Síndrome de Fitzcarraldo

Títulos antigos emitidos pela União são ativos estratégicos

Autor

  • Uarian Ferreira

    é advogado titular do escritório Uarian Ferreira Advogados Associados SS pesquisador e estudioso da utilização de títulos antigos.

12 de dezembro de 2007, 23h00

Documentos e objetos antigos possuem valor estratégico. Se não guardam riqueza e fortuna, são sempre fragmentos de memória e história, testemunhos de época e exercícios permanentes de conhecimento, cultura e reflexão.

Emergente sem risco, o Brasil é a bola da vez. Sem saúva e sem preguiça, o gigante despertou. Mas há algo no ar que lembra um pouco o roteiro de Fitzcarraldo. No filme de Werner Herzorg, que tem o mesmo nome do visionário, Fitzcarraldo compra um navio em Iquitos, sobe o Amazonas, entra no rio Pachitea e, com a ajuda de centenas de nativos, depois de um descomunal trabalho de arrastar esse navio pela montanha que dividia os dois rios, coloca a embarcação às margens do Ucayaly.

Na visão de Fitzcarraldo, o navio no Ucayaly era a redenção econômica, o acesso a milhões de hectares de seringueiras ainda não dominadas pelos barões da borracha. Fitzcarraldo, porém, não contava com a visão dos nativos, que imaginaram na grande embarcação e no sacrifício do trabalho extenuante na montanha, a forma de expiar suas dívidas agradando aos espíritos que habitavam a Cachoeira do Pongo, pelo massacre infligido anos antes a um grupo de exploradores.

Resumo: na ressaca da comemoração do grande feito, os nativos cortam as amarras, a grande embarcação desce o Ucayaly, despenca na Cachoeira do Pongo, agrada aos Espíritos e novamente encontra as águas do Amazonas, em ponto bem abaixo de onde partira meses antes.

Ainda no rescaldo do .Grito de Independência, com um Brasil sem indústria, com um comércio exterior deficitário e a desconfiança das “nações amigas” para novos empréstimos, o Governo Imperial passou a buscar o dinheiro e a poupança das famílias que acreditavam no novo Brasil, o Brasil Imperial.

Mas foi com a Proclamação da República que efetivamente iniciou-se a corrida pelo financiamento de obras e serviços com o dinheiro tomado em empréstimo às famílias, que deveriam “agora” ajudar a

consolidar a “República dos Estados Unidos do Brazil”. Tanto no Brasil Império quanto na República, a apólice não só era equiparada, mas tinha doutrinária e monetariamente muito mais valor do que a nota, papel moeda.

Isso se reflete nas palavras e na expressão de Rui Barbosa, ministro da Fazenda de 1889 a 1891: “A apólice é renda; a nota não é; a apólice pode ter amortização, a nota não se amortiza; a apólice gira fora do país, e tem cotação nas bolsas estrangeiras; a nota não corre senão no mercado nacional; a nota falsifica-se, perde-se, anula-se; a apólice é inviolável e indestrutível; a nota não goza de privilégios; a apólice desfruta os maiores que a lei pode conferir à propriedade; a nota é um bem móvel; a apólice é equiparada aos haveres imobiliários, a apólice assenta na hipoteca dos bens do Estado; a nota não tem senão a garantia abstrata de um compromisso indeterminadamente adiado”.

A facilidade de endividamento e a avidez pelo empréstimo fácil não se restringiu ao dinheiro das famílias radicadas em solo pátrio, mas também no exterior.

Parte desses títulos jamais foi resgatada, amortizada ou teve juros pagos. Se o prazo para amortização e resgate não foi indefinidamente postergado ou vinculado a fundo de amortização centenário, a repressão, seja do Estado Novo de Getúlio, seja do regime militar de 1964, intimidou o manejo das ações dos portadores.

A ausência de liquidez determinada pelo Plano Real obrigou as empresas a buscar ativos que pudessem garantir ou quitar às ações executivas dos créditos previdenciários e tributários estaduais e federais.

Assim, em meados da década de 1990, as apólices começam a sair dos baús e milhares de ações, a brotarem na Justiça pedindo o resgate desses empréstimos ou a utilização para pagamento ou compensação de débitos tributários e previdenciários.

Bancos e governos federais, estaduais e municipais levantaram a tese de que prescritos os créditos, e o Judiciário como um todo passou a rejeitá-los, seja como pagamento, seja como garantia das execuções. As ações prosseguem e até que venha decisão final do STF a favor, na questão relativa à prescrição (STJ AgRg no Ag 616.978/RJ), os títulos do Império e as apólices federais emitidas sem cláusula de correção monetária estão teoricamente “micados”.

Se os regimes de exceção coibiram o direito de resgate dos créditos, a inflação somada de 18 dígitos ao longo dos últimos 70 anos, com 12 trocas de padrão monetário, eliminou das gerações posteriores a história e a memória do poder de compra (principal e juros) dos ativos. A desinformação passou a reinar como oportunidade de lucro ou prejuízo fácil.

Riqueza e fortuna em títulos ditos “podres” que sob a denominação de Direitos Creditórios Não-Padronizados podem se transformar em ativos estratégicos nas mãos de Fundos de Investimento. Através da Instrução CVM 444/06, o presidente Comissão de Valores Mobiliários (CVM), baixou norma sobre a constituição e o funcionamento dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios Não-Padronizados (FIDC-NP).

Segundo a instrução, considera-se não-padronizado o FIDC cuja política de investimento permita a realização de aplicações, em direitos creditórios: que estejam vencidos e pendentes de pagamento quando de sua cessão para o fundo; decorrentes de receitas públicas originárias ou derivadas da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, bem como de suas autarquias e fundações; que resultem de ações judiciais em curso, constituam seu objeto de litígio, ou tenham sido judicialmente penhorados ou dados em garantia; cuja constituição ou validade jurídica da cessão para o FIDC seja considerada um fator preponderante de risco; originados de empresas em processo de recuperação judicial ou extrajudicial; de existência futura e montante desconhecido, desde que emergentes de relações já constituídas; e de natureza diversa, não enquadráveis no disposto no inciso I do artigo 2º da Instrução CVM 356/01.

Relatório de 2006 informa que os bancos possuem R$ 313 bilhões em títulos da dívida interna e os Fundos de Investimento, R$ 480 bilhões. Isto dá uma idéia do poder de fogo dos fundos.

Está sobrando dinheiro lá fora. Aqui, milhões e milhões em precatórios, em direitos, títulos e ações contra União, estados e municípios e empresas públicas podem ser adquiridos por baixíssimos percentuais. Pagam-se preços risíveis, em relação ao valor de face, por apólice, debênture, obrigação ou título de recuperação antigo. Obrigações da Eletrobrás e Petrobrás correm de mão em mão pelo país, porque na visão dos emitentes estão prescritas.

Em 1968, durante seis meses, o Tesouro Nacional foi autorizado a substituir os títulos antigos, sem cláusula de correção monetária, por Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs).

De acordo com a Lei 4.357/64, os portadores de ORTNs estão autorizados a utilizá-los em “pagamento de qualquer tributo federal”, após decorridos 30 dias do seu prazo de resgate” e, mais, “ a qualquer tempo, poderão ser recebidas, pelo seu valor atualizado, como caução fiscal ou contratual perante quaisquer repartições ou autarquias federais”. A lei também revogou as disposições anteriores em contrários.

Em 1989, as ORTNs deixaram de existir, mas a lei “assegurou a liquidação dos títulos em circulação”. Contrariando toda esta legislação, o site do Tesouro diz que as ORTNs também estão prescritas. O fundamento é o artigo 60 da Lei 4.069/62, do governo João Goulart.

Nas mãos do cidadão brasileiro, títulos como as ORTNs ou as Obrigações da Dívida Pública Flutuante do Estado de Goiás — Série A, ambas emitidas com prazo indeterminado de resgate e cláusula textual para utilização em pagamento de tributos, não têm chance. Não podem ameaçar as relações creditícias do país. O mesmo não se pode dizer nas mãos dos fundos de investimento.

Não existem títulos podres para o Tesouro de um país que possui reservas gigantescas de petróleo e gás, quando o petróleo árabe já dá sinais de ocaso; 70% da água doce do mundo, quando já se fala que bilhões de pessoas dela serão privados nas próximas décadas; que tem a agricultura mais competitiva e, agora, tecnologia e terras em extensão para a maior produção de energia combustível limpa e renovável do mundo; a maior biodiversidade do planeta; reservas de minérios e indústria do aço na capacidade máxima de produção; o segundo maior mercado de jatos e helicópteros; o sistema bancário mais moderno; empresas, empresários e indústria competentes e o povo mais empreendedor do planeta.

A moeda podre de hoje pode ser ativo estratégico nas mãos das grandes corporações a sustentar a aquisição de comodities brasileiras que nem de longe ainda imaginamos existir, mas que daqui a 20, 30, 40 anos, serão vitais para muitos países. Nem de longe imaginem os atuais operadores do Direito de que esses títulos e precatórios que foram riqueza e fortuna de cidadãos brasileiros, nas mãos dos fundos, venham a ser cobrados no nosso Judiciário. Os países e as corporações controladoras cuidarão de fazê-lo, com muita competência, seja nas cortes internacionais, seja por outros meios eficientemente suasórios. O Estado é perpétuo e a boa-fé a matriz da segurança jurídica e da ética estatal.

Sem saúva e sem preguiça, o gigante ainda não levantou da ressaca da festa que aconteceu depois de colocar-se no Ucayaly. Dorme na embarcação sonhando com a redenção. Às margens, olhos atentos espiam e esperam a hora de cortar as amarras e agradar aos espíritos da Cachoeira do Pongo, Ucayaly abaixo.

Tornar a energia financeira representada pelo crédito dos títulos antigos em força de capitalização e incentivo para construção de novas plantas ou novos empreendimentos geradores de novos empregos e riqueza é forma de se evitar a Cachoeira do Pongo.

A criação de um fundo de desenvolvimento para atividades industriais, de natureza contábil e extra-orçamentária, com autonomia financeira e administrativa, formado por créditos oriundos dos títulos e obrigações antigas emitidos pela União e empresas públicas, de modo a capitalizar determinados setores da economia, geradores de novos empregos e receitas, pode ser uma idéia, algo a iniciar a discussão.

De muitos males ainda sofre o gigante, e espero não ver daqui alguns anos os atuais defensores da tese da prescrição serem apontados como responsáveis pelo acometimento de mais um, a “Síndrome de Fitzcarraldo”. A nota da conta a ser passada nem de longe lembrará a tristeza dos “micos” que hoje estão nas mãos dos brasileiros. Títulos podres: ativos estratégicos.

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