Sensacionalismo do fato

Época não ofendeu médico pedófilo ao chamá-lo de monstro

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22 de agosto de 2007, 14h29

A revista Época não tem de indenizar o pediatra Eugênio Chipkevittch por dar o título de “O médico é o monstro” na reportagem em que descrevia as acusações de pedofilia contra o médico. Chipkevittch foi condenado a 114 anos de detenção pelo crime. A decisão é do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Os desembargadores mantiveram decisão do juiz Luiz Otávio Camacho, da 4ª Vara de Pinheiros, que rejeitou pedido de indenização por danos morais e materiais na ação movida pelo médico. Chipkevittch alegou que a reportagem foi extravagante, exagerada e feriu sua honra e imagem.

A 8ª Câmara de Direito Privado entendeu que o pediatra não tinha razão. Para a turma julgadora, não houve qualquer distorção dos fatos envolvendo o pediatra na reportagem de Época. Os desembargadores, por unanimidade, reconheceram que a revista agiu sem sensacionalismo, dentro dos limites da lei, sem extrapolar para a injúria, e de acordo com o interesse público de levar aos leitores o conhecimento dos fatos.

“Os fatos expostos na reportagem são de conhecimento público. Falam por si. Foram amplamente divulgados, tanto na imprensa falada quanto escrita. Se sensacionalismo existe, o mesmo decorre da própria conduta do autor (que não é por ele negada)”, afirmou o relator, Salles Rossi.

Os desembargadores entenderam que o título da reportagem foi apenas uma alusão ao clássico da literatura escrito por Robert Louis Stevenson, escrita em 1886, narra a vida dupla de um escocês, chamado William Brodie, que de dia é um respeitado cidadão e à noite rouba as casas dos moradores da cidade.

“Referido título é utilizado, na medida em que a matéria narra a bem sucedida carreira de médico do autor, para após descrever parte do conteúdo das fitas e da prática dos atos a ele imputada, que culminaram com seu encarceramento”, afirmou o relator.

Chipkevittch era um profissional renomado até seus hábitos serem descobertos. Ele sedava os pacientes no consultório e abusava sexualmente deles. A descoberta veio com provas produzidas pelo próprio médico, que gravava as consultas. A reportagem de Época foi feita com base em mais de 15 horas de gravações que foram apreendidas pela polícia na casa do pediatra.

Atualmente, Chipkevittch cumpre pena de 114 anos e está preso desde 20 de março de 2002. A condenação era de 124 anos de prisão em regime integralmente fechado. Ao julgar recurso, o Tribunal de Justiça de São Paulo reduziu a pena.

A defesa do pediatra pretendia que o Tribunal obrigasse a revista semanal a indenizar seu cliente. O advogado sustentava que o deve de indenizar se amparava na publicação da reportagem que o chamava de “doutor terror” e “monstro”, além da foto na capa de Época que mostrava o médico algemado.

Para a defesa, cabe à imprensa “captar e filtrar as sensações do povo, especialmente aquelas que extrapolam a própria lei. Mesmo que a comunidade considere o médico um monstro, não cabe à imprensa atestá-la sem arbítrio ou presumir que qualquer cidadão por qualquer conduta, realmente seja um monstro, principalmente expondo sua imagem”. Os argumentos não surtiram efeito.

Leia o acórdão

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL COM REVISÃO nº 484.279-4/8-00, da Comarca de SÃO PAULO, em que é apelante EUGENIO CHIPKEVITTCH sendo apelados EDITORA GLOBO S A (E OUTRO)

ACORDAM, em Oitava Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, V.U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores RIBEIRO DA SILVA e LUIZ AMBRA.

São Paulo, 02 de agosto de 2007.

SALLES ROSSI

Presidente e Relator

Voto nº 5019

Apelação Cível nº 484 279.4/8-00

Comarca: São Paulo (F.R Pinheiros) – 4ª Vara

1ª Instância: Processo n°: 845/2002

Apte. Eugenio Chipkevittch

Apdos . Editora Globo S.A e outro

VOTO DO RELATOR

EMENTA – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – Matéria jornalística relativa à prisão do autor, acusado de pedofilia — Fatos amplamente divulgados na imprensa como um todo, sendo de conhecimento público — Reportagem que resume mais de quinze horas de gravação (com cenas de abuso sexual), da apreensão realizada na residência do autor e da qualificação profissional deste último — Título da matéria (“O Médico é o Monstro”) — Alusão a conhecida obra literária que narra a vida dupla do protagonista – Inexistência de versão distorcida dos fatos ou conteúdo difamatório — Vinculação a fato verdadeiro — Inexistência de conduta injuriosa — Prevalência do interesse público no conhecimento da verdade dos fatos


– Ausência de animus nocendi afasta a pretensão indenizatória – Sentença mantida — Recurso improvido.

Cuida-se de Apelação interposta contra a r sentença proferida nos autos de Ação de Indenização por Danos Morais, que decidindo pelo mérito os pedidos formulados na petição inicial, acabou por decretar a improcedência dos mesmos, condenando o autor ao pagamento das custas, despesas processuais e honorános advocatícios, fixados em dez salários mínimos.

inconformado, apela o vencido (fls. 344/350), sustentando a necessidade de reforma da r sentença recorrida, eis que a matéria objeto da controvérsia feriu direito de imagem do autor e que, na hipótese, ocorreu de maneira extravagante e exagerada. Diz que é verdade, foi condenado a cento e vinte e quatro anos de prisão.

No entanto, na esfera penal não lhe foi atribuida a pecha de “monstro” ou “Doutor Terror”, especialmente com sua foto estampada em capa de revista

Prossegue o apelante dizendo que os réus, através da publicação em questão, extrapolaram a crônica judiciária. Reitera que o fundamento da ação é exatamente a forma extravagante com que os réus divulgaram os fatos Fundando sua pretensão no inciso X do art 5° da Constituição Federal e que a presente ação reveste-se de caráter “pedagógico”, aguarda o provimento recursal

O recurso foi recebido pelo r despacho de fls. 355 e respondido a fls. 358/369 e 366/373

É o relatório.

O recurso não comporta provimento

Buscou o autor, na tutela jurisdicional invocada (reiterada nas razões recursais) receber indenização dos réus por danos morais, que seriam, segundo ele, devidos pela veiculação de matéria na Revista Época (edição n° 201), intitulada “O MÉDICO É O MONSTRO”.

Aduz que a reportagem ali contida extrapolou os limites do exercício da liberdade de informação, atingindo sua vida privada e imagem, constitucionalmente protegidas, pela forma extravagante através da qual a notícia foi divulgada

Decidindo o mérito do pleito deduzido na preambular, o d. Magistrado de primeiro grau, com inteiro acerto, decretou a improcedência da demanda,, concluindo pela ausência de sensacionalismo da reportagem, e que esta se limita a divulgar fatos atribuidos ao autor (e não negados por ele).

Apela o autor, reiterando a argumentação de que a matéria extrapolou os limites da liberdade de imprensa, além do alegado conteúdo sensacionalista. No entanto, razão não lhe assiste.

Ao contrário do que sustenta o autor e aqui apelante, não se pode extrair da matéria veiculada pela apelada a intenção de ofender sua integridade, tampouco qualquer excesso passível de indenização.

Aludida reportagem possui caráter evidentemente jornalístico. Limita-se a informar sobre fato notório e exaustivamente divulgado pela imprensa (prisão do autor e aqui apelante, acusado da prática de pedofilia/abuso sexual de crianças).

Os fatos expostos na aludida reportagem são de conhecimento público. Falam por si. Foram amplamente divulgados, tanto na imprensa falada quanto escrita. Se sensacionalismo existe, o mesmo decorre da própria conduta do autor (que não é por ele negada).

Extrai-se da aludida matéria um resumo de mais de quinze horas de gravações contendo cenas de abuso sexual praticado pelo recorrente. Não se pode concluir pela alegada parcialidade da notícia, já que, repita-se, trata de fatos amplamente divulgados e que ensejaram a prisão do ora apelante.

Anote-se que a notícia partiu de fatos verdadeiros (como o próprio apelante admite). É verdade, intitula-se “O MÉDICO É O MONSTRO” para se dirigir ao apelante Não há, no entanto, distorção dos fatos, inexistindo o animus nocendi, o que afasta a responsabilização da ré.

O título da reportagem nada mais é do que uma alusão à obra “O MÉDICO E O MONSTRO”, escrita por ROBERT LOUIS STEVENSON, um clássico da literatura que já ganhou diversas versões cinematográficas Escrita no ano de 1886, narra a vida dupla de um habitante escocês, denominado William Brodie de dia, um respeitado marceneiro, à noite, roubava as casas dos moradores da cidade.

Referido título é utilizado, na medida em que a matéria narra a bem sucedida carreira de médico do autor, para após descrever parte do conteúdo das fitas e da prática de atos a ele imputada, que culminaram com seu encarceramento (ao menos, até a data da prolação da r sentença e da interposição do presente apelo).

Quanto à alegação do autor no sentido de que seu direito de imagem também foi atingido, a questão foi corretamente observada pelo d. Magistrado a quo, ao observar que “Os réus não precisavam de permissão do autor para publicar sua fotografia algemado porque, em primeiro lugar, repetiram cena já divulgada e em segundo lugar porque mostrar A VERDADE é o papel da imprensa. E já não é sem tempo. Não se pode mais ficar ‘dourando a pílula’. Hoje em dia, a sociedade, como um todo, clama pela divulgação maciça da verdade.


Tudo o que acontecia com o autor, acontecia em função de sua própria conduta, como bem disse o réu Paulo Moreira Leite. Com efeito, o dano moral é inexistente…”

Pelo exposto, força convir que da reportagem em questão não se extrai o propósito de causar sensacionalismo, não havendo ofensa à vida privada do autor, tampouco ela ultrapassa os limites da liberdade de informação.

Frise-se que a matéria não se afasta do conteúdo da narrativa — o que afasta a pretensão indenizatória formulada na exordial. Assim, por estar vinculada a fato verdadeiro, não se há falar em conduta injuriosa, devendo prevalecer o interesse público no que tange ao conhecimento de fatos criminosos como aquele descrito na reportagem. A esse respeito (embora cuide de reportagem que envolve crime praticado por funcionário público, mas que possui inteiro enquadramento à hipótese, eis que ambas são de interesse público), WILSON BUSSADA, na Obra DANOS MORAIS & MATERIAIS [NTERPRETADOS PELOS TRIBUNAIS, Volume IV, Editora Jurídica Brasileira, às págs. 2606 e seguintes, citando julgado extraído dos autos dos EI 54/95, do 2° CGCV do TJRJ, observa a esse respeito que:

“LEI DE IMPRENSA — Dano moral. Vinculação de fato verdadeiro não configura conduta injuriosa. Prevalência do interesse público no conhecimento de regularidade e moralidade dos atos administrativos. Conflito aparente entre o direito à intimidade e à liberdade de imprensa.

Há, no caso sub examen, um aparente conflito entre valores fundamentais, quais sejam o direito à intimidade, entre os quais se destaca, dos demais direitos da personalidade, aquele que tem por objeto a integridade moral do ser humano, previsto no ar. 12 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, na parte final em que refere: ‘Ninguém sofrerá ataques… à sua honra e reputação… e à liberdade do jornalismo de investigação, que consubstancia um dos baluartes da democracia’.

A Lei de Imprensa, ao estabelecer a responsabilidade civil, nos casos de calúnia e difamação, a excluir no § 1° do art. 49, ‘salvo se o fato imputado, embora verdadeiro, diz respeito à vida privada do ofendido e a divulgação não foi motivada em razão de interesse público.’

Diz-se que há um aparente conflito, porque, como se colhe na excelente monografia de René Ariel Dotti (Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação — Possibilidades e Limites, Revista dos Tribunais, p. 210): ‘O direito à privacidade vacila perante o interesse da Administração Pública. Esta dedução é conseqüência do entendimento segundo o qual a Administração Pública atende à comunidade, e na colisão entre o interesse comunitário e o interesse individual, este deve ser sacrificado.

No caso em tela, o que se verifica é que, em primeiro lugar, não houve qualquer ataque o autor, no que tange à sua vida privada de cidadão, mas notícias envolvendo sua qualidade funcional, como funcionário público da Justiça Federal do Trabalho, onde o interesse coletivo, referente à regularidade e moralidade dos atos administrativos, é prevalecente.

Em segundo lugar, as notícias publicadas não consubstanciam ilações do autor da matéria, mas objetivam informações colhidas em razão em um relatório elaborado pela Fenajuve e enviado à Corregedoria do Tribunal Superior do Trabalho e elementos colhidos no Diário Oficial, aliás, nenhuma delas refutada pelo embargada.

O fato é que a responsabilidade decorre de culpa ou dolo, em relação à divulgação de notícias caluniosas ou difamantes, o que não se verifica em qualquer passagem do texto inquinado, que se limitou à publicação de notícia verdadeiro, sem deturpação e sem forma abusiva ou verdadeira.

Tal fundamento também verificado pelo d. Desembargador Marcus Faver, no julgamento dos EI 203/93, do 4° Grupo de Câmaras, ao concluir pela procedência dos embargos e improcedência do pedido autoral, onde foi relembrado voto do eminente Desembargador Miguel Pachá, na 5ª Câmara deste Tribunal, no julgamento da ApCv 909/95, ‘in verbis’:

‘Se é verdade que os meios de divulgação não podem, nem devem, sob pena de responsabilidade, alterar os fatos, deturpar notícias verdadeiras, agir com abuso, e de forma escandalosa atingir intencionalmente a honra alheia, não menos real será afirmar-se que não se lhes pode exigir que, adredemente, apurem a veracidade de fatos, cuja versão lhes cheguem através de documentos assinados e da responsabilidade de terceiros.

A informação, cuja etimologia vem de informar, indica que o sentido da notícia é ‘por em forma’ os fatos, sendo criticável quando os mesmos são ‘deformados’, com culpa ou dolo, de maneira a causar dano efetivo a terceiros.

Tal, a meu ver, não ocorreu no noticiário objeto do pedido indenizatório, daí porque o voto vencido deu à questão, data vênia, a melhor solução jurídica com a manutenção do julgado monocrático…’.”

Merece igual destaque julgado extraído da Apelação Cível n. 86.755-4, da 2 Câmara de Direito Privado, que teve como Relator o Desembargador OSVALDO CARON, afastando a indenização por dano moral, quando inexiste animus nocendi, a saber

“INDENIZAÇÃO – Dano moral — Lei de Imprensa — Não configuração — Matéria jornalística isenta de conteúdo calunioso ou difamatório — Ausência de animus nocendi — Recurso não provido.”

Pelo exposto, força convir pela mexistência de nexo causal e, bem assim, da responsabilidade imputada aos réus e aqui apelados, o que afasta a pretensão indenizatória a título de danos morais

Isto posto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.

SALLES ROSSI

Relator

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