Cidadão comum

Veja o voto que considera Cunha Lima um cidadão comum

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10 de dezembro de 2007, 17h25

Foi o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, que abriu a divergência para que o STF mande o processo do ex-deputado Ronaldo Cunha Lima, acusado de homicídio, para o Tribunal do Júri. Marco Aurélio conduziu a corte ao entendimento de que, ao renunciar, Cunha Lima se tornou um cidadão comum e, portanto, sem direito a foro especial.

“O deputado, em ato que não é passível de questionamento, veio a renunciar. Ao tribunal cumpre tão somente constatar o fato de que não há mais ação penal contra detentor de foro e sim contra cidadão comum. Isso implica o afastamento da prerrogativa de foro”, disse o ministro. Ele lembrou que não se poderia contrariar a jurisprudência do tribunal reiterada em diversos pronunciamentos.

Para o ministro, qualquer posição em sentido contrário “pressuporia o restabelecimento da condição de deputado federal e isso não é possível”. Ele foi acompanhado pelos ministros Eros Grau, Menezes Direito, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ellen Gracie

Por sete votos a quatro, o Supremo Tribunal Federal abriu mão de sua competência para julgar o caso depois da ação ter tramitado por cinco anos na Corte. Com a decisão, a ação penal deve ser encaminha para a Vara Criminal da Justiça estadual da Paraíba e corre o risco de prescrever. Cunha Lima renunciou ao cargo de deputado cinco dias antes do julgamento da ação penal no Supremo, em 31 de outubro deste ano. Cunha Lima responde ação penal por ter tentado matar, em 1993, o ex-governador da Paraíba, Tarcísio Burity.

Veja o voto

05/12/2007

TRIBUNAL PLENO

AÇÃO PENAL 333-2 PARAÍBA

V O T O V I S T A

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Antecipei o pedido de vista ante a circunstância de o objeto da preliminar suscitada pela defesa mostrar-se contrário, de início, ao caráter linear que o Supremo tem atribuído, no correr desses últimos anos, à prerrogativa de foro, inclusive considerados acórdãos que cheguei a confeccionar.

Em síntese, em 20 de setembro de 2007, a defesa veio a articular que, em se tratando de crime doloso contra a vida, deve-se distinguir a dualidade “processar e julgar”. A competência do Supremo diria respeito à primeira fase, passando o Tribunal, assim, a atuar como órgão instrutor, como órgão sumariante.

Antes de adentrar a matéria, consigno esclarecimentos indispensáveis à revelação da verdade processual. Nem sempre este processo teve seqüência regular. Nem sempre este processo esteve sob a jurisdição do Supremo. Os fatos que embasaram a denúncia aconteceram em 5 de novembro de 1993. A peça primeira da ação penal, subscrita pelo saudoso Subprocurador-Geral da República Dr. Paulo Sollberger, foi formalizada no Superior Tribunal de Justiça em 13 de dezembro de 1993. À época, o acusado era Governador do Estado da Paraíba. Vigia sistema a condicionar o curso da ação penal à licença da Assembléia Legislativa, que foi negada, concluindo o Superior Tribunal de Justiça pelo sobrestamento do processo. Nas eleições de outubro de 1994, o acusado foi eleito Senador da República. Deu-se o deslocamento da competência para o Supremo em razão do disposto no artigo 102, inciso I, alínea “b”, da Constituição Federal. O Procurador-Geral da República ratificou a denúncia ofertada. O Senado Federal indeferiu o pedido de licença que se seguiu – Mensagem nº 342. Mediante acórdão publicado no Diário da Justiça de 30 de junho de 2000, o Tribunal decidiu pela permanência do processo na Secretaria. Com a superveniência da Emenda Constitucional nº 35, de 20 de dezembro de 2001, ficou afastado o óbice à seqüência do processo. Abriu-se vista para a defesa preliminar prevista no artigo 4º da Lei nº 8.038/1990 e no artigo 233 do Regimento Interno do Supremo, apresentada em 17 de abril de 2002. Em 29 de maio de 2002, o Procurador-Geral da República pediu o recebimento da peça acusatória, o recebimento da denúncia. O Tribunal deliberou positivamente em 4 de outubro de 2002. Foram ouvidas testemunhas por meio de carta de ordem.

Nas alegações finais, em agosto de 2007, o Ministério Público asseverou comprovados a materialidade, a autoria e o dolo próprio ao crime versado na denúncia. Em contraposição, veio à balha a tese da legítima defesa putativa, afirmando-se que o acusado teve a compreensão de que a vítima iria sacar uma arma. Buscou-se refutar a qualificadora relativa à surpresa e o reconhecimento da figura do homicídio privilegiado na forma tentada, ante a circunstância de o crime ter sido praticado após injusta provocação da vítima. Ressaltou-se não habitarem o mesmo teto o homicídio privilegiado e a qualificadora, mencionando-se haver o acusado agido sob violenta emoção, devendo ser assentado que tudo ocorreu presente o valor moral envolvido. Pleiteou-se, mais, a aplicação da pena no mínimo legal, observando-se as atenuantes do artigo 65, incisos I e III, alíneas “b” e “d”, do Código Penal – contar o acusado com mais de 70 anos na data da sentença e haver buscado mitigar as conseqüências do ato e reparar o dano bem como haver confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime.


Eis quadro a revelar que a projeção do processo no tempo não resultou do emperramento da máquina judiciária. Decorreu não só das idas e vindas sob o ângulo da competência, como também de duas negativas de licença para dar-se o curso processual – inicialmente da Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba e, a seguir, do Senado da República.

Creio estar mais tranqüilo, agora, o relator – ministro Joaquim Barbosa – no que verifica a confirmação do que disse quando alertado sobre a prescrição – que não permaneceria com a vista do processo, sem liberá-lo para julgamento, por período superior àquele que Sua Excelência levou, e foi muito curto, para estudá-lo, confeccionando relatório e voto, e remetê-lo ao revisor. Recebi o processo em 12 de novembro de 2007, devolvendo-o em 30 seguinte. Nesse interregno, honrei compromisso assumido no exterior e na condição de Presidente do Tribunal Superior Eleitoral. É mesmo difícil servir a dois senhores a um só tempo.

De qualquer forma, a prescrição sofre repercussões notando-se os fenômenos da suspensão e da interrupção, não se mostrando excepcional no que atende ao predicado segurança jurídica, muito embora em prejuízo da almejada justiça. É a opção político-legislativa, é a ordem jurídica no que visada a paz social. É o preço que se paga por viver em um Estado de Direito.

A dualidade proposta pela defesa, submetendo a órgãos diversos atos a serem praticados nesta ação e passando o Supremo a atuar como órgão processante do Tribunal do Júri, fazendo as vezes do Presidente deste último, considerado o sumário, conflita, a mais não poder, com o texto constitucional. De início, assentada a competência do Supremo, conforme dispõe o inciso I do artigo 102 da Carta, incumbe-lhe não só processar como também julgar a ação penal. A norma é abrangente e, apesar de a interpretação ser sempre um ato de vontade, descabe partir para enfoque diametralmente oposto ao que previsto, distinguindo-se onde o texto não distingue. De duas, uma: ou bem a prerrogativa de foro mitiga na inteireza maior a garantia geral do inciso XXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal – a revelar a instituição do Júri com a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida -, ou não o faz e, então, ante a natureza do crime – doloso contra a vida -, embora na forma tentada, cabe ao Tribunal do Júri o processamento e o julgamento da ação, atuando na fase primeira, tendo como limite a sentença de pronúncia, o Presidente respectivo. Mostra-se adequada a observação do princípio do terceiro excluído – princípio estabelecido há 2500 anos por Aristóteles. Entre as possibilidades contraditórias – processamento e julgamento pelo Tribunal do Júri e processamento e julgamento pelo Supremo -, não se pode chegar a uma terceira solução, processamento por este último e julgamento pelo primeiro.

Digo, então, que o caso não sugere sequer a revisão da jurisprudência do Tribunal, sedimentada em reiterados pronunciamentos. E aqui considero o que decidido pelo Plenário no Habeas Corpus nº 69.325-3/GO, nos idos de 1992. Designado redator do acórdão, assim sintetizei a óptica prevalecente:

[…] A competência do Tribunal do Júri não é absoluta. Afasta-a a própria Constituição Federal, no que prevê, em face da dignidade de certos cargos e da relevância destes para o Estado, a competência de tribunais – artigos 29, inciso VIII; 96, inciso III; 108, inciso I, alínea “a”; 105, inciso I, alínea “a”, e 102, inciso I, alíneas “b” e “c”.

Na oportunidade, também ficou consignado que a conexão e a continência – artigos 76 e 77 do Código de Processo Penal – não consubstanciam formas de fixação da competência, mas de alteração, e nem sempre resultam na unidade de julgamentos – artigos 79, incisos I e II e § 1º e § 2º, e 80 do Código de Processo Penal.

Ante o envolvimento de có-réus em crime doloso contra a vida, havendo em relação a um deles a prerrogativa de foro tal como definida constitucionalmente, concluiu o Plenário que o fato não seria suficiente a afastar, quanto ao acusado cidadão comum – sem qualificação a atrair a prerrogativa -, o disposto na alínea “d” do inciso XXXVIII do artigo 5º da Carta Federal, não se sobrepondo a norma de índole instrumental comum reveladora da continência, resultando a duplicidade de julgamento do próprio texto constitucional. Com isso simplesmente se disse que não existiria, presente a continência, a supremacia da norma instrumental considerada a de envergadura maior, a decorrente da Constituição Federal. Daí ter-se entendido que, envolvidos em crime doloso contra a vida conselheiro de Tribunal de Contas de Município e cidadão comum, biparte-se a competência, processando e julgando o primeiro o Superior Tribunal de Justiça e o segundo, o Tribunal do Júri. Registrou-se o aparente conflito entre as regras versadas nos artigos 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”, 105, inciso I, alínea “a”, da Lei Básica Federal e 76, 77 e 78 do Código de Processo Penal. Fez-se ver que a avocação do processo relativo ao có-réu despojado da prerrogativa de foro, elidindo o crivo do juiz natural que lhe é assegurado, implica constrangimento ilegal, corrigível na via do habeas corpus. A doutrina há de vir novamente a prevalecer, sopesando-se os valores em jogo.


Por qual motivo digo que a espécie não é de molde a refletir-se sobre o que até aqui assentado? A resposta é única. A competência do Supremo, na espécie, pressupõe sempre e sempre, porquanto de natureza estrita, qualificação que a atraia. No caso, seria a de deputado federal. Mas, pouco importando o momento, mesmo porque o julgamento nem fora iniciado, o então deputado federal, em ato que não é passível de questionamento, surtindo efeitos por simples manifestação de vontade, conforme pacífico, quer na vida nacional, quer, de forma específica, na doutrina e na jurisprudência, veio a renunciar.

Processo é processo pelo conteúdo próprio, não cabendo, também, à margem do Direito posto, por isto ou por aquilo, fixar critério estranho às balizas que o revelam orgânico e dinâmico. Ao Tribunal cumpre tão-somente, sob pena de transformar-se em órgão de exceção, constatar o fato, constatar que já não há ação penal dirigida contra detentor de mandato eletivo, dirigida contra deputado, mas contra cidadão comum. Do mesmo modo que o término do mandato e a ausência de reeleição implicam o afastamento da prerrogativa de foro, voltada não à proteção do cidadão, mas do mandato, do cargo ocupado, e disso ninguém duvida, tem-se a extinção ante a renúncia. Raciocínio idêntico, mostrando que a definição no caso é de mão dupla, dá-se quando há ação em curso em certo patamar do Judiciário e vem o cidadão, por vontade própria e dos eleitores, a ser eleito deputado federal. O processo, aproveitados os atos até então praticados, passa a estar alcançado pela competência do Supremo, não cabendo falar, presente certa paixão, em busca, com a candidatura, de blindagem, em busca de foro por prerrogativa de função ou cargo, mesmo porque prevalece o exercício de um direito inerente à cidadania – o de ser candidato -, tudo ocorrendo segundo a ordem natural das coisas, segundo a ordem jurídico-constitucional.

Dirão, então, que o acusado objetivou, com a renúncia, afastar a competência do Supremo. Em primeiro lugar, no campo da presunção, vinga a acolhida do que normalmente acontece e não do extravagante. Em segundo lugar, a atuação do Supremo pressuporia o restabelecimento da condição de deputado federal e isso não é possível, considerado possível vício no ato de vontade formalizado, consideradas as balizas, o objeto, até mesmo, do processo penal. É induvidoso que não se constitui em berço de ação anulatória de renúncia a mandato.

Há mais. Muito embora seja comum procurar-se a atuação do Supremo, admitamos que o fim visado tenha sido diametralmente oposto – o julgamento pelo Tribunal do Júri e, por conseqüência, retardar o julgamento. Está-se diante de processo-crime e neste surge não só a necessária defesa técnica como também a autodefesa. Por isso, rejeito a preliminar evocada em 20 de setembro de 2007, quando o acusado detinha a condição de deputado federal, e, ante a perda da qualificação, declino da competência para o Tribunal do Júri da Capital do Estado da Paraíba, preservados os atos até aqui praticados, devendo o órgão adotar as providências que entenda cabíveis, inclusive no campo da sujeição, ou não, do acusado ao veredicto dos jurados.

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