Cobrança abusiva

Falta de limite de multa diária enseja enriquecimento ilícito

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2 de dezembro de 2007, 23h01

A legislação processual brasileira dispõe de vários meios de coerção para que a parte, condenada por obrigação de pagar, fazer ou dar coisa certa, cumpra a determinação judicial imposta por sentença ou liminar.

Como todos os dispositivos legais, estes meios decorreram da necessidade social, em virtude da péssima cultura brasileira adquirida através das décadas de que a decisão judicial deve ser cumprida somente em último caso, no último momento possível. Enquanto é só uma obrigação escrita no papel, o devedor posterga seu cumprimento. Essa cultura cresceu ainda mais nas épocas de alta inflação, em que um único mês de atraso no pagamento de uma obrigação judicial proporcionava ao devedor um bom rendimento em aplicações que pagavam mais que os juros legais e judiciais. Protelar um pagamento hoje em dia já não faz muito sentido, mas a cultura continua e as disposições legais de coerção estão à disposição.

Um dos mais utilizados meios de coerção atualmente, justamente por ser um dos mais temidos, é a multa diária, que tem como principais disposições norteadoras o artigo 461 e seguintes do Código de Processo Civil.

O instituto é válido e ainda necessário, principalmente em razão do que dito acima, ou seja, a cultural resistência ao cumprimento de ordens judiciais, o que realmente é repreensível.

No entanto, este instrumento de coerção, talvez por ter se tornado de uso ordinário, caindo na banalidade, por vezes é aplicado de forma desmedida e abusiva.

Os maiores abusos residem na grande incidência de arbitramento de multas em quantias excessivas, sem limitação de valores ou período, aplicação de juros sobre a multa e até mesmo sendo arbitradas em casos cuja hipótese não possui tal penalidade disposta na lei.

Para os casos de arbitramento em valores excessivos, a parte pode defender-se pelos meios recursais disponíveis, havendo a possibilidade de antecipação da pretensão recursal quando houver demonstração de dano irreparável ou de difícil reparação. A utilização do duplo grau de jurisdição não impede a parte de requerer, de forma fundamentada e com elementos novos, a redução do valor ao próprio juízo que estipulou a multa, como possibilita o parágrafo 6º, do artigo 461 do Código de Processo Civil.

A ausência de limitação da multa é um problema recorrente e muito grave, pois pode ensejar o enriquecimento indevido da parte favorecida, o que é amplamente vedado em nossa legislação, pois a ausência de limitação pode proporcionar um benefício pecuniário muito maior do que o provimento jurisdicional que estava sendo buscado pela parte como objeto principal da ação. Por exemplo: a parte que busca uma obrigação de fazer que possui um valor econômico de R$ 10 mil, não pode ser beneficiada com uma multa diária que, sem limitação de valor ou lapso temporal, alcance uma cifra exageradamente superior aos R$ 10 mil. Se existe a possibilidade da obrigação de fazer ser convertida em perdas e danos, não faz o menor sentido a parte credora enriquecer-se em virtude de uma multa que foi disposta em lei com o único objetivo de, coercitivamente, obrigar o devedor a cumprir sua obrigação.

Se o enriquecimento indevido é vedado pelo direito material, moral ou natural, não será a lei instrumental que lhe dará validade.

Menos freqüente, mas não menos grave, é a aplicação de multa diária nos casos em que a lei não prevê tal penalidade, a exemplo de multa diária em condenações por obrigação de pagar. Nenhum dispositivo legal permite que a obrigação de pagar quantia certa seja coercitivamente exigida por astreintes. A lei prevê outros meios executórios para que a obrigação de pagar seja resolvida e a aplicação de multa diária nestes casos é ilegal e inconstitucional.

Serve também para ilustrar a hipótese de inaplicabilidade, a ação cautelar de exibição de documentos. Atualmente o Judiciário recebeu milhares de ações tendo como objeto a diferença decorrente da alteração do índice de reajuste financeiro das cadernetas de poupança, alteração oriunda dos Planos Bresser, Verão e Collor. Muitos processos foram precedidos de ações cautelares de exibição de documentos, em que os poupadores pedem aos bancos os extratos que comprovam a titularidade e o saldo em conta na época. Em muitas dessas ações os juízes têm lançado mão da multa diária, o que se mostra equivocado, pois o artigo 359 do Código de Processo Civil prevê sanção específica para a não exibição dos documentos, de forma que a multa diária não encontra respaldo legal nesses casos, principalmente porque o objeto da ação não é a obrigação de fazer ou dar coisa certa.

Outra questão que não poderia ficar de fora dessa reflexão, apesar de não estar ligada diretamente ao tema “abuso”, seria a incidência de juros sobre a multa, geralmente aplicados no momento da execução, quando a parte credora inicia a cobrança da multa pelo descumprimento da ordem judicial.

A natureza jurídica da multa diária e dos juros de mora é a mesma: penalidade. Ambas servem como meio de desestímulo ao descumprimento da obrigação. Sendo descumprida a obrigação contratual ou judicial de pagar certa quantia, os juros de mora servem como sanção a desestimular o atraso. Esta é a mesma finalidade da aplicação da multa diária, mas direcionada às obrigações de fazer ou dar coisa certa, pois não há que se falar em juros moratórios de algo que é imensurável economicamente. No momento em que se executa a multa diária, ela não perde a sua característica de penalidade, de forma que a cumulação de outra penalidade (juros de mora) é indevida, pela ocorrência do bis in idem. Deve ser aplicada somente a correção monetária.

Sendo assim, a aplicação da multa diária é uma questão que merece muita atenção dos advogados em defesa de seus clientes, dos juízes na aplicação correta de seus preceitos e dos estudiosos do Direito em geral, para que as normas legais de Direito material e processual sejam devidamente interpretadas e corretamente aplicadas.

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