Generalização perigosa

Orgãos repressores pegam carona no crime de quadrilha

Autores

  • Marcio Palma

    é advogado criminal em Brasília sócio do Escritório de Advocacia Luís Guilherme Vieira. Especialista em Advocacia Criminal pela UCAM/RJ e pós-graduando em Ciências Penais pela UCAM/RJ. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/DF

  • Fernando Goulart

    é advogado do escritório Luis Guilherme Vieira Advogados.

25 de agosto de 2007, 0h00

A expressão “organização criminosa” foi introduzida na legislação brasileira com a Lei 9.034/95. A uma primeira leitura, pode parecer que tal norma acrescentaria ao nosso já extenso rol de crimes um novo, o qual, por sua gravidade e capacidade lesiva, excepcionalmente e de forma fundamentada, poderia justificar o afastamento de garantias individuais através da adoção de procedimentos inovadores de persecução.

Assim, em se tratando de casos de criminalidade organizada, se permitiria aos órgãos repressivos a obtenção de prova — para fins de investigação e processo penal — mediante utilização de interceptação telefônica, escuta ambiental, postergação do flagrante, infiltração de agentes nas organizações criminosas.

Por outro lado, nunca se falou tanto em organizações criminosas como hoje. O termo está na mídia, é comentado, escrito e referido por todos. Encontra-se no subconsciente do cidadão.

Ocorre que a Lei 9.034/95 não inovou na criação de um novo tipo penal e assim não definiu o que é crime organizado, ao mesmo tempo em que permitiu, nessas situações indefinidas, a utilização de medidas odiosas que invadem a esfera da intimidade e privacidade dos cidadãos.

Ressalte-se que, ainda que contrários a histeria legislativa que faz o Congresso criar tipos penais ao sabor do que é publicado nos jornais e de interesses não confessáveis, no presente caso, ao permitir a utilização de métodos de investigação de exceção para combater a criminalidade organizada, haveria de ser delimitado, antes, o que é crime organizado. A definição só se dá através de lei, por força do princípio da legalidade. Precisaríamos de um conceito.

No caso, além de não definir o que seja crime organizado, preferiu-se utilizar a estrutura típica convencional do delito de quadrilha ou bando, prevista no artigo 288 do Código Penal, causando uma grande confusão entre a criminalidade de massa e a criminalidade organizada.

Como, no Brasil, o legislador não costuma se importar com a harmonia do sistema penal, foi introduzida em nosso arcabouço jurídico norma remendando a anterior, que foi apelidada Lei do Crime Organizado e que, por sua vez, foi uma cópia mal adaptada da legislação italiana utilizada na operazione mani pulite.

Assim, a Lei 10.217/01, também laborou em erro, uma vez que, ao inserir no art. 1º da Lei 9.034/95 as expressões organizações ou associações criminosas de qualquer tipo, mantém a confusão pois ao invés de conceituar, opta por uma ordinária generalização.

Com a confusão de conceitos, subverte-se a determinação constitucional de que as condutas criminosas devam ser definidas. Homicídio é matar alguém, já organização criminosa ou associação criminosa, não se sabe o que é, por opção do legislador.

Por conta de tal incerteza conceitual e verificando a atual vulgarização na adoção das medidas excepcionais para a busca de provas, constata-se que os órgãos repressores “pegam carona” no crime de formação de quadrilha. Assim, hoje, qualquer quadrilha ou bando são tidas como uma associação criminosa e por ostentarem tal pecha, permite-se que contra seus supostos integrantes se utilizem métodos de investigação que afastam as garantias individuais.

Na prática, as autoridades responsáveis pela persecução penal não têm mais a mínima preocupação em distinguir o que é crime de quadrilha ou o que venha a ser crime organizado, pelo contrário, a confusão é utilitária.

Ocorre que, ao usufruir de tal desordem, ampliando a possibilidade de odiosas medidas de investigação em detrimento das garantias dos cidadãos, ignora-se, também, o princípio da proporcionalidade. Isto porque, dois crimes com potenciais lesivos distintos e forma de atuações diversas são tratados da mesma forma.

O crime de quadrilha, previsto no Código Penal, muito pouco tem em comum com as organizações criminosas. É tipo penal praticado por grupos de mais de três indivíduos, que se unem, de forma estável, com até alguma organização, para cometer atos criminosos, mas sem a estrutura verdadeiramente organizada de uma associação criminosa. Tanto é diferente que o tipo previsto pelo artigo 288 do Código Penal é de mera conduta e sequer se exige a consecução de seus fins para que se tenha a ação como típica.


Ao referido tipo penal, não se pode atribuir o mesmo tratamento que aquele concedido às associações criminosas sistematizadas. O crime organizado, como fenômeno criminológico, apresenta sinais distintivos, que nos ajudam a aproximarmos de sua conceituação, a qual nunca poderá ser confundida com a referida criminalidade de massa, como hoje se fez rotineiro.

A dificuldade da conceituação é reconhecida, desde há muito. Diversos conceitos já foram fornecidos e até hoje não se chegou a um consenso. Assim, sendo o crime organizado um fenômeno que desperta vários interesses, possui variadas formas de enfoque. A imprensa o utiliza de uma forma, os romancistas o apresentam de outra maneira, os policiais e o Ministério Público lhe conceituam de modo diverso.

O maior defeito decorre que a lei penal, que deveria por fim a essa diversidade, ao menos para garantir a sua aplicação correta e fazer valer o princípio da reserva legal, possibilitando um efetivo combate ao fenômeno, não o fez.

O problema da chamada criminalidade organizada não é de agora. Sutherland[1], em 1978, afirmava que o crime organizado crescia em unidade e oposição a sociedade, por efeito da debilidade do Estado. Traduzindo, o crime organizado se organizou na mesma medida em que o Estado se desorganizou.

A discussão acerca da conceituação de crime organizado também não é novidade. O interesse no estudo do tema surgiu nos Estados Unidos da América, com o implemento do Volstead Act de 1920, a chamada “lei seca”.

Notável é o fato de que em 1976, ainda sem conseguir chegar a um conceito, o comitê assessor do governo dos EUA concluiu que não existia “uma definição suficientemente abrangente, que satisfaça as necessidades dos indivíduos e grupos muito diferentes que possam usá-la como meio para desenvolver um esforço controlador do crime organizado”[2].

Foi no próprio Estados Unidos, através da escola de Chicago, que surgiram as primeiras tentativas sérias de conceituar o fenômeno.

Frank Hagan e Michael Maltz, citados por Zaffaroni, foram os primeiros a sistematizar o conceito de crime organizado e chegaram a algumas características comuns ao fenômeno como: i) a necessidade de um vínculo permanente; ii) com funcionamento racional e organizado; iii) visando obter benefícios mediante atividades ilícitas; iv) sustentado por meio de violência real ou ficta; e v) implicando na corrupção e/ou participação de funcionários públicos.

É fato que, em alguns pontos, os dois estudiosos divergiam sendo certo que a falta de consenso, mesmo entre aqueles que estudaram o fenômeno, só nos faz demonstrar o quão difícil é o tema.

No Brasil, a confusão decorrente da falta de um conceito é mais uma demonstração da forma açodada em que se dá nosso procedimento legislativo em matéria penal e processual penal, sempre impulsionado pela opinião pública (cujo discurso é pautado pela televisão), porém desatento às garantias civis individuais, conquistadas de forma árdua.

Isto porque, a falta de definição agride o princípio da reserva legal, que tem como um dos seus efeitos a exigência da taxatividade. A lei ao definir crime deve delimitar a conduta que objetiva punir. Não podem ser aceitas leis imprecisas uma vez que ao magistrado é vedado a interpretação extensiva e a analogia. Ao abrirmos mão deste princípio basilar, estaríamos atentando contra garantia constitucional e colocando em risco o próprio estado democrático de direito.

Eugenio Zaffaroni (cujo pensar balizou estas considerações) estudando a falta de determinação do que seja crime organizado, dizia que a intervenção punitiva baseada em um conceito aberto implica grave retrocesso do direito penal, com o restabelecimento do autoritarismo, submetendo ao risco as garantias constitucionais[3].

Em termos práticos, tal falta de conceitos implica na dificuldade de diferenciar, legalmente, o que é crime organizado e o que é quadrilha ou bando, deixando tal definição ao critério subjetivo de quem investiga, acusa e julga, o que é um risco. É o mesmo que alguém chegar até nós e afirmar que cometemos um crime, mas sem dizer através de que ação. A subjetividade de tal definição é um convite ao abuso, os quais, infelizmente, são reiteradamente praticados.


Os abusos cometidos sob o extenso manto de combate ao crime organizado.

Buscando trazer holofotes para investigação, ou motivados por uma leviana vontade de denunciar, a autoridade policial e o órgão acusador se valem dessa expressão — organização criminosa ou crime organizado — com o intuito de a um só tempo atrair o interesse midiático, impressionar o julgador, atribuindo ao caso penal contornos maiores do que realmente é. O Processo Penal hoje, mesmo os sigilosos, têm início nos canais televisivos, sendo certo que ali não é respeitada à paridade de armas.

Tal forma de pressão, ampliada pelo noticiário escandaloso, atrai a opinião pública e, com essa equação, conquista apoio que conferem legitimidade aos meios odiosos de busca de prova, incluído aqui a prisão temporária.

Ao proceder uma acusação por formação de quadrilha (na maioria das vezes com o adorno de organização criminosa) viabiliza-se a utilização de meios extremos de prova. Estes meios operacionais excepcionais que só deveriam ser utilizados em casos de necessidade comprovada e como última forma de se obter as provas tornaram-se regra.

As investigações hoje, em sua abundante maioria, são feitas mediante a obtenção de escutas telefônicas, as quais, depois, são estampadas, de forma tendenciosa nos jornais. Não há investigação, há interceptação.

Assim, para viabilizar tal intromissão na esfera da intimidade do cidadão (que a Constituição quer que seja uma exceção) se vulgarizou a imputação pela prática de quadrilha ou crime organizado.

É uma forma finalista de raciocínio, um método abusivo e autoritário de investigar. Utilizando-se da velha máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios, os órgãos da repressão vulgarizam tal forma de acusação. Tudo hoje é quadrilha ou bando. Tal forma de acusar passa por cima, inclusive, de construções técnicas doutrinárias da ciência penal.

Hoje, por exemplo, quase não se vê as figuras da co-autoria e da participação. Ninguém é acusado de ser co-autor de um crime ou partícipe de uma suposta conduta criminosa. Todos são quadrilheiros, todos fazem parte de uma organização criminosa e assim são passíveis de ter o sigilo telefônico afastado, de ter escutas telefônicas instaladas onde vivem e/ou trabalham e de que estes mesmos lugares venham a ser invadidos, sorrateiramente, para a obtenção de provas. Estes os efeitos mais evidentes da falta de um conceito.

Há algum tempo, tal erro de classificação envergonharia um estudante de direito. Atualmente, visando justificar medidas extremas de investigação, anestesiados pela fantasia fetichista que a tecnologia moderna exerce, muitas vezes se acusam inocentes para “fazer número” e atingir o limite exigido por lei.

Como não há conceito e a lei generaliza, basta uma acusação de quadrilha e uma frase apelidando-a de organização criminosa para que se tenham abertas todas as portas para as medidas invasivas de investigação. É uma forma leviana de agir, abusiva e autoritária. É o mais para conseguir o menos.

Assim vulgarizam-se medidas que só poderiam ser usadas quando comprovadas práticas graves que a justificassem. A escuta telefônica é, hoje, um método ordinário, toda delegacia de interior anseia poder interceptar os três ladrões de galinha que infernizam a cidade. Nem se diga que tal afirmação é um exagero pois, recentemente, foi noticiado que a Procuradoria Geral da República havia adquirido uma máquina capaz de interceptar um sem número de telefones, em que pese lhe faltar atribuição para tal fim.

Nesse rodo vai o cidadão, a sociedade e os abusos começam a ser sentidos. Para tanto, basta citar recente revista semanal, de circulação nacional, que estampou notícia acerca de escutas instaladas em telefones de autoridades do Poder Judiciário, os quais, por conta delas, passaram a sofrer inadmissível controle ideológico, típico de um Estado-policial autoritário.

Com os abusos praticados os quais, muitas vezes, recebem a chancela daqueles que deveriam impor limites, contaminados que foram pela histeria da violência pública, põe-se em risco o Estado de Direito, optando-se por sobrepor qualquer dificuldade, qualquer garantia, em nome da chamada segurança pública.

Neste sentido, vale citar o professor Baratta que, analisando o utilitarismo retribucionista, flagrante nas práticas sobre quais tecemos considerações, explica que em casos que tais, as decisões são tomadas não tanto visando modificar a realidade, senão tentando modificar a imagem da realidade dos espectadores: não procuram tanto satisfazer as necessidades reais e a vontade política dos cidadãos, senão vir ao encontro da chamada opinião pública[4].

Marcio Palma e Fernando Goulart são advogados


[1] Sutherland, Edwim H. Criminology. Lippincott Co., 1978, p. 270 em Eugenio Raúl Zaffaroni, Op. Cit., p 49.

[2] National Advisory Committes on Crime Justice Standarts and Goals, Report on the Task Force on Organized Crime em ZAFFARONI, Eugenio Raúl, Crime Organizado uma categorização frustada, em Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, ano 1, n° 1, Relume-Dumará:Rio de Janeiro, 1996.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, Crime Organizado uma categorização frustada, em “Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade”, ano 1, n° 1, pag. 45/68, Editora Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1996.

[4] Alessandro Baratta em “Funções instrumentais e simbólicas do direito penal, lineamentos de uma teoria do bem jurídico”, na “Revista Brasileira de Ciências Criminais”, S. Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1994, n°5, pag.22.

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