Quarto da miséria

Critério definido em lei é insuficiente para definir pobreza

Autor

1 de fevereiro de 2007, 18h30

O Supremo Tribunal Federal está revendo os critérios para que deficientes ou idosos que não contribuiram com a Previdência tenham direito de receber pensão mensal. Pela legislação, só estão aptos a receber pensão do INSS aqueles cuja família tiver renda per capita de até um quarto do salário mínimo. Mas o STF caminha no sentido de permitir que cada caso seja analisado particularmente. Ou, quem sabe, considerar inconstitucional o critério determinado em lei ordinária.

Nesta quinta-feira (1/2), o ministro Gilmar Mendes negou liminar para o INSS. O Instituto tentava suspender decisão da Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Pernambuco. A Turma permitiu que um deficiente que possui renda mensal per capita superior a um quarto do mínimo recebesse o benefício mensal.

Para o INSS, a decisão da Turma estava afrontando o posicionamento do Supremo na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232. Nesta ação, julgada em junho de 2001, os ministros declararam constitucional dispositivo da Lei 8.742//93, que estabelece os critérios. Em abril de 2005, os ministros reafirmaram o entendimento e acrescentaram que o critério de um quarto do salário mínimo é objetivo e não pode ser conjugado com outros.

Os ventos mudaram e os novos ministros da Corte começaram a entender que é possível sim aceitar outras provas da situação de miséria do deficiente ou idoso, que não apenas o limite fixado na lei. Assim se posicionaram os ministros Celso de Mello, Carlos Britto, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Marco Aurélio. Agora, o ministro Gilmar Mendes aderiu à corrente.

Para Mendes, permitir que outros critérios sejam observados na hora de decidir quem tem direito à pensão não viola o que foi decidido pelo Supremo em 2001. O ministro explica que o STF considerou constitucional o critério fixado pela lei, mas em nenhum momento disse que qualquer outro critério seria inconstitucional.

Além disso, para Gilmar Mendes, as movimentações do Legislativo — aprovação das Leis 10.836/04 (Bolsa Família), 9.533/93 (Bolsa Escola), entre outras — indicam que o “próprio legislador tem reinterpretado o artigo 203 da Constituição da República”, que trata da concessão de assistência social.

O artigo 203 estabelece que “a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social (…)” Para o ministro Gilmar Mendes, “toda essa reinterpretarão do artigo 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do parágrafo 3º do artigo 20 da Lei 8.742/93”.

Veja o voto

MED. CAUT. EM RECLAMAÇÃO 4.374-6 PERNAMBUCO

RELATOR: MIN. GILMAR MENDES

RECLAMANTE(S): INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS

ADVOGADO(A/S): JORGE ANDRADE DE MEDEIROS

RECLAMADO(A/S): TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS DO ESTADO DE PERNAMBUCO

INTERESSADO(A/S): JOSÉ SEVERINO DO NASCIMENTO

ADVOGADO(A/S): DILMA MARIA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE

DECISÃO: Trata-se de reclamação, com pedido de medida liminar, ajuizada com fundamento no art. 102, inciso I, “l”, da Constituição Federal, e nos arts. 13 a 18 da Lei no 8.038/1990, para garantir a autoridade de decisão deste Supremo Tribunal Federal.

Na espécie, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) propõe reclamação em face de decisão proferida pela Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Estado de Pernambuco nos autos do Processo no 2005.83.20.009801-7.

O acórdão apontado como parâmetro é o relativo ao julgamento da ADI no 1.232/DF (Pleno, por maioria; Rel. Min. Ilmar Galvão, Red. para o acórdão Min. Nelson Jobim; DJ de 01.06.2001). Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do § 3o do art. 20 da Lei no 8.742/1993, que estabelece critérios para receber o benefício previsto no art. 203, inciso V, da Constituição. A inicial sustenta que a decisão reclamada afastou o requisito legal expresso na mencionada lei, o qual, segundo o acórdão tomado como parâmetro, representa requisito objetivo a ser observado para a prestação assistencial do Estado.

Com relação à urgência da pretensão cautelar, alega que várias decisões estariam sendo proferidas em desrespeito à autoridade da decisão do Supremo Tribunal Federal. Assim, ressalta o caráter pedagógico da reclamação como forma de orientar as instâncias inferiores sobre matéria já decidida nesta Corte.

Por fim, o reclamante requer, em caráter liminar, a suspensão dos efeitos da decisão reclamada, afastando-se a exigência do pagamento do benefício assistencial em descompasso com o § 3o do art. 20 da Lei no 8.742/1993, tendo em vista a inobservância do requisito renda familiar per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.


Transcrevo a ementa da decisão reclamada (fls. 68-69):

“BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. ANÁLISE DAS CONDIÇÕES SÓCIO-ECONÔMICAS DO AUTOR. REQUISITOS DO ART. 20 DA LEI 8.742/93. RENDA PER CAPITA. MEIOS DE PROVA. SÚMULA 11 DA TUN. LEI 9.533/97. COMPROVAÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.

1. O artigo 20 da Lei 8.742/93 destaca a garantia de um salário mínimo mensal às pessoas portadoras de deficiência e ao idoso com 65 anos ou mais, que comprovem, em ambas as hipóteses, não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.

2. Já o § 3o do mencionado artigo reza que, ‘considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo’.

3. Na hipótese em exame, o laudo pericial concluiu que o autor é incapaz para as atividades laborativas que necessitem de grandes ou médios esforços físicos ou que envolvam estresse emocional para a sua realização.

4. Em atenção ao laudo pericial e considerando que a verificação da incapacidade para o trabalho deve ser feita analisando-se as peculiaridades do caso concreto, percebe-se pelas informações constantes nos autos que o autor além da idade avançada, desempenha a profissão de trabalhador rural, o qual não está mais apto a exercer. Ademais, não possui instrução educacional, o que dificulta o exercício de atividades intelectuais, de modo que resta improvável sua absorção pelo mercado de trabalho, o que demonstra a sua incapacidade para a vida independente diante da sujeição à ajuda financeira de terceiros para manter sua subsistência.

5. Apesar de ter sido comprovado em audiência que a renda auferida pelo recorrido é inferior a um salário mínimo, a comprovação de renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo é dispensável quando a situação de hipossuficiência econômica é comprovada de outro modo e, no caso dos autos, ela restou demonstrada.

6. A comprovação da renda mensal não está limitada ao disposto no art. 13 do Decreto 1.744/95, não lhe sendo possível obstar o reconhecimento de outros meios probatórios em face do princípio da liberdade objetiva dos outros meios probatórios em face do princípio da liberdade objetiva dos meios de demonstração em juízo, desde que idôneos e moralmente legítimos, além de sujeitos ao contraditório e à persuasão racional do juiz na sua apreciação.

7. Assim, as provas produzidas em juízo constataram que a renda familiar do autor é inferior ao limite estabelecido na Lei, sendo idônea a fazer prova neste sentido. A partir dos depoimentos colhidos em audiência, constatou-se que o recorrido não trabalha, vivendo da ajuda de parentes e amigos.

8. Diante de tais circunstâncias, pode-se concluir pela veracidade de tal declaração de modo relativo, cuja contraprova caberia ao INSS, que se limitou à impugnação genérica.

9. Quanto à inconstitucionalidade do limite legal de renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo, a sua fixação estabelece apenas um critério objetivo para julgamento, mas que não impede o deferimento do benefício quando demonstrada a situação de hipossuficiência.

10. Se a renda familiar é inferior a ¼ do salário mínimo, a presunção de miserabilidade é absoluta, sem que isso afaste a possibilidade de tal circunstância ser provada de outro modo.

11. Ademais, a Súmula 11 da TUN dispõe que mesmo quando a renda per capita for superior àquele limite legal, não há óbices à concessão do benefício assistencial quando a miserabilidade é configurada por outros meios de prova.

12. O próprio legislador já reconheceu a hipossuficiência na hipótese de renda superior ao referido limite ao editar a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro aos Municípios que instituam programas de garantia de renda mínima associados a ações sócio-educativas, estabelecendo critério mais vantajoso para a análise da miserabilidade, qual seja, renda familiar per capita inferior a ½ salário mínimo.

13. A parte sucumbente deve arcar com o pagamento das custas e dos honorários advocatícios, ora arbitrados à razão de 10% sobre o valor da condenação.

14. Sentença mantida. Recurso a que se nega provimento.” (fls. 68-69).

Passo a decidir.

A Lei n° 8.742/93, ao regulamentar o art. 203, inciso V, da Constituição da República, estabeleceu os critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo seja concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

O primeiro critério diz respeito aos requisitos objetivos para que a pessoa seja considerada idosa ou portadora de deficiência. Define a lei como idoso o indivíduo com 70 (setenta) anos ou mais e como deficiente a pessoa incapacitada para a vida independente e para o trabalho (art. 20, caput e § 2o).


O segundo critério diz respeito à comprovação da incapacidade da família para prover a manutenção do deficiente ou idoso. Dispõe o art. 20, § 3o, da Lei n° 8.742/93, que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”.

Objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.232-1/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão (DJ 1.6.2001), tal dispositivo teve sua constitucionalidade declarada em decisão desta Corte cuja ementa possui o seguinte teor, verbis:

“CONSTITUCIONAL. IMPUGNA DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL QUE ESTABELECE O CRITÉRIO PARA RECEBER O BENEFÍCIO DO INCISO V DO ART. 203, DA CF. INEXISTE A RESTRIÇÃO ALEGADA EM FACE AO PRÓPRIO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL QUE REPORTA À LEI PARA FIXAR OS CRITÉRIOS DE GARANTIA DO BENEFÍCIO DE SALÁRIO MÍNIMO À PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA FÍSICA E AO IDOSO. ESTA LEI TRAZ HIPÓTESE OBJETIVA DE PRESTAÇÃO ASSISTENCIAL DO ESTADO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.”

Considerou o Tribunal que referido dispositivo instituiu requisito objetivo para concessão do benefício assistencial a que se refere o art. 203, inciso V, da Constituição Federal.

Desde então, o Tribunal passou a julgar procedentes as reclamações ajuizadas pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS para cassar decisões proferidas pelas instâncias jurisdicionais inferiores que concediam o benefício assistencial entendendo que o requisito definido pelo § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93 não é exaustivo e que, portanto, o estado de miserabilidade poderia ser comprovado por outros meios de prova. A questão foi amplamente debatida no julgamento da Rcl – AgR 2.303/RS, Rel. Min. Ellen Gracie (DJ 1.4.2005), na qual firmou-se o entendimento segundo o qual na decisão proferida na ADI n° 1.232 o Tribunal definiu que o critério de ¼ do salário mínimo é objetivo e não pode ser conjugado com outros fatores indicativos da miserabilidade do indivíduo e de seu grupo familiar, cabendo ao legislador, e não ao juiz na solução do caso concreto, a criação de outros requisitos para a aferição do estado de pobreza daquele que pleiteia o benefício assistencial.

O Tribunal manteve tal entendimento mesmo nas reclamações ajuizadas contra decisões que, procedendo a uma interpretação sistemática das leis sobre a matéria, concediam o benefício assistencial com base em outros critérios estabelecidos por alterações legislativas posteriores (Lei n° 10.836/2004 – Bolsa Família; Lei n° 10.689/2003 – Programa Nacional de Acesso à Alimentação; Lei n° 9.533/97 – autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas). Assim decidiu o Tribunal na Rcl n° 2.323/PR, Rel. Min. Eros Grau, DJ 20.5.2005.

Tenho observado, porém, que algumas decisões monocráticas recentes têm dado tratamento diferenciado ao tema.

Os Ministros Celso de Mello, Carlos Britto e Ricardo Lewandowski têm negado seguimento às reclamações ajuizadas pelo INSS com o fundamento de que esta via processual, como já assentado pela jurisprudência do Tribunal, não é adequada para se reexaminar o conjunto fático-probatório em que se baseou a decisão reclamada para atestar o estado de miserabilidade do indivíduo e conceder-lhe o benefício assistencial sem seguir os parâmetros do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93 (Rcl n° 4.422/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 30.6.2006; Rcl n° 4.133/RS, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 30.6.2006; Rcl n° 4.366/PE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 1.6.2006).

O Ministro Sepúlveda Pertence tem enfatizado, quando em análise de decisões que concederam o benefício com base em legislação superveniente à Lei 8.742/93, que as decisões reclamadas não têm declarado a inconstitucionalidade do § 3o do art. 20 dessa lei, mas dado interpretação a tal dispositivo em conjunto com a legislação posterior, a qual não foi objeto da ADI n° 1.232 (Rcl n° 4.280/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 30.6.2006).

Somem-se a estas as decisões do Ministro Marco Aurélio, que sempre deixou claro seu posicionamento no sentido da insuficiência dos critérios definidos pelo § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93 para fiel cumprimento do art. 203, inciso V, da Constituição (Rcl n° 4.164/RS, Rel. Min. Marco Aurélio).

Em decisão mais recente (Rcl n° 3.805/SP, DJ 18.10.2006), a Ministra Cármen Lúcia também posicionou-se sobre o assunto, em trechos dignos de nota, verbis:

“(…) O que se põe em foco nesta Reclamação é se seria possível valer-se o Reclamante deste instituto para questionar a autoridade de decisão do Supremo Tribunal, que, ao menos em princípio, não teria sido observada pelo Reclamado. A única fundamentação da Reclamação é esta: nos termos do art. 102, inc. I, alínea l, da Constituição da República, haverá de conhecer este Tribunal da reclamação ‘para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões.’

Na presente Reclamação, expõe-se que teria havido afronta à autoridade da decisão que se põe no acórdão proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232, na qual afirmou este Tribunal Supremo que “inexiste a restrição alegada em face do próprio dispositivo constitucional (art. 203, inc. V, da Constituição da República) que reporta à lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso. Esta lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado.” (Rel. Ministro Ilmar Galvão, DJ 1º.6.2001).

O exame dos votos proferidos no julgamento revela que o Supremo Tribunal apenas declarou que a norma do art. 20 e seu § 3º da Lei n. 8.742/93 não apresentava inconstitucionalidade ao definir limites gerais para o pagamento do benefício a ser assumido pelo INSS, ora Reclamante. Mas não afirmou que, no exame do caso concreto, o juiz não poderia fixar o que se fizesse mister para que a norma constitucional do art. 203, inc. V, e demais direitos fundamentais e princípios constitucionais se cumprissem rigorosa, prioritária e inescusavelmente.

Como afirmado pelo Ministro Sepúlveda Pertence no voto proferido naquele julgamento, ‘considero perfeita a inteligência dada ao dispositivo constitucional … no sentido de que o legislador deve estabelecer outras situações caracterizadoras da absoluta incapacidade de manter-se o idoso ou o deficiente físico, a fim de completar a efetivação do programa normativo de assistência contido no art. 203 da Constituição. A meu ver, isso não a faz inconstitucional. … Haverá aí inconstitucionalidade por omissão de outras hipóteses?

A meu ver, certamente sim, mas isso não encontrará remédio nesta ação direta.’ De se concluir, portanto, que o Supremo Tribunal teve por constitucional, em tese (cuidava-se de controle abstrato), a norma do art. 20 da Lei n. 8.742/93, mas não afirmou inexistirem outras situações concretas que impusessem atendimento constitucional e não subsunção àquela norma. Taxativa, nesse sentido, é a inteligência do acórdão nos termos clareados no voto do Ministro Sepúlveda Pertence, transcrito parcialmente acima.

A constitucionalidade da norma legal, assim, não significa a inconstitucionalidade dos comportamentos judiciais que, para atender, nos casos concretos, à Constituição, garantidora do princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e à obrigação estatal de prestar a assistência social ‘a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social’, tenham de definir aquele pagamento diante da constatação da necessidade da pessoa portadora de deficiência ou do idoso que não possa prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. No caso que ora se apresenta, não parece ter havido qualquer afronta, portanto, ao julgado.

Como afirma o Reclamado em suas informações (e, aliás, já se contém na decisão proferida), foram ‘…analisadas as condições fáticas demonstradas durante a instrução probatória…’ (fl. 48). Na sentença proferida nos autos daquela ação, o juízo reclamado esclareceu que: ‘No caso vertente, o estudo social realizado pela equipe técnica desta Comarca constatou (…) [que] a autora faz uso contínuo de medicamentos, e quando estes não se encontram, por qualquer motivo, disponíveis na rede pública, tem que adquiri-los…

Além disso, comprovou-se (…) que a mãe da autora, com que recebe da pensão de 1 salário mínimo deixada pelo marido, também tem que ajudar um dos filhos que também não tem boa saúde mental…’ (fl. 82). Explica, ainda, aquela autoridade que: ‘Diante deste quadro, vê-se que os rendimentos da família, face aos encargos decorrentes de medicamentos que devem ser constantemente adquiridos para o tratamento da autora, são insuficientes para esta viver condignamente.’ (fl. 82).

A pobreza extrema vem sendo definida, juridicamente, como ‘la marque d’une infériorité par rapport à um état considéré comme normal et d’une dépendance par rapport aux autres. Elle est um état d’exclusion qui implique l’aide d’autrui pour s’en sortir. Elle est surtout relative et faite d’humiliation et de privation.’ (TOURETTE, Florence. Extrême pauvreté et droits de l’homme. Paris: LGDJ, 2001, p. 4). Quer o INSS, ora Reclamante, se considere ser a definição do benefício concedido pela sentença reclamada incompatível com o quanto decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232. Não é o que se tem no caso.

Também afirma que haveria incompatibilidade entre aquela decisão e a norma do § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/93. Afirmo: e a miséria constatada pelo juiz é incompatível com a dignidade da pessoa humana, princípio garantido no art. 1º, inc. III, da Constituição da República; e a política definida a ignorar a miserabilidade de brasileiros é incompatível com os princípios postos no art. 3º e seus incisos da Constituição; e a negativa do Poder Judiciário em reconhecer, no caso concreto, a situação comprovada e as alternativas que a Constituição oferece para não deixar morrer à mingua algum brasileiro é incompatível com a garantia da jurisdição, a todos assegurada como direito fundamental (art. 5º, inc. XXXV, da Constituição da República).

Portanto, não apenas não se comprova afronta à autoridade de decisão do Supremo Tribunal na sentença proferida, como, ainda, foi exatamente para dar cumprimento à Constituição da República, de que é guarda este Tribunal, que se exarou a sentença na forma que se pode verificar até aqui. Ademais, a Reclamação não é espécie adequada para se questionar sentença na forma indicada na petição, o que haverá de ser feito, se assim entender conveniente ou necessário o Reclamante, pelas vias recursais ordinárias e não se valendo desta via excepcional para pôr em questão o que haverá de ser suprido, judicialmente, pelas instâncias recursais regularmente chamadas, se for o caso.

9. Por essas razões, casso a liminar deferida anteriormente, em sede de exame prévio, e nego seguimento à Reclamação por inexistir, na espécie, a alegada afronta à autoridade de julgado deste Supremo Tribunal Federal que pudesse ser questionada e decidida por esta via especial e acanhada, como é a da espécie eleita pelo Reclamante.(…)”


A análise dessas decisões me leva a crer que, paulatinamente, a interpretação da Lei n° 8.742/93 em face da Constituição vem sofrendo câmbios substanciais neste Tribunal.

De fato, não se pode negar que a superveniência de legislação que estabeleceu novos critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais – como a Lei n° 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei n° 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei n° 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei n° 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas; assim como o Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741/03) – está a revelar que o próprio legislador tem reinterpretado o art. 203 da Constituição da República.

Os inúmeros casos concretos que são objeto do conhecimento dos juízes e tribunais por todo o país, e chegam a este Tribunal pela via da reclamação ou do recurso extraordinário, têm demonstrado que os critérios objetivos estabelecidos pela Lei n° 8.742/93 são insuficientes para atestar que o idoso ou o deficiente não possuem meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

Constatada tal insuficiência, os juízes e tribunais nada mais têm feito do que comprovar a condição de miserabilidade do indivíduo que pleiteia o benefício por outros meios de prova. Não se declara a inconstitucionalidade do art. 20, § 3o, da Lei n° 8.742/93, mas apenas se reconhece a possibilidade de que esse parâmetro objetivo seja conjugado, no caso concreto, com outros fatores indicativos do estado de penúria do cidadão. Em alguns casos, procede-se à interpretação sistemática da legislação superveniente que estabelece critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais.

Tudo indica que – como parecem ter anunciado as recentes decisões proferidas neste Tribunal (acima citadas) – tais julgados poderiam perfeitamente se compatibilizar com o conteúdo decisório da ADI n° 1.232.

Em verdade, como ressaltou a Ministra Cármen Lúcia, “a constitucionalidade da norma legal, assim, não significa a inconstitucionalidade dos comportamentos judiciais que, para atender, nos casos concretos, à Constituição, garantidora do princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e à obrigação estatal de prestar a assistência social ‘a quem dela necessitar, independentemente da contribuição à seguridade social’, tenham de definir aquele pagamento diante da constatação da necessidade da pessoa portadora de deficiência ou do idoso que não possa prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.” (Rcl n° 3.805/SP, DJ 18.10.2006).

Portanto, mantendo-se firme o posicionamento do Tribunal em relação à constitucionalidade do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93, tal como esposado no julgamento da ADI 1.232, o mesmo não se poderia afirmar em relação ao que decidido na Rcl – AgR 2.303/RS, Rel. Min. Ellen Gracie (DJ 1.4.2005).

O Tribunal parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de 1/4 do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição.

Entendimento contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão proferida na Rcl 2.303/RS, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art. 203, inciso V, da Constituição.

A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3o do art. 20 da Lei n° 8.742/93.

Diante de todas essas perplexidades sobre o tema, é certo que o Plenário do Tribunal terá que enfrentá-lo novamente.

Ademais, o próprio caráter alimentar do benefício em referência torna injustificada a alegada urgência da pretensão cautelar em casos como este.

Ante o exposto, indefiro o pedido de medida liminar.

Dê-se vista dos autos à Procuradoria-Geral da República.

Brasília, 1o de fevereiro de 2007.

Ministro GILMAR MENDES

Relator

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!