Carnaval dos tributos

Não haverá reforma tributária sem mudança de mentalidade

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25 de agosto de 2007, 0h00

Não é de se estranhar que uma reforma tributária não tenha saído ainda do campo das discussões. Não é se de estranhar também se a reforma desejada nunca sair do papel. No emaranhado que é a legislação tributária brasileira, especialistas consideram que, muito mais do que a reorganização das regras tributárias, é preciso uma mudança de mentalidade.

O tema reforma tributária permeou os debates do segundo dia do XI Congresso Internacional da Associação Brasileira de Direito Tributário, que acontece de 22 a 24 de agosto em Belo Horizonte. Especialistas em tributos discutiram problemas da legislação tributária, que deveriam fazer parte de uma possível reforma.

Ainda que as ferramentas para executar as mudanças sejam diferentes, o caminho para trilhar uma reforma tributária satisfatória é basicamente o mesmo: o Brasil precisa rever a sua cultura tributária. A capacidade contributiva, que protege o contribuinte de abusos fiscais, tem de ser respeitada, sem distorções. A legislação tem de ser única, compreensível e segura. O diálogo, hoje inexistente entre contribuintes e Estado, tem de nascer e sobreviver.

“Esperamos a reforma tributária como se ela fosse instaurar o paraíso na terra. No entanto, se for ver a essência das propostas apresentadas, é sempre aumento da carga tributária”, diz o professor e advogado José Souto Maior Borges.

A idéia, portanto, é chamar as duas partes envolvidas na reforma – sociedade e Estado – para uma reflexão do papel de cada uma. “O Estado não pode mais ver o contribuinte como súdito. Tem de vê-lo como parte do sistema”, considera o professor Heleno Taveira Tôrres. Para ele, o papel do contribuinte de sujeição passiva e do Estado de provedor é um dos causadores da grande quantidade de litígios tributários.

Segundo ele, 37% das ações que tramitam na Justiça Federal do país são de execução fiscal. São R$ 100 bilhões sendo discutidos na Justiça, dos quais o governo consegue arrecadar R$ 1 bilhão por ano. “É muito pouco perto do que pode arrecadar. É preciso mudar a mentalidade. Governo e contribuinte têm de ter uma relação de confiança e lealdade.”

O procurador-geral da Fazenda Nacional, Luís Inácio Lucena Adams, também aponta a relação de subordinação entre Estado e contribuinte como uma das grandes causadoras da enorme quantidade de litígios. “Hoje, a única alternativa para solução de conflitos fiscais é o meio judicial”, critica. “Temos de repensar a dinâmica do Estado. A sociedade tem de se sentir responsável por ele, e não ver nele um provedor.”

Tempo de conversar

A mudança de mentalidade passaria por uma abertura de diálogo entre contribuinte e administração pública. Nos litígios fiscais, a proposta é a edição de uma lei que permita a transação tributária. “Sou grande fã da transação tributária. Acho que esse é o caminho e que podemos trilhá-lo”, diz Adams.

A transação tributária seria uma ferramenta técnica que permitiria ao governo e ao contribuinte chegarem a um acordo. O crédito fiscal seria pago e a Justiça ficaria livre de mais um processo. “Uma lei de transação não resolveria o problema, mas permitira reconstruir uma nova relação entre estado e contribuinte”, diz o procurador-geral.

Segundo Adams, o Brasil pode chegar à realidade que chegou a Itália. Lá, apenas 2% do fluxo de arrecadação é objeto de litígio. “Hoje, 56% dos processos na Justiça Estadual do Rio de Janeiro são execução fiscal. Em São Paulo, são 51%. Isso é inconciliável.”

A proposta de transação em matéria tributária, no entanto, é vista por muitos com grande ressalva. O bem público é indisponível, como determina a Constituição Federal. Como poderia então a administração renunciar a parte do crédito a que tem direito?

Heleno Taveira Tôrres considera que a indisponibilidade do crédito público não é absoluta. “A transação não é negociação. É procedimento técnico para solucionar o litígio”, afirma. Ele reconhece que, durante essa solução do conflito, pode haver redução dos tributos devidos. Mesmo assim, entende que não ofende à indisponibilidade do crédito público porque este pode ser modificado, por exemplo, por decisão judicial.

O professor Tácio Lacerda Gama é um dos que vê com bastante cautela a proposta de transação em matéria tributária. “É ousada e corajosa.” Para ele, a proposta pode ser perigosa ao inserir o elemento vontade no Direito Tributário. Ou seja, o órgão competente para fazer a transação poderia diminuir o valor, escolher pela anistia ou não. Aí estaria o elemento vontade. “Hoje, litígios tributários são numerosos, mas simples. A transação poderia reduzir o número dos processos, mas aumentar a sua complexidade.” A complexidade seria uma das conseqüências da abertura do diálogo entre Estado e contribuinte, aponta Gama.

Proteção desprotegida

Um dos pontos de proteção que o contribuinte pode se valer é o chamado princípio da capacidade contributiva, que diz que ninguém será tributado em valor acima do que é capaz de contribuir. Numa possível reforma tributária, esse princípio de proteção teria de ser revisto porque tem sido constantemente desrespeitado por meio de manobras legislativas e fiscais.

Por exemplo, a inclusão de tributo na base de cálculo de outro tributo, que é o que acontece com o ICMS na base de cálculo da Cofins. Segundo o professor Marcos André Vinhas Catão, é uma maneira de arrecadar mais, mas que não pode ser admitida. “Incidência de tributo sobre tributo desconstrói a materialidade do tributo.”

É o que acontece quando o IPTU não pode ser deduzido no Imposto de Renda de Pessoa Física. “O imposto é sobre a renda. O valor pago de IPTU é renda?”, questiona.

Para o professor, a reforma tributária tem de passar por uma sistematização do sistema tributário. Se o imposto é sobre renda, tem de incidir só sobre o que é, de fato, renda. Se é sobre o faturamento, tem de incidir só sobre o que é faturamento. “Não há nada na Constituição Federal nem no ordenamento tributário que repudiem a bitributação. Ela não é inconstitucional por si só. Mas ofende a materialidade e capacidade contributiva”, diz. “Nesse contexto, não sei como o Brasil consegue crescer de 3 a 4%.”

Outro fator que tem colocado em jogo o princípio da capacidade contributiva é a substituição tributária para frente. O Supremo Tribunal Federal já tinha entendido que a restituição na substituição tributária só era possível se o fato gerador (a venda do produto) não tivesse acontecido. Agora, o tribunal se debruça de novo sobre a questão. O placar está em cinco a cinco. Resta o ministro Carlos Britto votar para o contribuinte ficar sabendo se a corte muda ou não sua jurisprudência.

Para o professor Gustavo Brigagão, a capacidade contributiva é afetada quando todo o ônus do tributo não pode ser transferido ao consumidor final. É o que acontece quando não há possibilidade de restituição na substituição tributária quando o fato gerador ocorrer por preço menor do que o presumido.

Brigagão contesta o argumento do Estado de que a Constituição Federal permite a restituição unicamente quando o fator gerador presumido não ocorrer. Ele entende que, quando o fato gerador ocorre por preço inferior ao presumido, o fato gerador presumido em si não ocorreu. Ou seja, o que ocorreu foi outro fato gerador que não o presumido.

Devo e nego

“Enquanto existir esse monstrengo chamado ICMS, vamos continuar a fazer remendos na legislação tributária.” A frase é do professor e advogado José Souto Maior Borges, mas expressa pensamento de grande parte dos conhecedores do ICMS. Não que todos queiram o fim do imposto, mas pelo menos uma uniformização.

O grande problema do ICMS é que ele é estadual. São 27 legislações diferentes e que concorrem entre si. Uma empresa do Rio Grande do Sul tem de conhecer as regras de São Paulo, por exemplo, se a sua mercadoria for circular lá. Por isso o ICMS é o grande vilão da guerra fiscal entre os estados.

“Defendi, por muito tempo, que o ISS e o ICMS se tornassem federais. Hoje, já ando amolecida com a necessidade de arrecadação própria dos municípios e estados. Mesmo assim, defendo que tem de existir uma legislação única”, afirma a professora Alessandra Machado Brandão Teixeira.

Na guerra fiscal entre os estados, uma das grandes ferramentas, ao lado dos incentivos fiscais, é a dificuldade de devolver o saldo credor do ICMS, o valor pago a mais que o contribuinte teria direito de receber. “Saldo credor deveria ser simples. Se é credor, basta devolver. Mas o Estado tem relutância de devolver o que recebe a mais”, aponta o especialista em Direito Tributário Alcides Jorge Costa.

Ele conta que, em certa ocasião, perguntou para o procurador-geral de determinado estado como era feita a devolução do crédito no caso de exportação. “‘A gente não devolve’, me disse o procurador. Isso é trágico. Prejudica o poder do produto brasileiro de competir no mercado internacional.” Para Alcides Costa, o saldo credor é um dos pontos que merece uma profunda reforma.

No papel

A proposta de reforma tributária do governo federal hoje é a criação de dois IVA (Imposto Único sobre Valor Agregado) – um federal e um estadual. Segundo André Luiz Barreto de Paiva Filho, secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda, o governo federal vem fazendo ciclo de debates com os envolvidos na reforma, como empresários.

A idéia é simplificar a legislação para que as empresas não precisem de tamanho aparato para cumpri-la. Seria preciso, portanto, resolver o problema da multiplicidade de competências, alíquotas e bases de cálculo.

Nada indica, no entanto, que uma legislação unificada acabaria com os obstáculos fiscais que os contribuintes encontram hoje. Dado o quadro atual, ainda assim, a professora Alessandra Machado Brandão Teixeira considera que seria um avanço. “Ainda que existam, as burocracias têm de ser únicas. Os obstáculos não podem variar.” É a conformidade de quem tudo quer, mas, até agora, nada teve.

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