Ilegalidade contagiosa

Maurício Corrêa contesta leis contra uso do amianto

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30 de novembro de 2007, 23h01

O Brasil é uma Federação e a sua essência é o respeito à repartição de competências ditada pela Constituição Federal. Caso contrário, haveria completa bagunça legislativa, que faria ruir o sistema federativo e levaria o cidadão a ficar sempre em dúvida sobre a lei a obedecer — se a federal, a estadual ou a municipal. Haveria uma insegurança jurídica incompatível com o Estado de Direito.

Esta é a opinião do jurista Maurício Corrêa, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, ex-ministro da Justiça e patrono da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria em ações que contestam a constitucionalidade de leis estaduais que buscam proibir o uso do amianto crisotila.

O amianto crisotila, diferente do anfibólio, não oferece os riscos que levantaram os ambientalistas contra essa matéria prima. Desde que foi adotado no Brasil, não há um registro sequer de doença provocada por contaminação no seu manuseio. A intensa artilharia contra o produto, contudo, tornou a criação de leis anti-amianto uma fonte de popularidade política. Estados e municípios passaram a criar leis desencontradas.

Nesta entrevista, Maurício Corrêa destaca que a competência para legislar sobre jazidas, minas e outros recursos minerais é privativa da União, razão pela qual só a lei federal pode dispor sobre a exploração, comercialização, uso e beneficiamento do amianto crisotila, mineral extraído da mina de Cana Brava, em Goiás. E lembra que é exclusividade da União legislar sobre o comércio interestadual deste ou de qualquer produto.

Leia a entrevista:

ConJur — Seu escritório de advocacia representa a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, autora de ações diretas de inconstitucionalidade de leis estaduais que proíbem o uso local do amianto crisotila. Qual a sua expectativa para o julgamento dessas ações?

Maurício Corrêa — Penso que o julgamento definitivo está próximo de ocorrer. Em outubro de 2005 foi iniciado o julgamento da ADI 3.356, que questiona a lei de Pernambuco e, naquela oportunidade, após o voto do ministro Eros Grau julgando inconstitucional a norma estadual, pediu vista dos autos o ministro Joaquim Barbosa. Creio que, após mais de dois anos de reflexão, os membros do Tribunal, que passou recentemente por uma ampla renovação, já estão aptos a tomar uma decisão sobre o tema, confirmando, assim espero, a jurisprudência do STF, reiterada em diversos julgamentos.

Conjur — Qual é esse entendimento?

Maurício Corrêa — Vivemos em uma Federação, cuja essência implica respeito obrigatório à repartição de competências ditada pela Constituição Federal. Se assim não fosse, passaríamos a viver uma bagunça legislativa, que faria ruir o sistema federativo. O cidadão ficaria sempre numa enrascada: qual lei devo seguir, a federal, a estadual ou a municipal? Haveria uma insegurança jurídica insustentável e incompatível com o Estado de Direito. Pois bem. A competência para legislar sobre jazidas, minas e outros recursos minerais, é privativa da União. O amianto, como se sabe, é um mineral, extraído, no Brasil, exclusivamente na mina Cana Brava, em Goiás. Por aí já se vê que apenas a lei federal pode dispor sobre o tema. Mas não é só. Quando se fala em comércio interno de amianto, tem-se, necessariamente, salvo no caso de Goiás, a hipótese de comércio interestadual, cuja competência legislativa também é exclusiva da União.

ConJur — Mas e em relação à saúde?

Maurício Corrêa — Quando se trata dos temas de produção e consumo, proteção à saúde e meio ambiente, a competência principal é da União e supletiva dos estados. Dito de outro modo, quando existe lei federal disciplinando essas questões, a lei estadual apenas pode complementá-la, e não contrariá-la. O que temos em vigor é uma norma federal, a Lei 9.055/95, que, explicitamente, autoriza, em todo o Brasil, a extração, exploração e o consumo do amianto da espécie crisotila, exatamente aquele existente na mina goiana. Se assim é, não é possível ao Estado-membro editar uma lei em sentido diametralmente oposto, pois está extrapolando sua competência constitucional, além de invadir aquela reserva à União. Por isso, as leis estaduais, como de resto as municipais, que tratam da proibição do amianto crisotila, são inconstitucionais.

ConJur — Esses precedentes a que o senhor se refere são específicos?

Maurício Corrêa — Há dois julgamentos em que a identidade é absoluta. O STF, em 2002, declarou a inconstitucionalidade de uma lei do estado de Mato Grosso do Sul e outra do estado de São Paulo, ambas versando a proibição ao comércio e à utilização do amianto. Mas há outros casos semelhantes. Recentemente uma lei do Paraná vedou o uso e o comércio de produtos transgênicos no estado. Como havia uma norma federal em sentido contrário, o STF declarou a inconstitucionalidade da lei estadual, exatamente por haver extrapolado os limites de sua competência estadual.


ConJur — Pode-se dizer que para proibir o amianto só aprovando uma lei federal?

Maurício Corrêa — No contexto legislativo atualmente em vigor, sim. É correto que assim seja. Ora, essa questão é de interesse nacional, razão mais do que suficiente para justificar regulamentação por lei federal. E ela existe, autorizando a exploração e o uso do amianto crisotila. Importante observar, que essa lei não descuidou dos riscos à saúde, como determina, inclusive, o artigo 196 da Constituição. A lei, seguindo normas internacionais sobre o tema, como, por exemplo, a Convenção 162 da Organização Internacional do Trabalho-OIT, permitiu o uso seguro, controlado e responsável do amianto crisotila. A Lei 9.055/95 estabelece uma série de restrições que resguardam a saúde dos trabalhadores e dos usuários. Para alterar essa realidade, portanto, o caminho legítimo está previsto na Carta da República, na parte que cuida do processo legislativo. Os representantes do povo, após o debate plural e democrático, como deve ser, é que decidirão, se for o caso, se mantêm o uso ou o proíbe. Essa é a forma adequada para se discutir o mérito da questão, a conveniência de se manter ou não a extração e o uso do amianto no Brasil. O que não se pode aceitar é que isso se faça por via ilegítimas, como tem ocorrido com as leis locais, de manifesta inconstitucionalidade formal. Muito menos, pretender que o Poder Judiciário substitua o legislador.

ConJur — A propósito dessa última consideração do senhor, algumas entidades que defendem o banimento do amianto, ingressaram nas ações como amicus curiae e querem que o STF julgue a inconstitucionalidade da lei federal. Isso é possível?

Maurício Corrêa: Acho que não. Com o devido respeito aos que entendem de forma diversa, as ações diretas têm como objeto as leis estaduais, e não a lei federal. Esta última não está em discussão. O que se diz é que, havendo lei federal disciplinando normas gerais sobre o tema, e há, não pode o estado ditar essas mesmas normas gerais — e, sem dúvida, a autorização ou proibição sobre o consumo e a produção é uma norma geral. Portanto, o conteúdo da lei federal não está em jogo. Não cabe ao STF, pois, examinar a constitucionalidade material da norma editada pela União, pois esse exame sequer é pressuposto para a análise da alegada inconstitucionalidade formal das leis estaduais. Entender o contrário é consagrar a possibilidade da instauração, de ofício, do processo de controle abstrato de constitucionalidade das leis, o que é intolerável no atual regime. Significa, por outro lado, admitir que entes não legitimados para ação direta de inconstitucionalidade, proponham-na pela via oblíqua da intervenção de terceiros, o que da mesma forma é inaceitável. Conseqüentemente, é importante retomar o caminho da discussão posta em juízo, que é tão-somente a aferição da inconstitucionalidade formal das leis estaduais.

Conjur — Mas o Supremo Tribunal não pode fazer essa análise de direito material?

Maurício Corrêa — Nesses processos que estão pendentes de julgamento, eu entendo que não. Mas quem diz, afinal, se pode ou não, é o STF, que é interprete definitivo do sistema legislativo pátrio. Creio, porém, que não existe qualquer inconstitucionalidade na lei federal.

ConJur — Por que não?

Maurício Corrêa — É importante, de plano, desmistificar o tema. Toda espécie de generalização é ruim e perigosa. O amianto é um mineral que pode ser divido em duas grandes espécies: anfibólio e crisotila. O primeiro, proibido no Brasil pela própria Lei 9.055/95, é extremamente mais agressivo à saúde humana, e representa, de fato, um enorme risco, principalmente aos trabalhadores. Já o crisotila, conhecido como amianto branco, se utilizado com responsabilidade, como ocorre no Brasil, não oferece perigo mensurável à saúde ocupacional, e nenhum risco aos usuários dos produtos feitos à base desse mineral. Não sou eu quem diz isso, mas os especialistas. Com efeito, quando se diz que o amianto é cancerígeno, cuida-se de generalização irreal. O correto é dizer que o amianto anfibólio é cancerígeno, perigoso e não deve ser usado pelo homem; o crisotila oferece riscos infinitamente inferiores à saúde do homem, perfeitamente passíveis de controle, não sendo recomendado sua utilização irresponsável. Disso decorre que a lei federal, ao impor severas restrições à extração, fabricação e utilização do amianto crisotila e dos produtos que o contenham, atende ao comando do artigo 196 da Carta de 1988, que assegura a todos o direito à saúde, impondo ao Estado políticas que visem a redução dos riscos. É exatamente isso o que está estatuído nos artigos 3º a 11 da Lei 9.055/95.

ConJur — O lobby pelo banimento afirma que existem substitutos seguros para o amianto? Isso é motivo para descumprimento da lei federal?

Maurício Corrêa — Não, definitivamente não é. Em primeiro lugar, é uma temeridade afirmar que existem fibras naturais ou artificiais substitutas inteiramente seguras. A Organização Mundial de Saúde, reunida em Lyon, na França, comunicou que a fibra de polipropileno, principal substituto, é respirável e tem alta biopersistência — que vem a ser o tempo que a fibra permanece nos pulmões até ser expelida, do que decorre risco à saúde. Assim, não há substituto 100% para o amianto. Aliás, hoje, pode-se dizer que o amianto é bem mais seguro, pois nunca uma fibra foi tão estudada quanto o crisotila. Seria uma grande temeridade trocar o conhecido pelo desconhecido.


ConJur — Mas não há uma previsão nesse sentido na convenção da OIT?

Maurício Corrêa — Não exatamente. A recomendação da Convenção 162 da OIT é no sentido de que a legislação — e não o Poder Judiciário — promova a revisão periódica da autorização do uso controlado do amianto crisotila. Veja que essa reanálise compete ao legislador federal, e somente a ele, e deve ser feita quando o estado signatário, respeitada sua soberania, entenda que existam elementos seguros que justifiquem essa revisão, que não necessariamente significa o banimento. Repito, a legislação federal está em vigor, é constitucional, tanto sob a ótica formal quanto material, e somente outra lei editada regularmente pela União pode mudar essa realidade.

ConJur — Por que tanto interesse nessa proibição?

Maurício Corrêa — É importante deixar transparente que por trás dessa conveniente cortina de defesa da saúde e do meio ambiente, está, em realidade, uma guerra comercial. O grande interesse do lobby contra o amianto é financeiro. A multinacional francesa que desenvolveu a fibra alternativa busca, por seus representantes no Brasil, conquistar o mercado pela extinção da concorrência. Como os produtos feitos à base de amianto são muito mais resistentes, duráveis e eficientes, e, ainda assim, mais baratos, a única forma de competir é acabar com a indústria do amianto, assumindo o monopólio na fabricação de produtos à base de fibrocimento. Não é possível aceitar que interesses econômicos privados sobreponham-se ao interesse geral do país.

ConJur — Mas se o STF entender que o produto é prejudicial à saúde, pode declarar a inconstitucionalidade da lei federal e assim proibir o amianto?

Maurício Corrêa — Poder. É a palavra final da mais alta Corte do país. Mas veja o perigo dessa decisão. O Supremo também terá que proibir imediatamente o consumo de cigarro, que é inquestionavelmente cancerígeno. Poderá proibir a bebida, que também é prejudicial à saúde. Poderá proibir as atividades que envolvam o uso de chumbo, níquel e urânio, entre outras substâncias, tão ou mais perigosas que o amianto crisotila, mas que, como ele, admitem o uso responsável e controlado. Teríamos um estado de insegurança jurídica, provocando toda espécie de riscos imponderáveis na atividade econômica desenvolvida no país, o que é extremamente danoso. Não é o Judiciário quem tem que aferir esse risco à saúde, não é esse o papel do juiz, nem mesmo da Suprema Corte. Isso cabe às autoridades executivas e aos representantes do povo, que com o auxílio indispensável dos cientistas, deve dar a palavra final, deve legislar. Ao Poder Judiciário compete julgar e não legislar.

ConJur — Essa decisão recente do STF de suspender a decisão do TJ de São Paulo, que suspendia liminarmente a lei paulista, não indica a posição da Corte?

Maurício Corrêa — Decerto que não. A decisão a que você se refere é uma liminar concedida pelo ministro Carlos Britto, e não pelo STF. A suspensão da medida cautelar deferida pelo tribunal paulista se deu por razões unicamente de ordem processual. O ministro Carlos Ayres Britto, em momento algum de sua decisão expressou juízo de mérito acerca da questão, mas analisou tão-somente o cabimento da ação em trâmite no TJ de São Paulo. O que se tem de concreto, hoje, portanto, é a jurisprudência unânime do STF, no sentido de que essas leis estaduais estão gravadas de inconstitucionalidade formal insanável. Acredito que tal entendimento será mantido. O debate quanto à proibição, se conveniente e necessário, deverá ocorrer no foro apropriado, que é o Congresso Nacional.

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