Audiência impossível

Pilotos do Legacy pedem para depor nos EUA. Juiz nega

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24 de agosto de 2007, 13h00

Os pilotos americanos Joseph Lepore e Jean Paul Paladino, denunciados como responsáveis pelo acidente entre o jato Legacy e o Boeing da Gol, que resultou na morte de 154 pessoas, no dia 29 de setembro do ano passado, dificilmente serão ouvidos pela Justiça. O juiz federal de Sinop (MT), Murilo Mendes, que cuida do caso, negou pedido dos pilotos que queriam ser ouvidos nos Estados Unidos, onde moram. Ninguém acredita que eles venham espontaneamente ao Brasil para prestar depoimento.

Os pilotos pediram para ser ouvidos em seu país. O juiz negou o pedido. “Citação e intimação podem ser realizados no território estrangeiro, segundo a legislação daquele Estado, mas o interrogatório, se determinado que deve ser realizado no Brasil, seguirá as normas brasileiras”, considerou o juiz, citando decisão do Superior Tribunal de Justiça, no pedido de Habeas Corpus 63.350, relatado pelo ministro Félix Fischer.

Um dos argumentos da defesa dos pilotos americanos era o de que o Decreto 3.810/01, o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América, autorizava o juiz brasileiro a fazer o interrogatório nos EUA e que, de acordo com o Decreto, o estrangeiro não era obrigado a vir até o Brasil para depor.

Murilo Mendes explicou que em território estrangeiro, juiz brasileiro, de regra, não tem jurisdição. Tanto assim que o tratado, quando diz sobre a atuação da autoridade brasileira que estiver nos Estados Unidos ouvindo alguma pessoa, afirma que o Estado requerido ‘permitirá’ que essas pessoas apresentem perguntas. “Quem permitirá? Certamente uma autoridade do estado estrangeiro (no caso, os EUA). A autoridade brasileira, portanto, deveria pedir permissão ao juiz americano para que pudesse fazer as perguntas que julgasse conveniente formular aos réus. Se o caso é de mera “permissão”, obviamente que o pedido poderia ser indeferido. O juiz brasileiro que lá estivesse, portanto, não seria propriamente um juiz; seria um ‘meio-juiz’”, defendeu Mendes. “Juiz sem jurisdição não é juiz. Se um Juiz precisa pedir a outro (seja estrangeiro ou não) permissão para formular pergunta é porque não está investido de poder estatal algum”, completou.

Outro ponto levantado por Murilo Mendes foi de que o artigo 368 do Código de Processo Penal, que prevê a citação do acusado que esteja em outro país, não diz, em momento algum, que o interrogatório não poderá ser feito no Brasil. “Estando o acusado no estrangeiro, em lugar sabido, será citado mediante carta rogatória, suspendendo-se o curso do prazo de prescrição até o seu cumprimento”, expressa o artigo.

“O dispositivo legal apenas disciplina uma forma de suspensão do curso do prazo prescricional, até o seu cumprimento. A expressão ‘cumprimento’ refere-se à realização da citação no exterior; não à realização do interrogatório”, observou o juiz.

Mendes ainda dispensou a possibilidade de os pilotos serem ouvidos por videoconferência, por causa da decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, que considerou que o procedimento fere o direito a ampla defesa.

Lepore e Paladino não virão para o Brasil nesta terça-feira (28/8), data da audiência, mas também não serão ouvidos nos Estados Unidos. O juiz Murilo Mendes marcará uma nova data para audiência. Ficam mantido os depoimentos dos controladores de vôo Jomarcelo Fernandes dos Santos, Lucivaldo Tibúrcio de Alencar, Leandro José Santos de Barros e Felipe Santos dos Reis, também réus na Ação Penal.

O grupo foi qualificado no artigo 261 do Código Penal — por a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente e impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea. A pena é de dois a cinco anos de prisão. Com o agravante das mortes dos passageiros do avião da Gol, a pena pode chegar a seis anos.

O sargento da Aeronáutica do Cindacta-1, Jomarcelo Fernandes dos Santos, foi denunciado por crime doloso e de atentado contra a segurança de aeronaves. Os dois pilotos americanos e os demais controladores vão responder por crime culposo.

Leia a decisão

PODER JUDICIÁRIO

JUSTIÇA FEDERAL DE MATO GROSSO

SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SINOP

JUÍZO DA VARA ÚNICA

PROCESSO Nº: 2007.36.03.002400-5

CLASSE: 13101 – AÇÃO PENAL

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RÉUS: JOMARCELO FERNANDES DOS SANTOS, LUCIVANDO TIBÚRCIO DE ALENCAR, LEANDRO JOSÉ SANTOS DE BARROS, FELIPE SANTOS DOS REIS, JOSEPH LEPORE E JAN PAUL PALADINO

DECISÃO

Joseph Lepore e Jan Paladino, por meio de seus defensores regularmente constituídos, formulam pedido nos seguintes termos: “requerem os peticionários a adoção das providências necessárias à realização dos interrogatórios dos peticionários nos Estados Unidos da América, nos termos dispostos pelo acordo de cooperação entre os dois países”.

É o relatório.

O pedido aqui formulado pelos defensores dos acusados estrangeiros já foi, de rigor, apreciado quando de recebimento da denúncia. Fez-se menção, naquela ocasião, a um precedente do STJ em tudo semelhante ao caso de que se cuida na presente ação penal.

Eis o teor do aresto: “O Acordo Internacional do qual se cuida objetiva facilitar a cooperação e o combate a delitos por Brasil e Estados Unidos da América, quando necessária a prática de atos por um deles no interesse do outro. Não pretende, contudo, alterar a forma como os atos processuais são praticados no território do Estado, tanto que a legislação que pratica o ato sempre deverá ser respeitada. A citação e a intimação serão realizadas, no território estrangeiro, segundo a legislação daquele Estado; mas o interrogatório, se determinado que deve ser realizado no Brasil, seguirá as normas brasileiras” (HC 63.350, relator Ministro Félix Fischer).

Como fundamento de seu requerimento, a defesa invoca as disposições contidas nos artigos VIII e X do Decreto nº 3.810, de 21 de fevereiro de 2001 (Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América).

A referência ao segundo dispositivo (art. X) talvez tenha sido feita com o intuito de dizer (isso não está bem esclarecido na petição) que a providência de citação dos cidadãos norte-americanos tem a natureza de um mero “convite”, sem os efeitos processuais próprios de um requerimento de citação. Esse, no entanto, não é o melhor entendimento. O que o Tratado diz, no art. X, é que o Estado requerente solicita a presença da pessoa e o Estado requerido “convida” ela a comparecer, como que querendo salientar que o Estado de origem do cidadão cuja presença foi requisitada no estrangeiro não o obriga a atender ao chamado. Mas isso em nada retira a qualificação jurídica do ato emanado do Estado requerente: se o ato é de citação, permanecerá sendo de citação ainda que, no Estado requerido, ao réu seja feito apenas “um convite”; se é de intimação, permanecerá sendo de intimação; se é de notificação, permanecerá sendo de notificação e assim por diante.

A citação dos réus, portanto, em nada fica prejudicada pelo modo como, nos Estados Unidos, eles foram intimados. Pouco importa saber se a autoridade americana encarregada do cumprimento da diligência fez um apelo ou simplesmente apresentou aos réus uma citação judicial. O que interessa, para os respectivos efeitos processuais, é o seguinte: os acusados foram chamados a comparecer a um interrogatório judicial para responder aos termos da ação penal proposta pelo Ministério Público Federal. Esse ato tem um nome; chama-se citação. “Citação é o chamamento do réu a juízo, dando-lhe ciência do ajuizamento da ação, imputando-lhe a prática de uma infração penal, bem como oferecendo-lhe a oportunidade de se defender pessoalmente através da defesa técnica” (NUCCI. Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 613).

O inciso VIII do Tratado de Cooperação é mencionado para dizer que o juiz brasileiro poderá realizar o interrogatório nos EUA. Eis o texto: “O Estado requerido permitirá a presença de pessoas indicadas na solicitação, no decorrer do atendimento à solicitação, e permitirá que essas pessoas apresentem perguntas a serem feitas à pessoa que dará o testemunho ou apresentará as provas”.

Aqui é impossível não fazer uma defesa da jurisdição nacional. O que pretendem os réus, com esse pedido, é serem ouvidos em seu território. Ocorre que, em território estrangeiro, juiz brasileiro, de regra, não tem jurisdição. Não é sem motivo que o tratado, ao cuidar da atuação da autoridade brasileira que estiver nos Estados Unidos da América ouvindo alguma pessoa, afirma que o Estado requerido “permitirá” que essas pessoas apresentem perguntas. Quem permitirá? Certamente uma autoridade do estado estrangeiro (no caso, os EUA). A autoridade brasileira, portanto, deveria pedir permissão ao juiz americano para que pudesse fazer as perguntas que julgasse conveniente formular aos réus. Se o caso é de mera “permissão”, obviamente que o pedido poderia ser indeferido (a autoridade americana poderia, de rigor, dizer ao magistrado nacional: “sua pergunta está indeferida”). O juiz brasileiro que lá estivesse, portanto, não seria propriamente um juiz; seria um “meio-juiz”, com perdão da clareza. Um juiz sem jurisdição não é juiz. Se um Juiz precisa pedir a outro (seja estrangeiro ou não) permissão para formular pergunta é porque não está investido de poder estatal algum.

Há ainda uma outra consideração. O art. 368 do Código de Processo Penal, que prevê a citação de acusado que esteja em lugar certo no estrangeiro, não diz, em momento algum, que o interrogatório não será realizado no Brasil. O dispositivo legal apenas disciplina uma forma de suspensão do curso do prazo prescricional “até o seu cumprimento”. A expressão “cumprimento” refere-se à realização da citação no exterior; não à realização do interrogatório. Essa é, aliás, a linha de raciocínio que orientou o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, a que se fez referência.

A realização do interrogatório por meio de “videoconferência”, de sua vez, também não se mostra possível. A segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente sobre a inconstitucionalidade desse procedimento. No voto-condutor o eminente Ministro Cezar Peluso deixou assinalado o seguinte: “Quando se impede o regular exercício da autodefesa, por obra da adoção de procedimento (vídeo conferência) sequer previsto em lei, tem-se agravada restrição à defesa penal, enquanto incompatível com o regramento contido no art. 5º, LV, da Constituição da República, o que conduz à nulidade absoluta do processo….” (HC 88.914-0-SP).

A defesa dos acusados americanos acaba de informar ao juízo (em petição encaminhada por fax) que eles não comparecerão ao interrogatório. Em vista da informação, já foi estabelecido contato com a ilustre Presidente da Câmara Municipal, vereadora Sinéia Abreu, liberando a Cada Legislativa para funcionar regularmente na segunda-feira. Ficam mantidos, para terça-feira (dia 28/08/2007), os interrogatórios dos acusados brasileiros. Na segunda-feira, deliberarei sobre a ausência, no ato de interrogatório, dos senhores Joseph Lepore e Jan Paul Paladino.

Indefiro, portanto, nos termos da fundamentação, o pedido formulado pelos acusados Joseph Lepore e Jan Paladino.

I-se.

Sinop/MT, 24 de agosto de 2007.

MURILO MENDES

Juiz Federal Substituto, com jurisdição plena na Vara Única de Sinop-MT

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