Poder único

Ministra do TC da Bolívia diz que Evo ameaça Estado de Direito

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8 de dezembro de 2007, 23h02

O Poder Judiciário da Bolívia sofre uma grave perseguição do regime do presidente Evo Morales Maya. A situação pela qual passa o Tribunal Constitucional do país é delicada, já que seus trabalhos estão suspensos. O Estado de Direito e a democracia estão sob ameaça.

O alerta não vem de um membro da oposição, mas da ministra do Tribunal Constitucional da Bolívia, Silvia Salame Farjat. Durante a IV Conferência Ibero-Americana de Justiça Constitucional, entre 28 e 30 de novembro, em Cartagena das Índias (Colômbia), a ministra fez um caloroso apelo aos colegas para que intercedam junto aos governos da América Latina e da península Ibérica no sentido de ajudarem a restabelecer o equilíbrio de poderes na Bolívia.

A ministra afirma que a Justiça “paralisada pelo atual Poder Executivo, que através de suas máximas autoridades se opôs a submeter-se às decisões do Tribunal Constitucional, optando ao contrário, por uma política intimidatória contra todo o Poder Judiciário boliviano, em especial contra o Tribunal Constitucional”.

Em seu discurso (leia íntegra abaixo, em tradução livre feita pela Consultor Jurídico), Silvia diz que o TC da Bolívia não tem atualmente quórum necessário para tomar decisões.

O tribunal é formado por cinco ministros titulares e cinco suplentes. Mas, no final de outubro, a presidente Elizabeth Iñíguez de Salinas e a decana da Casa, Martha Rojas Alvarez, renunciaram ao cargo. O motivo, afirmam, foi uma campanha de difamação pessoal e profissional levada a cabo pelo Executivo. Outros dois juízes estão licenciados por motivos de saúde.

Nesta situação, “o governo, em suas diferentes esferas de ação, poderá tomar decisões políticas ou de outra natureza que podem afetar o sistema democrático, a vigência da Constituição sem que possam ser impugnadas, enquanto não se tenha um tribunal que exerça o controle de constitucionalidade em termos imparciais e independentes”, argumenta Silvia. A ministra ressalta que, com a paralisação, os trâmites dos processos em defesa dos direitos e garantias constitucionais estão em considerável atraso.

A ministra explica que os problemas começaram em maio deste ano. Quatro ministros do TC, entre eles as duas juízas afastadas, foram acusados pelo governo de prevaricação ao agirem politicamente em uma decisão. Morales inclusive se queixou pessoalmente do tribunal, ameaçando denunciá-lo para a ONU e OEA.

Os ministros foram intimados para prestar depoimento perante o Parlamento, mas se recusaram a comparecer ao Congresso. Segundo Silvia, o regime de Evo Morales começou a se voltar contra a Corte depois da decisão do Tribunal Constitucional de destituir quatro dos 12 ministros da Corte Suprema (o equivalente ao Superior Tribunal de Justiça), nomeados pelo governo em dezembro do ano passado. O TC tinha entendido que o prazo de 90 dias, estimulado pela Constituição, tinha vencido. Novos juízes deveriam ser designados pelo Congresso.

Silvia afirma que estes são “fatos preocupantes que devem merecer um sereno, mas rigoroso exame, por provocar a paralisação do Tribunal Constitucional e com isso facilitar a tarefa de um regime, tendente ao autoritarismo, que se afasta cada vez mais das normas constitucionais para se acercar à opção totalitária”.

Importância para o Brasil

Os fatos narrados por Silvia foram amplamente divulgados pela imprensa internacional, principalmente nesta época em que a administração Morales passa por crise. O governo negocia a realização de um referendo para saber se Evo Morales continua no poder.

No entanto, a palestra torna-se um documento para balizar as decisões que envolvem a Bolívia, ao ser apresentada em um foro internacional de magistrados da Justiça constitucionalista.

Este ano, o Supremo Tribunal Federal debateu a extradição do boliviano John Axel Rivero Antelo. O julgamento foi suspendo por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, que duvidava da existência de um Estado de Direito na Bolívia.

“A minha dúvida hoje é sobre a possibilidade de se extraditar alguém para a Bolívia, tendo em vista os padrões do Estado de Direito naquele país. Há notícias na imprensa internacional da prisão de membros do Tribunal Constitucional, razão pela qual peço vista dos autos”, afirmou o ministro em maio.

Em agosto, o STF aceitou a extradição ao entender que a situação da Bolívia estava resolvida. No entanto, ficou entendido que o Brasil não pode simplesmente entregar um estrangeiro para o país onde é acusado de crime. Ao tribunal cabe vigiar para que o extraditando tenha garantido o devido processo legal no seu país de origem.

O documento de Silvia pode interferir no paradigma do Supremo sobre a extradição de bolivianos, que têm uma grande comunidade no Brasil. Agora, os fatos narrados sobre a ingerência de um poder sobre o outro não são apenas relatados pela imprensa. Trata-se de um pronunciamento oficial de um membro do TC em um encontro internacional de juízes de tribunais superiores.


“Os órgãos de controle de constitucionalidade existentes na Ibero-América não poderiam manter-se indiferentes ante o que significa um atropelo governamental e político-partidário a órgão que justamente garante o Estado de Direito, a institucionalidade da República, seu sistema democrático e o pleno exercício dos direitos fundamentais das pessoas. O Tribunal Constitucional tem, pois, nos últimos meses, um vivência clara e direta da progressiva restrição da vigência de um Estado de Direito”, apela a ministra.

Leia o discurso da ministra:

Sentenças constitucionais de recursos referentes à Corte Suprema

Silvia Salame Farjat

Magistrada do Tribunal Constitucional da Bolívia

Apresentação

Em circunstancias especiais, para não dizer adversas, o Tribunal Constitucional da Bolívia concorre a este evento, como todos os anos, com o reiterado propósito de participar junto a ilustres personalidades que representam os Tribunais, Cortes e Salas Constitucionais da Ibero-América, através dos insignes expoentes da Justiça Constitucional, com o afã de seguir assentando sólidas bases da institucionalidade democrática dos povos, da vigência plena do Estado de Direito e da proteção dos direitos fundamentais da pessoa. Quando falo em adversidade me refiro ao difícil momento que atravessa o Tribunal Constitucional da Bolívia, nos noves anos desde sua criação. Estas dificuldades circunstanciais, no entanto, não nos impedem de fazermos chegar a todos os participantes deste evento, uma saudação fraterna e respeitosa de quem estamos agora no exercício da magistratura.

Desde 1994, a Bolívia incorporou-se ao sistema de controle concentrado de constitucionalidade com a criação do Tribunal Constitucional que significou uma mudança substancial, mas necessária à administração da Justiça. Finalmente foram delimitados os âmbitos de ação da Justiça ordinária e da Justiça constitucional. A primeira vigente desde a fundação da República, e a segunda desde 1994, mas exercida realmente desde o dia 1º de junho de 1999, porque o Tribunal Constitucional instalou-se em agosto de 1998 com a posse de 10 ministros (cinco titulares e cinco suplentes) e iniciou efetivamente seus trabalhos jurisdicionais a partir de 1º de junho de 1999.

Destacamos, em conseqüência, uma premissa básica assentada pela Constituição Boliviana de 1994. Em seu artigo 166 definem-se os alcances da jurisdição ordinária e da jurisdição constitucional nos seguintes termos: “III. A faculdade de julgar na via ordinária, contenciosa e contencioso-administrativa e de fazer executar o julgado correspondente à Corte Suprema, aos tribunais e juízes respectivos, sob o princípio da unidade jurisdicional”. Ao se referir à jurisdição constitucional digo sobre o preceito que assinala: “IV. O controle de constitucionalidade se exerce pelo Tribunal Constitucional”.

O Tribunal Constitucional da Bolívia vem cumprindo essa função, há nove anos. Em relação aos atos do Legislativo pronunciando-se sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis questionadas. Em relação ao Executivo quando impondo limites constitucionais às resoluções e atos administrativos e evitando excessos. Ou ainda sobre o Poder Judiciário tratando da aplicação de seus procedimentos para que estejam enquadrados às normas constitucionais e não resultem vulneráveis direitos fundamentais das pessoas. Se tivermos de determinar melhor sobre que âmbito recai esse controle de constitucionalidade diremos que são: o normativo, no exercício ou proteção dos direitos fundamentais e o controle de competência entre os poderes do Estado.

As estatísticas justificam o cumprimento das funções do Tribunal Constitucional boliviano. As cifras dos assuntos despachados são eloqüentes e refletem um esforço excepcional do Tribunal Constitucional da Bolívia para assumir sua responsabilidade do controle constitucional: 13.500 causas despachadas até junho de 2007 são uma clara certificação deste eficaz trabalho. Por outra parte, tem incidido notavelmente na dinâmica dos diferentes recursos constitucionais e, sobretudo, na renovada concepção das instituições jurídicas que tenham a ver com a defesa da Constituição, a tutela dos direitos fundamentais e o fortalecimento do Estado de Direito e da vigência do sistema democrático.

Entre muitos, podemos assinalar alguns preceitos desta matéria:

Direito Constitucional / Direito Constitucional dos Direitos Humanos / Direitos Fundamentais / O catálogo dos Direitos Fundamentais / Direito de Liberdade Religiosa / Natureza jurídica.

1662/2003-R

Jurisprudência indicativa

“O direito da liberdade religiosa é a capacidade e faculdade que têm todas as pessoas de professar uma religião e de difundi-la de forma individual ou coletiva, assim como para celebrar cerimônias, ritos ou atos de acordo com suas próprias convicções religiosas. Segundo a doutrina, este direito compreende um amplo campo que inclui o tema do culto, o reconhecimento da personalidade jurídica das igrejas e confissões, os valores especiais de seus ritos relacionados com seus órgãos internos, as práticas e ensinamentos, as condições para acreditar na idoneidade profissional de suas autoridades e das relações com a autoridade civil.”


“Como uma espécie de direito à liberdade religiosa se pode identificar o direito à liberdade de cultos, o mesmo que segundo a doutrina é a faculdade ou o poder que tem a pessoa de exteriorizar e propagar suas crenças religiosas, assim como para celebrar cerimônias, ritos ou atos religiosos de acordo com suas próprias convicções.”

“Os direitos à liberdade de religião e à liberdade de culto, dada a sua natureza jurídica, podem ser exercidos em uma dupla dimensão: de uma parte, o poder de exercer em forma ativa uma fé ou crença sem intervenção do Estado e, de outra, o exercício passivo que consiste no direito que tem a pessoa a não ser obrigada a professar ou divulgar uma religião que não é de sua escolha. De modo que estes direitos, em seu exercício, implicam a manifestação ou exteriorização da consciência e das convicções religiosas de uma pessoa. Assim, esse exercício pode ser limitado, no marco das normas previstas pelos artigos 28 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e 7 da Constituição, respeitando o princípio da reserva legal, com a finalidade de conservar a ordem pública ou dos direitos das demais pessoas.”

Direito Constitucional / Direito Constitucional dos Direitos Humanos / Direitos Fundamentais / O catálogo dos Direitos Fundamentais / Direito da tutela jurisdicional eficaz.

1044/2003-R

SC 1044/2003-R, de 22 de julho

Jurisprudência indicativa

(..) Do conteúdo do art. 16. IV CPE, em conexão com os arts. 14 e 116. VI e X da Constituição, se extraem a garantia do devido processo, (…) do texto dos referidos preceitos constitucionais, em conexão com o art. 6.I da Constituição, se extrai a garantia da tutela jurisdicional eficaz, entendida no sentido mais amplo, dentro do contexto constitucional referido, como o direito que tem toda pessoa de acudir ante um juiz ou tribunal competente e imparcial, para fazer valer seus direitos ou pretensões, sem dilações indevidas.

Direito Constitucional / Direito Constitucional dos Direitos Humanos / Direitos Fundamentais / O catálogo dos Direitos Fundamentais / Direito à moradia, à alimentação e à vestimenta

0172/2006-R

SC 0172/2006-R, 16 de fevereiro

Jurisprudência indicativa:

“Os direitos à moradia, à alimentação e à vestimenta constituem direitos essenciais que conduzem a um nível de vida adequado porquanto asseguram o sustento diário, a habitação e a vestimenta das pessoas. A ausência destes bens básicos conduz seguramente a uma morte. A individualidade e a interdependência de todos os direitos humanos se refletem claramente no direito da moradia. Tal como têm reconhecido alguns órgãos de direitos humanos das Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde assinalou que a moradia é o fator ambiental que mais influência tem sobre as condições das doenças e do aumento da mortalidade ou morbidade.”

Controle de Constitucionalidade antes de 1994

Até a criação do Tribunal Constitucional em 1994, o controle de constitucionalidade esteve encomendado à Corte Suprema de Justiça e à jurisdição ordinária em geral. De maneira que a modalidade adaptada, sem defini-lo assim, era do sistema difuso. A Constituição de 1851 em seu art. 82 assinalava que o Poder Judiciário reside na Corte Suprema, nas Cortes Superiores e nos Julgados da República. “A eles pertencem privativamente — diz o citado art. 82 — o poder de julgar e aplicar esta Constituição com preferência às demais leis, e às leis com preferência a outras resoluções”. O texto resulta ser o precedente do princípio da supremacia constitucional enunciado agora no art. 228 da Lei Fundamental.

Hoje, em virtude das atribuições que a Constituição em seu art. 120 atribui ao Tribunal, este vem a ser o órgão jurisdicional especializado na matéria, encarregado do controle de constitucionalidade dos âmbitos a que nos referimos. A jurisprudência que vem se assentando e que tem caráter vinculante por imperativo da lei, serve para fortalecimento do Estado de Direito. Por força destas linhas jurisprudenciais foi possível de alguma maneira fazer efetivo equilíbrio dos poderes em situações conflitivas e defender os valores e princípios que sustentam a Constituição boliviana. Entretanto, este trabalho foi primeiro entorpecido e posteriormente paralisado pelo atual Poder Executivo, que através de suas máximas autoridades se opôs a submeter-se às decisões do Tribunal Constitucional. Opta ao contrário, por uma política intimidatória contra todo o Poder Judiciário boliviano, em especial contra o Tribunal Constitucional, promovendo um injustificado juízo de responsabilidades contra os magistrados do mesmo. O que ocasionou na renúncia de vários deles e a suspensão de outros, encontrando-se nesta data — reitero — paralisados os trabalhos do Tribunal Constitucional. Por isto considero imprescindível referir-me a estes fatos que levaram a Justiça constitucional boliviana à beira do abismo. Entendo que, dada a natureza e objetivos deste tipo de eventos internacionais, não somente será útil o intercambio de experiências e de conhecimentos. Mas, também que se as circunstâncias ou fatos que se desenvolvessem em um país irmão resultassem — como é este caso — atentatórios à institucionalidade, os fins de um Tribunal Constitucional, ou, o que é pior, colocam em perigo a democracia e o Estado de Direito. É lógico supor que os órgãos de controle de constitucionalidade existentes na Ibero-América não poderiam manter-se indiferentes ante o que significa um atropelo governamental e político-partidário a órgão que justamente garante o Estado de Direito, a institucionalidade da República, seu sistema democrático e o pleno exercício dos direitos fundamentais das pessoas. O Tribunal Constitucional tem, pois, nos últimos meses, uma vivência clara e direta da progressiva restrição da vigência de um Estado de Direito.


Vale a pena recordar que existem os instrumentos jurídicos internacionais aprovados desde antes da segunda metade do século XX até o presente, que são testemunho do esforço comum das nações para resguardar os valores e princípios de liberdade, igualdade e justiça social, como diz a Carta Democrática Interamericana de 11 de setembro de 2001. Documentos que configuram um sólido embasamento de unidade continental como guia inescusável do desenvolvimento democrático dos países da América. Ao ponto de darem a responsabilidade direta aos Estados membros da OEA a obrigação de respeitar o direito à democracia que tem os povos da América. Outra coisa poderá interpretar-se do claro enunciado que tem o artigo 1º do dito documento. “Os povos da América têm direito à democracia e seus governos a obrigação de promovê-la e defende-la”.

A situação apresentada na Bolívia não poderia passar, pois, despercebida neste conclave onde estão precisamente reunidos os órgãos encarregados de garantir em maior grau a institucionalidade democrática dos países da América. Acontecem no meu país fatos preocupantes que devem merecer um sereno, mas rigoroso exame, por ocasionar praticamente a paralisação do Tribunal Constitucional. E com isso facilitar a tarefa de um regime tentado pelo autoritarismo, que se afasta cada vez mais das normas constitucionais para se aproximar da opção totalitária. As nações da América e a própria comunidade internacional devem tomar consciência desta situação.

Não poderá, portanto, se ocultar o momento difícil por que passa o Tribunal Constitucional boliviano, pois a pressão do Poder Executivo, através de ações políticas disfarçadas de legalidade, terminou por neutralizar seu funcionamento de maneira que não pode cumprir com sua missão essencial, que é o controle de constitucionalidade e a proteção dos direitos fundamentos das pessoas. Pois — como disse — os magistrados estão submetidos a um processo de responsabilidade promovido pelo Poder Executivo com a evidente finalidade de desobstruir o campo e impor decisões que não podem ser impugnadas ante o órgão jurisdicional encarregado de resguardar a vigência do Estado de Direito, a divisão dos poderes públicos e o acatamento das leis.

Por isso, cumprindo uma inescusável obrigação, na qualidade de Magistrado do Tribunal Constitucional da Bolívia, trago a este foro internacional ao mesmo tempo uma informação e uma explicação sobre os deploráveis fatos que afetaram o normal funcionamento do Tribunal Constitucional do meu país, e que privou a Bolívia do órgão jurisdicional encarregado do controle de constitucionalidade. Portanto, deixando ao arbítrio do governo e das autoridades oficiais a adoção de atos e resoluções à margem da Constituição.

A origem, ou melhor o pretexto, desta crise provocada pelos círculos oficiais encontra-se na Sentença Constitucional 18/2007, de 9 de maio do presente ano, que declarou nada menos que a constitucionalidade do Decreto Supremo de 30 de dezembro de 2006 ditado pelo Poder Executivo, para nomear em caráter interino quatro ministros da Corte Suprema de Justiça, cargos que se encontravam vagos por não terem sido nomeados oportunamente pelo Poder Legislativo. No entanto, exercendo suas próprias atribuições, o Tribunal Constitucional modulou esta sentença de maneira que esse interinato somente poderia ser de noventa dias segundo disposições legais invocadas como fundamento dessa decisão. Razão que determinou a cessação dos ministros nomeados pelo Poder Executivo uma vez cumpridos os noventa dias de interinato. Ao mesmo tempo em que exortava o Legislativo a designar os Ministros de acordo com os preceitos constitucionais. Na ocasião, o Congresso Nacional procedeu a nomeação dos quatros ministros da Corte Suprema acatando a decisão do Tribunal Constitucional.

A Resolução, assim emitida pelo Tribunal Constitucional de acordo com suas atribuições, levou o atual presidente da República, Evo Morales Ayma, a promover juízo de responsabilidades contra os quatros magistrados signatários da sentença, pelo delito de prevaricação. Se bem existe uma lei que permite este processo (Lei 2.623 de 22 de dezembro de 2003), seus alcances estão dentro do âmbito político, posto que o processo está a cargo do Congresso Nacional (Deputados e Senadores), instituição eminentemente político-partidária, em que a maioria está representada agora pelo partido do governo. Ela não tinha faculdades jurisdicionais para impor sanções já que esta é uma atribuição que corresponde estritamente ao Poder Judiciário em virtude do princípio da divisão dos poderes que assinala o art. 2 da Constituição boliviana. No entanto, é fácil imaginar que o juízo instaurado desde o Palácio do Governo devia prosperar pelo menos no seu início para defrenestrar os magistrados do Tribunal Constitucional, assentar um precedente intimidatório, impor a ele futuras decisões sem controle algum de constitucionalidade, criar condições intoleráveis para o trabalho dos atuais magistrados buscando sua renúncia e, se possível, uma nova eleição de magistrados dispostos a servir e obedecer fielmente o Governo. De tal modo que o Tribunal Constitucional responda aos propósitos e interesses do partido oficial, empenhado em impor um modelo de Estado alheio aos ideais democráticos da comunidade internacional.


Neste ponto queríamos recordar o pronunciamento da Conferência Mundial dos Direitos Humanos efetuada em Viena, do dia 14 a 19 de junho de 1993: “A democracia, o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos e das liberdades fundamentais são conceitos interdependentes que se reforçam mutuamente (…). Neste contexto a promoção e proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos planos nacional e internacional devem ser universais e levadas a cabo de modo incondicional. A comunidade internacional deve apoiar o fortalecimento e a promoção da democracia, do desenvolvimento e dos respeitos dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”. E são precisamente os Tribunais Constitucionais ou outros órgãos similares, os encarregados de fazer realizar esse respeito pelos direitos fundamentais e pela vigência da democracia.

Os detalhes dos processos movidos contra os magistrados mostram o atropelo a princípios como o da presunção da inocência, do devido processo e do direito à defesa. E não foi só este processo contra os magistrados do Tribunal Constitucional boliviano (e que teve um acidentado final). Mas existem outros em andamento pela suposta prática de delitos, processos que são ativados ou paralisados de acordo com os interesses do Governo e como uma forma de chantagem permanente aos magistrados do Tribunal Constitucional, com o claro afã de eliminar definitivamente o controle de constitucionalidade da Bolívia.

A raiz destas ações que vulneraram abertamente a independência do Poder Judiciário, produziu as seguintes conseqüências preocupantes: a) o Tribunal Constitucional atualmente não tem o quórum necessário para tomar decisões, ou é tão precário que se torna difícil alcança-lo; b) dois magistrados titulares renunciaram diante da campanha difamatória governamental que chegou a extremos de atentar não apenas contra a dignidade dos profissionais, mas também da dignidade das mulheres nas pessoas da então presidente do Tribunal, Elizabeth Iñíguez de Salinas, e da decana, Martha Rojas Álvarez; c) o Governo, em suas diferentes esferas de ação, poderá tomar decisões políticas ou de outra natureza que podem afetar o sistema democrático, a vigência da Constituição sem que possam ser impugnadas enquanto não se tenha um tribunal que exerça o controle de constitucionalidade em termos de imparcialidade e independência; d) as ações apresentadas em defesa dos direitos e garantias constitucionais têm agora um atraso considerável em sua tramitação, tanto que será difícil, senão impossível restabelecer, a normal tramitação dos processos por sua extraordinária e irracional acumulação.

Esta é a síntese dos fatores adversos que enfrenta nestes tempos o Tribunal Constitucional da Bolívia, com perspectivas nada alentadoras para a democracia e o controle de constitucionalidade de meu país. Pode-se compreender assim os termos e objetivos de minha intervenção ante tão ilustre audiência a fim de que se tome consciência da grave crise não apenas do Poder Judiciário mas também da democracia na Bolívia, que corre o terrível risco de interromper-se, dando lugar a um Estado ditatorial e totalitário. Condições extremas como as que vive hoje a Bolívia merecem ser conhecidas pelos dignos delegados de Tribunais, Cortes e Salas Constitucionais da Ibero-América para que com unidade de critério analisem e adotem uma posição que irá além da solidariedade, podendo ao contrário gravitar positivamente na atitude dos governantes para que seja respeitada a independência do Poder Judiciário e da democracia boliviana, interpelando-se o Governo boliviano mediante os mecanismos internacionais existentes, para que cesse a perseguição a quem representa a Justiça constitucional, tão necessária para precaver o Estado de Direito, a vigência do Sistema Democrático e o respeito aos direitos fundamentais das pessoas.

Cartagena de Índias, Colômbia, novembro de 2007

(Tradução: Daniel Roncaglia)

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