Caos jurídico

Relativizar a coisa julgada é eternizar os conflitos

Autor

13 de dezembro de 2007, 23h00

A comunidade jurídica tem ouvido falar com crescente freqüência numa nova e preocupante teoria que admite a relativização da coisa julgada. Significa passar a dar valor relativo a uma decisão judicial de mérito, transitada em julgado, toda vez que algum magistrado, em qualquer grau de jurisdição, entender que ela malferiu determinados princípios tidos como mais relevantes do que a própria regra constitucional que protege a coisa julgada.

Neste ponto a tese é defendida por José Delgado, atual ministro do Superior Tribunal de Justiça e reconhecidamente um estudioso do Direito. Mais recentemente a ministra Denise Arruda se alinhou ao seu colega de 1ª. Turma do STJ. Ela passou a aplicar a teoria em determinados casos concretos que chegam àquele Tribunal.

Por mais nobres que sejam os fundamentos sobre os quais se assenta a teoria, trata-se de uma temeridade jurídica, que na verdade relativiza ainda mais a segurança jurídica da sociedade, já tão vulnerada pela própria morosidade judiciária e pelos sobressaltos do Estado brasileiro em relação ao cumprimento das leis e aos contratos que assina.

Já nos primeiros anos dos cursos de Direito, ensina-se que a sentença judicial transitada em julgado é a chamada preclusão máxima e que ela faz do quadrado redondo e transforma o branco em preto ou vice-versa. Há brocardos latinos sobre isso, revelando que é princípio milenar de Direito e significando que o homem não encontrou outra fórmula de dar segurança jurídica aos litigantes em juízo.

O processo judicial possui regras rígidas que devem ser observadas pelas partes e por seus advogados. E todos agem no processo olhando para o seu final, que é a decisão de mérito, e principalmente para o seu trânsito em julgado, que é o momento em que se torna definitiva e imutável a solução do conflito.

A ação rescisória é a única exceção prevista na lei para desconstituir a decisão de mérito transitada em julgado, nas dez únicas hipóteses relacionadas no artigo 485 do Código de Processo Civil e no prazo decadencial de dois anos. Uma dessas hipóteses é a de que a sentença ou o acórdão que se pretende rescindir tenham ofendido outra decisão transitada em julgado. Daí o indicativo de que o ordenamento jurídico quis realmente blindar a regra da imutabilidade da coisa julgada.

Essa é a regra. E não apenas no Brasil, mas em quase todo o mundo.

Ora, se a própria Constituição Federal estabelece que nem mesmo a lei nova poderá abalar a força da decisão judicial transitada em julgado, não é razoável que uma teoria sustente o contrário.

O Código de Processo Civil é imperativo: “Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido” (artigo 474).

Temos a coisa julgada como um dos pilares da segurança jurídica tão reivindicada por todas as sociedades do mundo civilizado e que também é um princípio universal de Direito.

A regra é de que não se pode modificar nem inibir a eficácia do teor decisório da sentença recoberta pela autoridade da coisa julgada. A nova tese é portanto uma perigosa aventura, com toda a reverência que possa ser tributada aos seus defensores.

Cria um novo juízo revisional, inexistente no ordenamento jurídico. Atribui a esse imaginário e extraordinário juízo revisional a prerrogativa de interpretar (subjetivamente, portanto) se determinada sentença que fez coisa julgada material transgride ou não certos princípios de direito inseridos na Constituição.

Presume-se que a sentença, antes de transitar em julgado, tenha percorrido um longo caminho, tenha sido revisada mediante recursos das partes em um ou em vários graus de jurisdição, até mesmo pela Suprema Corte.

Além de todos os recursos cabíveis, temos o juízo revisional extra que é o da ação rescisória, apesar das restritas hipóteses de seu cabimento. Mas é mais um juízo revisional, que poderá ou não desfazer a sentença. Fora dessas hipóteses a sentença faz lei entre as partes.

A teoria que admite a relativização da coisa julgada abala um dos mais sólidos fenômenos processuais expressados no artigo 467 do código de processo civil (“Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”).

Não se trata de afirmar que a sentença passada em julgado é ou foi a decisão mais acertada sobre o fato social submetido ao judiciário. Os juízes são homens como quaisquer outros e também podem errar. Um conhecido e respeitado jurista, ex-ministro do STF, costuma dizer que a diferença entre os juízes de primeiro grau e os ministros do STF é que estes têm a prerrogativa de errar por último.

Portanto, não se trata de se debater sobre erro ou de acerto da sentença ou do acórdão, pois isso é assunto para os recursos e diz respeito ao convencimento pessoal dos magistrados, mas sim de dar segurança jurídica à sociedade. A se admitir a relativização da coisa julgada com fundamento em dois princípios, teremos apenas o início de um processo que poderá resultar na relativização da mesma coisa julgada por tantos princípios quantos forem sendo acrescentados à arriscada teoria.

Será a eternização dos conflitos e, portanto, a mais completa insegurança jurídica.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!