Mandato de infiel

Debate sobre fidelidade partidária está equivocado

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29 de agosto de 2007, 18h43

Parece que a esperada (e dita necessária) reforma política não será aprovada tão cedo, por falta de consenso em muitos de seus diversos pontos. Com sorte e quando muito, apenas algumas matérias devem ser apreciadas, como a questão da fidelidade partidária.

A fidelidade partidária é tema sobre o qual muito se tem falado. Porém, nem sempre os argumentos invocados são devidamente ponderados, pelo que merecem alguns reparos.

Um primeiro questionamento diz respeito ao conceito de fidelidade partidária. Dá-se a entender que a fidelidade partidária é colocada em plano superior, inclusive acima da fidelidade dos eleitos aos desejos do eleitorado. O que não se estranha num país presidencialista e cujo Ordenamento não prevê o instituto do recall.

Porém, acima da fidelidade partidária vem o respeito à vontade do eleitorado. Tome-se, por exemplo, um partido de oposição, cujos parlamentares são eleitos defendendo idéias contrárias à situação. E que, por alguma razão (inclusive de cunho fisiológico), passa a apoiar o Governo, por orientação da cúpula partidária. Neste caso, será que os parlamentares de tal partido podem ser considerados infiéis quando a legenda muda de orientação? Cabe ao parlamentar ser fiel ao partido ou à sua ideologia e ao seu eleitorado? Contrariar a orientação da cúpula partidária e manter-se fiel ao discurso que o elegeu pode ser considerada infidelidade?

É certo que proposição aprovada na Câmara dos Deputados (PLP 35/07) estabelece como exceção à perda de mandato a hipótese de desfiliação em razão de descumprimento, pelo partido, de regra estatutária ou programa. Porém, a exceção não abrange o caso de mudança de orientação partidária em relação a determinada gestão. Assim, melhor seria a inclusão, no rol de exceções, das mudanças de orientação partidária em relação a decisões tomadas anteriormente.

A favor da fidelidade partidária, muitos argumentam que o parlamentar é eleito com os votos do partido. O que, como sabemos, nem sempre constitui uma verdade. Quase sempre são omitidos os casos (ainda que poucos) de parlamentares eleitos com número de votos superior ao quociente eleitoral, isto é, que não foram eleitos com os votos dos demais candidatos do partido. Neste caso, não se pode dizer que o mandato é do partido.

Não se leva em conta no debate o personalismo presente na prática política brasileira e, como decorrência, o hábito dos eleitores votarem na pessoa do candidato e não no partido. Também não são considerados os votos do candidato obtidos sem apoio da estrutura partidária e que contribuem para a formação do quociente eleitoral. Em alguns casos, são os votos do parlamentar que permitem ao partido a obtenção de quociente eleitoral para a eleição de mais um membro no Legislativo. Se o candidato estivesse filiado a outro partido, o resultado da eleição seria diferente, pois outro partido poderia ter obtido o quociente eleitoral. Por isto, é incoerente pleitear a perda do mandato e permanecer usufruindo os votos do candidato eleito no cômputo do quociente eleitoral. Por outro lado, é possível que parte dos votos do candidato tenha derivado de trabalho dos militantes do partido. Diante da dificuldade em mensurar qual a votação obtida pelos esforços do candidato e aquela alcançada em razão do partido, pode ser presumida, por lei, que metade dos votos são devidos ao próprio candidato e a outra metade ao partido. E, para evitar apropriação, pelo partido, dos votos obtidos com esforço próprio do candidato, em caso de perda de mandato, o mais justo é desconsiderar metade da votação do candidato (a decorrente de seu esforço próprio) e recalcular o quociente eleitoral. Assim, com a perda do mandato do parlamentar por desfiliação, se a supressão de metade de seus votos for suficiente para alterar a quantidade de cadeiras à qual o partido teria, um parlamentar de outro partido (ou coligação) pode assumir a cadeira vaga. O que também contribui para desfazer a idéia de que o mandato é do partido.

A fidelidade partidária é sempre lembrada pela sua face mais visível, ou seja, as constantes trocas de partidos de Deputados Federais, principalmente nas últimas legislaturas. Reconhece-se que o número de mudanças é elevado e, em alguns casos, o mesmo parlamentar troca de partido por diversas vezes na mesma legislatura. Porém, talvez este não seja o aspecto mais relevante. Raramente são mencionadas as trocas de partidos de ocupantes de cargos majoritários, como de Governadores, que, por sua vez, são responsáveis em grande parte pela transferência de Deputados Federais e outros parlamentares que os acompanham na mudança. Ou então, dos Prefeitos Municipais (que, por sua vez, influenciam Vereadores), principalmente em busca de apoio dos Governos Estaduais.

Isto demonstra que a falha pode não estar nas pessoas e sim no sistema político. Daí questionar-se se a perda de mandato de quem se desliga do partido é suficiente para corrigir os problemas do sistema político, muitas vezes baseado na necessidade de apoio dos Governos Estaduais pelos agentes municipais. Ou pela grande concentração de poder e inchaço administrativo na esfera federal, motivando a negociação política em troca de verbas e cargos. Para corrigir tal problema, o melhor é uma eficiente reforma tributária e política, com descentralização do poder, fortalecendo-se os Municípios, para que não sejam tão dependentes das esferas estadual e federal. O que não deve ser do agrado dos governantes estaduais e federais. Contra a descentralização, alega-se o risco de eventual abuso no uso dos recursos municipais. Mas isto pode ser mitigado com o fortalecimento dos tribunais de contas estaduais e maior controle pelos munícipes.

Por fim, um questionamento quanto à forma de instituição da fidelidade partidária. Como as hipóteses de perda de mandato estão fixadas no artigo 55 da Constituição Federal, a inclusão de novos casos (como o de desfiliação) deve ser feita mediante Emenda à Constituição e não através de lei complementar ou lei ordinária, como se pretende no Poder Legislativo. Neste sentido, encaminhamento legislativo no Senado Federal (PEC 23/07) é mais adequado do que o da Câmara dos Deputados (PLP 35/07).

Eventual lei complementar ou ordinária que estabeleça novas hipóteses de perda de mandato pode ser tida como inconstitucional, por acrescentar casos não previstos no art. 55 da Lei Maior.

Contra tal argumento, podem alegar que o elenco constitucional não é taxativo, trazendo à discussão se as hipóteses de perda de mandato previstas no artigo 55 da Constituição Federal são taxativas ou exemplificativas. Porém, a melhor hermenêutica indica que a redução de direitos deve ser interpretada de forma restritiva. E neste caso há direito não só do parlamentar, como dos eleitores que o elegeram.

Permitir hipótese de perda de mandato não previstas na Constituição Federal, além de afrontá-la também viola o princípio da segurança jurídica.

Frise-se que não somos contra mecanismos de garantia de fidelidade partidária. Porém, eles devem ser feitos através da forma correta (Emenda à Constituição) e considerando os aspectos acima expostos. Sem esquecer de que, como visto, que a imposição de regras de fidelidade partidária não é solução para todos os males de nosso sistema político. Pelo contrário, a reforma deve ser bem mais profunda.

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