidos à aceitação popular através da legitimidade das urnas.

Não! Dentre nós, encontram-se aqueles que, com as salvaguardas da vitaliciedade, da inamovibilidade e da irredutibilidade de subsídios são, por expressa vontade constitucional, os servidores públicos mais preparados para ouvir e dar efetividade aos lamentos que teimam ecoar pelo Brasil.

Somos nós, em resumo, os encarregados de superar o paradoxo certa vez apontado pelo presidente honorário vitalício Hermann Assis Baeta, ao afirmar que a partir da promulgação do texto constitucional de 1988 “o Brasil, no campo social, dispõe de uma Constituição das mais avançadas, senão a mais avançada do planeta, na qual o Judiciário foi dotado de amplos poderes, diante de uma sociedade em permanente conflito, integrada por camadas sociais majoritárias ainda marginalizadas da efetiva distribuição de Justiça”.

E não há nada mais contraditório do que se gabar de possuir uma Constituição avançada e cidadã, não guardando o mesmo ardor quando para torná-la efetivamente real. Talvez seja até apropriado chamar de hipocrisia o faz-de-conta do arcabouço jurídico brasileiro.

Não tenho dúvida de que para superar esta contradição histórica devemos reconhecer que nós, integrantes do Poder Judiciário e administradores da Justiça, estamos falhando no cumprimento da nossa missão constitucional. Não assumimos integralmente o nosso papel político. Não estamos fazendo o nosso dever de casa. Não fazemos do Poder Judiciário o que dele quer a Constituição Federal.

É preciso, para superar esses obstáculos, coragem e determinação.

É necessário, acima de tudo, que reconheçamos os nossos erros. Reconheçamos que nem todos estão sintonizados com o querer constitucional e com a importância do Poder Judiciário na consolidação do Estado Democrático de Direito.

Devemos reconhecer que alguns de nós, advogados, querem se tornar sócios-proprietários das causas que defendem; apropriam-se dos valores recebidos, recusam-se ao dever de prestação de contas, montam verdadeiras estruturas de lobbies junto a magistrados, usam o tráfico de influência como principal argumento de defesa, vendem facilidades que não possuem (v. Pertence) e, sobretudo, comprometem a importância do exemplo ético para o exercício da advocacia.

Nesse campo, temos que admitir que alguns de nós, dirigentes da OAB, somos permissivos com os desvios éticos dos “delinqüentes que se travestem de advogados” ( usando a boa frase do PHV Roberto Busato), não instaurando processos disciplinares ou, o que é igualmente grave, permitindo que eles morram na perversa cama da prescrição.


É preciso tornar público que alguns de nós, advogados, se acovardam diante do primeiro gesto autoritário que faz sufocar o direito de defesa; preferem adotar a cômoda postura da subserviência aduladora, abandonando os clientes para conservar privilégios, transferindo para a OAB um ônus que inicialmente é seu, esquecendo, propositadamente, que resistir é mais que preciso.

É urgente admitir que alguns de nós, advogados públicos, no afã de agradar o dirigente de plantão, invertem a nobre missão institucional que lhes cabe, trocando a defesa do Estado, quando vítima da corrupção e incompetência administrativa, pelo desrespeito ao cidadão que teve a má-sorte de demandar em face do interesse do Poder Público.

Trocam-se, nesses casos, as ações que possibilitariam a recuperação dos recursos públicos por teses jurídicas que se destinam a eternizar o processo. Condena-se, nesse desvio de foco, o cidadão à pena da desesperança; muitos morrem, frustrados, a suspirar pela prestação jurisdicional que não chegou. Absolve-se, por antecipação, os que causam dano ao patrimônio público. Agem, portanto, como advogados dos interesses protelatórios dos governantes, jamais como advogados do Estado.

Temos que reconhecer que alguns de nós, magistrados – e falo apenas de alguns, não da maioria -, tornam real a observação crítica do saudoso ministro do STF Aliomar Baleeiro, quando afirmou que “Reforma do Judiciário proposta pelo próprio Judiciário somente resultaria em projetos que diminuíssem o trabalho e aumentassem os vencimentos”; por isso ficam a criar penduricalhos destinados a ultrapassar o teto constitucional, a insistir nas férias coletivas, a criar cargos em comissão para beneficiar amigos e favorecer o transnepotismo, e, enquanto isso, demoram meses para julgar um simples mandado de segurança ou habeas corpus.

É necessário reconhecermos que alguns de nós, magistrados, enxergam no direito de defesa do cidadão uma aberração jurídica. Por isso mesmo não recebem advogados, armam cancelos impeditivos da ação profissional, legalizam grampos e invasões de escritórios, fixam honorários em valores aviltantes, como se quisessem passe livre para que suas decisões se transformem em editos imperiais, intocáveis e sacros.

Temos que reconhecer que alguns de nós, magistrados, se isolam em redomas de vidro, não interagindo com os cidadãos, não residindo nas comarcas, não conhecendo a alma da cidade, transformando as comarcas do interior em mero rito de passagem, ansiosos para fixar o seu labor na capital do Estado.

Temos que admitir que alguns de nós, membros do Ministério do Público, concentram o seu mister constitucional na tarefa de arquivar os procedimentos e pedidos de investigação dos crimes praticados por aqueles que fazem particular o patrimônio público, fazendo da “auto-mordaça” uma triste realidade, não raro objetivando conservar privilégios ou conquistar favores dos governantes não investigados.

Da mesma forma, ocorre quando alguns de nós, membros do Ministério do Público, buscando a fama célere de quinze minutos nos jornais nacionais, denunciam, instruem e condenam, antes mesmo da instauração de um processo, cidadãos inocentes, prejulgando condutas e aplicando condenações morais irrevogáveis.

Aliás, alguns de nós, membros do Ministério Público, deslumbrados com os novos poderes constitucionais, acreditam que atingiram a magnitude da santidade. Por isso, não raramente, atacam a advocacia, querem controlar a OAB, exigem dos outros uma ética que não possuem, vez que também praticaram o nepotismo e o transnepotismo e brigam, ardorosamente, para fugir do teto fixado para a carreira.

Muitos de nós, advogados, magistrados e membros do Ministério Público, nos conformamos com a ação nefasta dessa ruidosa minoria que tanto mal causa ao Brasil, impedindo-o de viver plenamente o Estado Democrático de Direito.

Portanto, é hora de compreendermos que a nossa resistência é pequena. Que não podemos continuar vivendo como se habitantes privilegiados e voluntários de um mundo encantado, distante e fictício, como aquele criado na Índia para o Príncipe Sidarta, onde não se permitia testemunhar as carências e sofrimentos do mundo externo, onde tudo era riqueza, prazeres e diversões.

Nós, integrantes e administradores da Justiça, temos que admitir, como fez Buda ao fugir da Cidade Encantada, que a redoma de vidro em que vivemos tem que ser arrebentada. Não podemos ficar mudos, dormentes e cegos para a triste realidade que vive o Brasil. Não podemos mais deixar de reconhecer a nossa surdez aos apelos da sociedade. Não podemos mais recusar o mandato que nos faz defensores do direito e da Justiça.

Certa vez o grande Luiz Vaz de Camões indagou:

“Quanto tempo, olhos meus, com tal lamento vos hei-de ver tão tristes e agravados?


Não bastam meus suspiros inflamados, que sempre em mim renovam seu tormento?”

Hoje, séculos depois, devemos responder a esta interrogação com mais ousadia. Quando o olhar do cidadão fica, como diz outra canção popular, “nesse mundo assim, vendo esse filme passar, assistindo ao fim, vendo o seu tempo passar”, ele renuncia, voluntariamente ou não, a fazer avançar a humanidade.

Mas quando a omissão parte dos incumbidos de administrar e distribuir Justiça, além da quebra do dever moral, viola-se um dever legal.

Os suspiros inflamados e lamentos são para aqueles que nada podem fazer. No entanto, para nós, encarregados da Justiça no Brasil, este lamento é sinônimo de grave omissão.

O Poder Judiciário não precisa ficar, no bom cantar de Bob Dylan, “levando anos fingindo que não vê, esperando que a resposta venha, soprada no vento, soprada no vento”.

Colegas do Conselho, minhas senhoras, meus senhores,

Eu os convido para que, junto com os colegas magistrados e Membros do Ministério Público, ousemos fazer a nossa parte. Eu os convido a sermos o sopro de um novo e mais atuante Poder Judiciário. Eu os convido a revolucionar, a partir de nós mesmos, este poder que é fundamental para que o Brasil seja efetivamente democrático, onde a Justiça seja um bem consumido por todos.

É o que recentemente fizemos, quando, apesar de alguns, conseguimos acabar com a nefasta prática do nepotismo. A ação conjunta, nestes três anos, será uma das tônicas da gestão que ora se inicia.

Convido-os para que possamos combater a morosidade processual, a impunidade e o crime organizado. Nesse sentido, anuncio que a Diretoria que agora assume, já nos seus primeiros atos, determinou a criação de duas comissões especiais.

A primeira apresentará a contribuição da advocacia no sentindo de tornar o Poder Judiciário mais célere e eficaz, inclusive com a apresentação de propostas no campo legislativo.

A segunda permitirá a inserção dos advogados no combate ao crime organizado, colaborando para que o Estado brasileiro assuma o seu papel de promover a segurança pública, sem permitir, no entanto, que se estabeleça no Brasil o Estado Policial ou a privatização da polícia através de milícias, ambos especialistas em desrespeitar os direitos humanos.

Convido-os para que possamos, unidos, combater, veementemente, a prática elitista que separa os cidadãos em duas categorias, os que têm advogados e os que são obrigados a procurar justiça sozinhos, desamparados, sem poder exercer integralmente o seu constitucional direito de defesa.

Falo especialmente da idéia que inspira os que defendem o jus postulandi das partes na Justiça do Trabalho e juizados especiais, pouco importando o desequilíbrio processual e a desigualdade jurídica e econômica.

Falo da cômoda e preconceituosa política de transferir para os cidadãos a responsabilidade que é do Estado. É do Estado a tarefa de garantir o acesso à Justiça. É do Estado, através das defensorias públicas, a missão de assistir ao mais necessitado. Basta de obrigar o cidadão a procurar justiça com as próprias mãos, assumindo diretamente o seu direito de defesa, enfrentando, sozinho, do outro lado processual, os grandes fregueses dos juizados especiais (bancos e grandes concessionárias de serviços públicos).

Como se vê, as Comissões de Acesso à Justiça e da Advocacia Pública têm muito a contribuir e a atuar.

Os futuros integrantes da Comissão da Advocacia Pública, assim como os advogados públicos, terão a dura tarefa de lutar, com o apoio integral da OAB, para conquistar a necessária independência funcional, evitando que se transformem em advogados dos governantes – e não do Estado e da cidadania.

É hora, inclusive, de cobrarmos mais súmulas administrativas, acabando com os esqueletos jurídicos que dormem insepultos nos arquivos do Poder Judiciário, servindo tão-somente para assustar o já intimidado cidadão brasileiro e espalhar pelo território nacional o terror do calote da dívida pública e o obscuro mercado da compra de precatórios.

Convido-os, junto com os parlamentares aqui presentes, a incluir na agenda política nacional o direito de defesa do cidadão como fundamental para implantar no Brasil algo que transcende até o próprio conceito de Estado Democrático de Direito – e que chamo de Estado Democrático de Justiça, pois expressa a materialização do Direito.

E não há dano maior para a Democracia do que apequenar, impedir, desqualificar e calar o profissional encarregado de ouvir os reclamos dos que têm fome de Justiça.

Tornar criminosa a ação de quem atenta contra do direito de defesa é indispensável num país que quer ser efetivamente “para todos”. A Comissão de Defesa e Valorização da Advocacia, comandada pelo bravo Alberto Zacarias Toron, não descansará enquanto a advocacia não for efetivamente respeitada neste país ainda tão injusto, tão desigual.


Conclamo a todos para que possamos, cada vez mais, fortalecer os mecanismos de participação da sociedade no destino da nação, aperfeiçoando e estimulando para que façam parte da realidade política – e não apenas do discurso normativo – instrumentos republicados como o referendo, o plebiscito e as leis de iniciativa popular.

Defendendo medidas como a fidelidade partidária, a transparência nos gastos eleitorais, a agilidade na punição dos que viciaram a vontade das urnas e o recall, instrumento em o que o povo – o Soberano – pode cassar o mandato daquele que se mostrar antiético no curso do mandato.

Não tenham dúvida, a OAB participará e cobrará a necessária Reforma Política. Fábio Konder Comparato, ainda temos muito a fazer para que a democracia participativa seja uma das faces mais visíveis da República brasileira.

E por falar em participação popular, aprofundaremos, junto com o segmento social, a participação da OAB nos órgãos de controle social das políticas públicas. Direta ou através dos demais representante das comunidades, participaremos do planejamento, monitoramento, fiscalização, cobrança, acompanhamento e avaliação de resultados das políticas públicas.

Certamente dificultaremos, caso não consigamos impedir, a ação daqueles que se afeiçoam ao bem público, a ponto de, criminosamente, torná-lo privado.

O combate à proliferação desenfreada de cursos jurídicos, aprovados sem que sejam observados critérios mínimos para que funcionem eficazmente, a exemplo da qualidade, do projeto pedagógico e da necessidade social, merecerá atenção especial.

Os alarmantes resultados negativos das provas do Exame de Ordem, realizadas em todo o país, denunciam o caos que atingiu violentamente o ensino jurídico, criando uma nova e perversa espécie de desigualdade entre os brasileiros. De um lado, os que são beneficiários de um ensino de boa qualidade e, do outro, uma desesperada multidão de vitimas dos que transformaram a educação em uma inescrupulosa fonte de lucro.

Não podemos aceitar, passivamente, que se frustre o sonho de ascensão social através do saber, não podemos aceitar a perpetuação da desigualdade educacional. Eis porque, hoje, pela manhã, propus a ampliação dos membros da Comissão de Ensino Jurídico e da Comissão do Exame de Ordem.

Na mesma linha de fazer o dever de casa, submeti hoje ao Pleno a criação de uma Ouvidoria, instrumento fundamental para melhorar o diálogo da OAB com a advocacia e com a cidadania. Propus, ainda, a criação de uma Assessoria Jurídica Nacional, com a função de melhor organizar a defesa da OAB e os interesses da advocacia.

Concretizamos, também hoje, decisão anterior de criar três turmas destinadas à apuração das violações éticas da advocacia, aplicando a velha máxima de que o melhor argumento é o exemplo.

Senhoras e senhores,

É também evidente que o tempo, senhor absoluto da razão, fornecerá a resposta mais adequada para cada questionamento, para cada proposta aqui apresentada. O tempo, cumprindo a sua sina, esclarecerá, ao final do mandato, se pregamos a igualdade sendo iguais; se defendemos a liberdade ousando ser livres e se fomos solidários através da ação que faz realidade o discurso.

Espero, sinceramente que daqui a três anos, quando passar o bastão ao meu sucessor, tenhamos revogado a palavra “lamento” do dicionário jurídico brasileiro. Espero que seja ela trocada por uma outra, mais precisamente pelo verbo “fazer”. E com ele, possamos dizer para nós mesmos, que fizemos a nossa parte. Nós ousamos fazer um Brasil melhor.

Nesse dia, podemos até inverter uma bela sentença de Goethe (guête), para dizermos, alto e bom som, que “nada nos falta, pois não estamos em falta com nós mesmos”.

Poderemos dizer que, finalmente, o Brasil é mais que um Estado Democrático de Direito. Poderemos dizer que vivemos em um novo Brasil. O Brasil que por livre, igual e fraterno inaugurará, enfim, a era do ESTADO DEMOCRÁTICO DE JUSTIÇA.

Obrigado, e vamos ao trabalho.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!