Cerco da realidade

Dissociar o mundo prisional da realidade nacional é um erro

Autor

  • Antonio Baptista Gonçalves

    é advogado pós-doutor em Desafios en la postmodernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales pela Universidade de Santiago de Compostela pós-doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP pós-doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza.

22 de dezembro de 2007, 23h00

O mês de novembro deflagrou uma realidade que se torna, diuturnamente, mais e mais freqüente no cenário nacional: o desrespeito à própria Constituição Federal. A atrocidade demonstrada no estado do Pará apontou uma série de desmandos ao qual o argumento subseqüente tinha por condão ser ainda pior que o antecedente.

Uma jovem coabitar uma cela com mais 20 homens, por si só, já denota um problema grave de violação aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, porém o que dizer dos fatos conseguintes?

Cada autoridade tentando se justificar através de uma banalização da situação. Primeiro, o delegado, ao afirmar que não havia nada de mais em uma menina de 15 anos presa porque, na verdade, não se tratava de uma menina, mas sim, de uma mentirosa que alterou seus documentos e que os propalados 15 anos eram na verdade 19. E desde quando essa informação justifica a convivência de uma mulher com 20 homens forçosamente?

Ademais, a jovem teve de comprovar que era menor de idade, fato posteriormente confirmado pela própria família. Interessante é o quê uma menor de idade faz presa numa delegacia conjuntamente com maiores e capazes? Seria leviano afirmar que tal conduta é diametralmente oposta ao que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente?

Em continuidade a seqüência de absurdos, a própria governadora do estado assume ser comum presença de mulheres em cela de presos, não havendo uma distinção e uma proteção adequada. Apesar de a própria Polícia demonstrar a possibilidade da existência de celas para propiciar a separação de sexos.

Mas, o show de atrocidades ainda não estava completo: havia o estupro de presa. Mas como assim? Violentar meninas que convivem forçosamente com outros homens? Eles jamais fariam isso a uma mulher!

A cereja que faltava para completar a camada de chantilly do bolo construído pela administração daquele estado foi a afirmação do delegado, quando disse que a menina, na verdade, era portadora de debilidade mental. Fato desmentido no dia seguinte e que custou o emprego da autoridade “competente”.

Foram tantos os problemas que se torna difícil acreditar ser possível uma seqüência tão desastrosa dessa dura realidade de ser brasileiro.

Como o cenário não é de nenhum filme de terror de quinta categoria, o que nos resta é apontar os problemas, numa esperança de colaborar pela diminuição do caos.

O início desse artigo previa um desrespeito à Constituição e será ele válido? Será que os presos merecem ser tratados como seres humanos? Senão vejamos:

A proteção à mulher presa é flagrante:

“ Artigo 5°, da Constituição Federal

III) Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

XLI) A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.

XLVIII) Não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX; de caráter perpétuo;

de trabalhos forçados; de banimento; cruéis.

XLIX) É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

Artigo 6°, da Constituição Federal

— São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança. A previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma dessa Constituição”.

É inconcebível que ainda exista na realidade brasileira cenas como as vivenciadas com essa e outras jovens no mundo prisional. Tais atos somente podem ser viáveis se o pensamento for o da desumanidade. Porque, em verdade, o preso não é mais um ser humano, mas sim um pária e, por assim o ser, merece um tratamento degradante e cruel. A mulher presa merece ter sua carne deflagrada e sua intimidade invadida.

Ora, a que ponto chegamos? Será que o medo e a insegurança da população são tão grandes assim a ponto de pouco se importarem com os direitos humanos do próximo?

O sistema penitenciário brasileiro ser falido não é nenhuma notícia inédita que mereça a primeira página de qualquer jornal. No entanto, será que o desmazelo social não terá mais fim?

Como pretender seguir num modelo calcado na ressocialização se o quê o Estado propicia é o desenvolvimento do ódio, da vingança, da revolta?

A sociedade paga dia após dia por essas atitudes perpetradas pelos governantes. Uma jovem inocente ser assaltada num farol, um trabalhador perder sua vida num roubo ou um seqüestro que perdura por mais de 13 horas. Qual é o sentimento da sociedade frente a tudo isso? Endurecimento penal! O preso é tratado com um descaso e um desprezo crescente pela população e notícias como as veiculadas sobre essa jovem geram sensações de alívio, porque esses condenados estão pagando pelo mal que causaram.

Esse pensamento segregador e preconceituoso ecoa no imaginário nacional. No entanto, e se esses desmandos fossem praticados fora da prisão contra uma jovem desconhecida, que nunca teve convivência com o universo prisional, seria a mesma sentença?

Dissociar o mundo prisional da realidade nacional é um erro que não podemos cometer. Os problemas existem aqui e são transferidos para lá. Dentro da prisão se potencializam e o resultado, bom, este já sabemos. Mas, será justo o preso e a sociedade pagarem pelos desmazelos do Estado?

Se a resposta for afirmativa, casos como os ocorridos no Pará serão corriqueiros e a sociedade entrará num buraco negro inevitável. Por outro lado, se o entendimento for contrário, é vital apurar e responsabilizar os culpados naquele Estado. Um erro jamais justifica outro. Sistema falido é uma coisa, desrespeito e desumanidade já são outra completamente diferente. Nenhum ser humano merece ser tratado dessa forma, inocente ou culpado.

Autores

  • Brave

    é advogado, doutorando em Filosofia do Direito (PUC), mestre em Filosofia do Direito (PUC), especialista em Criminologia pelo Istituto Superiore Internazionale di Scienze Criminali, especialista em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra, pós-graduado em Direito Penal — Teoria dos Delitos (Universidade de Salamanca), pós-graduado em Direito Penal Econômico na Fundação Getúlio Vargas.

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