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O caos da aviação comercial e a Legislação aplicável

17 de dezembro de 2007, 23h00

Por Amaro Moraes e Silva Neto

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A partir de 24 de novembro de 1931, com a promulgação do Decreto 20.704, o Brasil ratificou a Convenção de Varsóvia, realizada aos 12 de outubro de 1929 — e de acordo com a Constituição Federal, os tratados internacionais devem, obrigatoriamente, ser cumpridos.

Considerando-se, por fim, que não houve qualquer limitação à sua vigência no texto do Decreto que a institucionalizou, é de se presumir que esteja em vigor.

E tudo caminhava assim, sem tribulações quanto à sua aplicação até o advento do Código de Defesa do Consumidor, quando esta questão passou a ser reavaliada em nossas Cortes de Justiça. Neste momento, se perguntava: qual a legislação a ser aplicada?

Para os defensores da aplicação da Convenção de Varsóvia seria uma heresia jurídica prevalecerem às normas do CDC sobre um tratado internacional nas relações aeroviárias.

Afinal, segundo eles, como admitir a prevalência de uma legislação de cunho geral (o CDC) sobre uma legislação especial (o Pacto de Varsóvia)? Sob esta ótica, isto significaria a subversão do ordenamento jurídico brasileiro.

Toda esta aguerrida resistência à aplicabilidade do CDC às relações contratuais entre os passageiros e as empresas aéreas repousa na mais comum das razões que norteia as ações da Humanidade: dinheiro (in casu o montante indenizatório). Isto porque, de acordo com a Convenção de Varsóvia, os valores a serem pagos a título de indenização (duzentos e cinqüenta mil francos, para os passageiros, e duzentos e cinqüenta francos por quilograma de bagagem, salvo quando houver declaração especial de “interesse na entrega”) teriam suas bases em patamares irreais, o que é um nítido desastre para o consumidor.

Quando da promulgação do CDC (que, na ocasião, foi um verdadeiro impacto jurídico no que diz respeito às relações consumeristas), num dos primeiros julgados neste sentido, o STJ conheceu e deu provimento ao Recurso Especial 58736-MG, consignando que “a lei superveniente, de caráter geral, não afeta as disposições especiais contidas em tratado. Subsistência das normas constantes da Convenção de Varsóvia sobre transporte aéreo, ainda que disponham diversamente do contido no Código de Defesa do Consumidor”. Seu relator foi o então ministro Eduardo Ribeiro.

Porém, como nenhum direito é perene — e como, outrossim, o CDC não é Lei de caráter Geral —, este entendimento foi perdendo força até ser integralmente reformado, reconhecendo-se, deste modo, o prevalecimento do Código de Defesa do Consumidor sobre o Pacto de Varsóvia.

Desde 2004, como pode ser visto, sob a ótica do STJ, a legislação a ser adotada nas relações contratuais entre os passageiros e as empresas aéreas é o CDC, eis que estas relações são nitidamente consumeristas (e em sendo deste escol não há que se falar em aplicação de uma “legislação geral” sobre uma “legislação especial”).

Como é forçoso concluir, a chamada “legislação especial” é a instituída pelo CDC, não a instituída pela Convenção de Varsóvia.

O Código de Defesa do Consumidor

O CDC é claro, objetivo e taxativo ao dispor que consumidor “é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.

Fornecedor, por sua vez, “é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.

Finalmente este codex explicita que serviço “é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

Na relação de um passageiro com uma companhia aérea, temos três elementos: consumidor (o passageiro), prestadora de serviços (as empresas aéreas) e o serviço (a viagem, o transporte).

Consoante a legislação consumerista, o consumidor tem direito à informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, à proteção contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de serviços e à efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos, entre outros direitos.

Ressalto, ainda, que é objetiva a responsabilidade do fornecedor de serviços pela reparação de danos causados por defeitos relativos à prestação dos serviços (bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos). Qual seja, o prestador de serviços responde independentemente da existência de culpa. Basta a ocorrência dos fatos.

O fornecedor também responde pela prestação de serviços impróprios, nos moldes do CDC.

O artigo 22 do CDC é claro ao dispor que as companhias aéreas, como concessionárias de serviços essenciais, além de fornecerem serviços adequados, eficientes e seguros, também deverão prezar por sua continuidade.

Ademais, as companhias aéreas, em razão do previsto pelo artigo 34, do CDC, em diversas circunstâncias, também são responsáveis pelos atos das agências de turismo vendedoras de suas passagens.

Nos casos de atraso, cancelamento de vôos, overbooking et cœtera, o passageiro poderá aceitar a remarcação para outro vôo (através da companhia aérea contratada ou outra), bem como poderá rescindir o contrato celebrado, com direito à restituição do que pagou, além de perdas e danos.

Fora isto tudo, as aéreas que infringirem as normas dispostas pelo CDC ficam sujeitas às seguintes sanções administrativas:

A) Multa

B) Suspensão do serviço prestado,

C) Revogação da concessão para operações aéreas comerciais e

D) Intervenção administrativa.

Tais sanções devem ser aplicadas pelas autoridades competentes, pontuando-se que a multa será graduada de acordo com a gravidade da infração, oscilando entre duzentas e três milhões de UFIRs (unidades ficais de referência).

Na ocorrência de infrações, se as circunstâncias desaconselharem a cassação da licença, é de se clamar a intervenção administrativa do Estado.

Como pode ser deduzido, existem diversos outros artigos do CDC que se aplicam às questões consumeristas que têm vez entre os passageiros e as companhias aéreas. No entanto, grosso modo, trouxe à colação os mais significativos, compreendidos pelos CDC.

Legislação subsidiária — o Código Civil e o Código Brasileiro de Aeronáutica

Diversos outros diplomas legais também são aplicáveis às questões que envolvem os passageiros e as companhias aéreas. Dentre estes destacam-se o Código Civil e o Código Brasileiro de Aeronáutica.

O Código Civil é aplicável, subsidiariamente, às questões consumeristas entre passageiros e as companhias aéreas, eis que norteador para as questões relativas à responsabilidade objetiva do prestador de serviços por danos morais uma vez que, de acordo com o seu artigo 927, quem causar dano a outrem, em decorrência de ato ilícito, ficará obrigado a reparar o dano, independentemente de culpa, como regulado pelos artigos 186 e 187, do vigente Código Civil.

O Código Brasileiro de Aeronáutica, por sua vez, igualmente trata da responsabilidade dos transportadores aéreos — e mais detalhadamente. Neste codex, por exemplo, estão reguladas as questões pertinentes ao transporte aéreo do passageiro e sua bagagem por parte das aéreas, além das questões relativas à responsabilidade contratual.

Os defensores da aplicação do Pacto de Varsóvia argüirão que esta Lei viola princípios internacionais. No entanto se enganam, eis que no Brasil a regra é submeter os tratados internacionais ao “teste de constitucionalidade”. Se o tratado internacional aumentar as prerrogativas do cidadão-consumidor, vale. No entanto se limitar, mobilizar ou extinguir prerrogativas, o mesmo não pode ser dito.