Direito de descanso

Férias fazem bem à saúde do empregado e do empregador

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19 de agosto de 2007, 0h00

Fabíola Marques - por SpaccaSpacca" data-GUID="fabiola_marques.jpeg">A advogada Fabíola Marques fez das férias o seu principal material de trabalho e estudo. Tema de sua tese de doutorado na PUC-SP, a comparação entre o que dispõe a legislação brasileira e a Convenção 132 da Organização Internacional do Trabalho sobre o descanso do trabalhador chega agora ao público em forma de livro (Férias, Novo Regime da Convenção 132 da OIT, LTr, 2007, R$ 30)

O estudo de Fabíola tem o mérito de cotejar os desajustes que persistem entre a CLT e a Convenção. De quebra, mostra a dificuldade para que uma lei “pegue” no país dos bacharéis. Ainda mais quando com a lei concorre uma convenção internacional, como é o caso.

A legislação de férias trabalhistas no Brasil é fruto de um acaso, ensina Fabíola. Ela é resultado de uma das muitas tentativas de reforma da CLT que começou e não terminou. Nos anos 70, a comissão que deveria fazer a reforma da legislação trabalhista começou pela regulamentação das férias. E parou aí. Nesta mesma época era editada a Convenção 132 da OIT, sobre o mesmo tema, que acabou balizando a formulação da reforma.

A Convenção 132, contudo, só foi ratificada pelo Brasil mais de 20 anos depois. O lapso contribuiu mais para aprofundar divergências do que para fundir convergências. Não importa que a Convenção determine apenas 21 dias de férias. No Brasil vige a regra dos 30 dias prevista na CLT. Em compensação, os trabalhadores brasileiros não descontam do total de seus dias de descanso os feriados que caem no período de férias, como prevê a norma da OIT.

Fábiola, que faz questão de gozar os 30 dias de folga que a lei lhe garante a cada ano, já elaborou até um projeto de lei para compatibilizar as duas normas. Ela está convencida que férias são uma necessidade biológica, que fazem bem à saúde tanto do empregado quanto à do empregador. “Um funcionário descansado produz mais e melhor para a empresa”, diz.

Formada pela PUC de São Paulo em 1991, Fabíola Marques advoga e ensina Direito do Trabalho desde então. Cinco anos depois já era professora da tradicional escola católica onde também completou mestrado e doutorado. Ela também leciona em outras instituições como ESPM e Unisantos. Sócia do escritório Abud e Marques Advogados, Fabíola assumiu a presidência da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AAT-SP) pelo biênio 2006-2008.

A AAT-SP, que ela assumiu no final do ano passado, já tem uma tradição de 30 anos. É a primeira vez que uma mulher preside a entidade. Com 2 mil sócios, o grupo cobra R$ 100 anuais dos membros que têm descontos em livrarias e cursos de especializações. A associação ainda promove debates sobre a questão trabalhista. O último encontro debateu a crise do trabalho no setor de aviação comercial.

Participaram da entrevista os jornalistas Mauricio Cardoso e Priscyla Costa.

Leia a entrevista

ConJur — Existe conflito entre o que dispõe a Convenção 132 da Organização Internacional do Trabalho, que trata das férias trabalhistas, e a CLT?

Fabíola Marques — A discussão do meu livro é sobre a aplicabilidade da Convenção 132 em relação à CLT. A Convenção 132, por exemplo, não fala em 30 dias de férias, mas sobre um período menor, de 21 dias. A CLT estabelece os 30 dias. Neste caso, a legislação trabalhista prevê que deve prevalecer a norma mais benéfica ao empregado.

ConJur — Mas a Convenção 132 foi ratificada pelo Brasil.

Fabíola — Para efeito de ratificação pouco importa se ela é mais benéfica ou não. Em caso de divergência ficam valendo os dispositivos da legislação nacional ou da convenção internacional que sejam mais benéficos ao trabalhador. No entanto, a regra do mais benéfico somente se aplica quando há hierarquias diferentes. No Direito do Trabalho, você tem a Constituição Federal, que é a regra principal, e em seguida as normas infraconstitucionais, a legislação ordinária, os decretos e as medidas provisórias. Tudo isso mais as convenções coletivas de trabalho, os acordos coletivos e o contrato de trabalho. Acontece que se a convenção coletiva for mais benéfica, ela prevalece. Por exemplo, a Constituição Federal garante 50% de hora extra. Mas pode haver uma convenção coletiva que dá aos bancários 60% para a primeira hora e 100% a partir das demais.

ConJur — O que prevalece neste caso?

Fabíola — Vale a convenção, por ser mais benéfica. Mas, você vê que são normas de hierarquias diferentes. Uma não modifica a outra. No Direito Civil, a gente tem a aplicação subsidiária. Uma lei nova da mesma hierarquia se sobrepõe à antiga. A história do mais benéfico se aplica apenas na hora da revogação. Quando a convenção foi ratificada, ela entra no mesmo plano da CLT. Se elas são normas iguais, elas não podem ter soluções diferentes. Como a Convenção 132 entrou como lei ordinária, ela revoga a anterior naquilo que for mais benéfica. O Tribunal Superior do Trabalho já vem aplicando a Convenção em algumas situações.


ConJur — A Convenção então não revoga o que é mais benéfico?

Fabíola — Como ela está no mesmo plano hierárquico, ela revoga só o que é pior. O que é melhor, não. Como nós já temos a garantia de 30 dias, mantém-se esta regra. Mas a Convenção 132 fala que nas férias não podem ser computados os feriados. Isso a CLT não prevê.

ConJur — Isto já está sendo aplicado?

Fabíola — Esse é outro problema. Ainda existe uma resistência na aplicação da Convenção 132. Não dá para aplicar só uma coisa ou outra. A norma mais benéfica entra em vigor porque a convenção é mais recente.

ConJur — E com relação às faltas?

Fabíola — Não mudou nada. Hoje o empregador não pode descontar as faltas diretamente das férias. Não é porque eu faltei um dia no ano que eu vou ter só 29 dias. Existe uma tabela que garante esse desconto. Pelo artigo 130 da CLT, que continua em vigência, o empregado pode faltar até cinco dias. Se tiver de seis a 14 faltas, ele terá férias de 24 dias. De 15 a 23 faltas, o trabalhador perde 18 dias de descanso. Tudo é feito de forma proporcional. Agora, se tiro férias em novembro e o dia 15, que é feriado, cai na segunda-feira, não é justo que eu tenha este dia descontado. A convenção me garante isso, mas este dispositivo, na maioria das vezes, não é aplicado.

ConJur — É possível ajustar a CLT à Convenção 132?

Fabíola — No livro, que é a minha tese de doutorado, sugiro a a alteração de alguns artigos e parágrafos para colocar a legislação em sintonia com a Convenção 132. Um dos artigos sugeridos dispõe que feriados oficiais e costumeiros não serão computados como parte do período mínimo de férias anuais remuneradas.

ConJur — Há outros ajustes a fazer?

Fabíola — Outra proposta trata sobre o fracionamento das férias. Pelo artigo 134 da CLT, posso fracionar o descanso, mas um dos períodos obrigatoriamente tem que ser de 10 dias. Assim, posso fracionar as férias, mas não em um monte de pedacinhos. No entanto, por normas de segurança, saúde e higiene, a OIT chegou à conclusão de que 10 dias não são suficientes para o descanso. A Convenção 132 diz que nenhum período de férias pode ser inferior a 15 dias. Se tiver que fracionar, tenho que ter dois períodos de uma quinzena. Se a pessoa tiver só 24 dias de férias para tirar, então ela não pode fracionar.

ConJur — Como fica a questão do abono?

Fabíola — Isso é complicado. A legislação brasileira prevê que o empregado pode “vender” as férias. Em vez de gozar os 30 dias, descansa 20 e recebe 10 em dinheiro. A Convenção 132 determina que não se pode negociar as férias. Elas são uma garantia para a saúde do trabalhador, por isso ele não pode dispor delas. É uma coisa que, na prática, tem resistência do próprio trabalhador.

ConJur — O que é mais benéfico nesse caso?

Fabíola— É a garantia de saúde do trabalhador. Tem um artigo publicado na revista Veja de um administrador de empresas chamado Stephen Kanitz (http://veja.abril.com.br/300102/ponto_de_vista.html). Ele diz que as férias “são uma conquista sociologicamente estranha, porque criam e perpetuam a idéia de que no Brasil se ganha sem ter de trabalhar”. Não se pode acreditar em um negócio desses. Nos Estados Unidos, as condições são outras. Na Europa, a média é de 30 dias úteis de férias, mas a maioria dos países tem um período maior de descanso.

ConJur — A Convenção 132 fala de dias úteis?

Fabíola — Não. Ela diz o seguinte: “a duração das férias não deverá em caso algum ser inferior a três semanas de trabalho por um ano de serviço”. A maior parte dos países ratificou a convenção com exceção de alguns asiáticos e dos Estados Unidos (que alias não ratificam nada da OIT). A Alemanha, por exemplo, tem mais de 40 dias de férias. Lá, se contam as férias por hora. Todos têm ainda um aumento do salário para o período de descanso. A garantia que deve existir é de fato para que o empregado descanse. Interessa para todos. Para a empresa, porque vai ter um trabalhador melhor quando voltar diminuindo riscos de acidente de trabalho. O empregador pode até exigir que ele não faça um bico nas férias.

ConJur — Na nossa legislação tem isso?

Fabíola — A lei permite a dispensa do empregado por justa causa se for pego trabalhando nas férias. O problema é que a CLT fala em emprego e como hoje a relação de emprego é muito relativa, se o fulano fizer um bico, ele pode dizer que não está empregado.

ConJur — A convenção também aborda a diferença entre trabalho e emprego?

Fabíola — Como é norma internacional, não dá para verificar efetivamente quem ela vai atingir. Ela fala em trabalhador. A garantia da lei brasileira é para o empregado. Não dá para estender, por exemplo, para um prestador de serviços autônomo, porque em tese ele pode tirar férias quando quiser.


ConJur — E o caso de trabalhadores de cooperativa?

Fabíola — Ele é considerado trabalhador autônomo. Se o cooperado acha que não é autônomo, deve entrar na Justiça pedindo o reconhecimento do vínculo e, conseqüentemente, do direito às férias.

ConJur — E estagiário tem direito as férias?

Fabíola — Não, porque estágio não é emprego. O vínculo é diferenciado. É um pacto de vontades entre estudante, empresa e instituição de ensino. Ele também não tem direito a salário, férias, décimo terceiro. Há quem proponha uma mudança na lei para dar férias aos estagiários e limitar a jornada para seis horas. O fato é que muitas empresas utilizam a lei de estágio para contratar mão-de-obra barata.

ConJur — O que a Convenção prevê para as férias em caso de rescisão?

Fabíola — A Justiça do Trabalho tem aceitado a Convenção 132 para pagar férias ao empregado que pede demissão. A CLT prevê que as férias são devidas quando o empregado é dispensado sem justa causa. Se ele pede demissão com menos de um ano, não tem direito a férias proporcionais. O cara trabalhou seis meses e pediu demissão? Sinto muito, perdeu suas férias, meu amigo. A Convenção, no entanto, diz que férias não têm relação com rescisão de contrato de trabalho. É um direito adquirido durante o tempo e não depende do bom ou mau trabalho.

ConJur — As empresas têm aplicado esta interpretação?

Fabíola — Têm. Essa foi uma alteração importante. Defendo até o direito de férias proporcionais para o empregado que praticou justa causa. Pela CLT, ele recebe apenas os dias do mês que trabalhou e férias vencidas. Só que a Convenção 132 admite que nenhuma legislação pode impedir o direito de férias, de pois do período aquisitivo superior a seis meses. Pela lei brasileira, só não tem direito a receber as férias quem trabalhou menos de 14 dias porque não completou um período efetivo de um mês. O que muda com a Convenção é que não posso tirar o direito de férias para o trabalhador, que estando a mais de seis meses na empresa, cometeu falta grave e foi demitido por justa causa.

ConJur — As férias são uma necessidade biológica?

Fabíola — É uma necessidade para garantia de saúde do trabalhador. As pessoas não agüentam trabalhar um período de dois anos sem tirar férias. É um direito do empregado e um dever do empregador. Mas também significa o contrário. A empresa recebe por ter um trabalhador descansado.

ConJur — Com finais de semana, feriados e férias, a conta mais ou menos é de que a cada três dias, o trabalhador descansa um. Não é muito?

Fabíola — A nossa jornada de trabalho é uma das mais longas. No Brasil, é de 44 horas. Na Europa, a média é de 40 horas. A França tem jornada de 36 horas semanais. O que importa é que o trabalho precisa ser concentrado. Nem sempre existe a necessidade do trabalhador ficar oito horas no escritório olhando para a parede. Essa negociação tem que existir. Não é séria a argumentação de que o empregado tem férias demais. Até para a economia e para sociedade, é melhor que o funcionário trabalhe menos. Se ele fica quatro horas no serviço, ganha outras horas para consumir. Como diz [o sociólogo italiano] Domenico di Mais sobre o que chama de ócio criativo: período de descanso não é só para ficar de papo para o ar, mas para ter cultura e lazer. Coisas que movimentam a sociedade. Reduzindo a jornada, você permite que mais pessoas trabalhem.

ConJur — Você tira férias?

Fabíola — Trinta dias religiosamente, 15 dias em julho e 15 em dezembro. Faço isso, porque do contrário não agüento. O volume de trabalho é muito grande. Um dos motivos que me fez escrever sobre o assunto é porque adoro férias.

ConJur — Descanso não é apenas férias.

Fabíola — Existem quatro tipos de descanso: dentro da jornada, entre uma jornada e outra, descanso semanal e descanso anual. Dentro da jornada, se o trabalhador exerce qualquer atividade de até quatro horas, não tem direito a descanso. De quatro a seis horas, tem quinze minutos. Este tempo não é para sair mais cedo ou entrar mais tarde, tem de ser usado dentro da jornada. Se trabalha mais de seis, tem de uma a duas horas. Existe a discussão sobre a negociação deste direito. Tem empregado que não gosta de fazer uma hora de descanso. Alguns dias ele está atribulado e faz meia hora de almoço. No dia seguinte ele quer compensar tirando uma hora e meia. Mas isto não pode ser feito. Por questões de saúde, o ideal é que o empregado paralise as atividades durante a jornada pelo período estabelecido.

ConJur — Mas, a tendência não é que haja uma flexibilização da jornada?

Fabíola — Os empregados hoje têm a história do banco de horas, que é de um ano. É um absurdo. Imagine que ele tenha feito dez horas em um dia em janeiro, mas só vai poder descansar em dezembro. Qual é a compensação efetiva? Para efeitos de saúde, não é bom. A Constituição permite a compensação, mas limitada. Um ano é um período longo demais. Poderia se fazer uma compensação a cada três ou quatro três meses.

ConJur — Entre hora extra e banco de horas, qual é o melhor para o trabalhador?

Fabíola— O melhor é contratar outro empregado. Sai mais caro por enquanto, mas é a melhor saída. O ideal é não ter hora extra. Mas entre uma e outra, prefiro a compensação que é mais vantajosa para ambos.

ConJur — Descanso semanal precisa ser no domingo?

Fabíola — A lei diz que é preferencialmente aos domingos, mas não é obrigatório. De um lado tem a questão da saúde mental do trabalhador, pela convivência da família. De outro tem o comércio e outras atividades essências, como médico, que funcionam aos domingos. O que a jurisprudência fixa, nestes casos, é que o trabalhador tem direito a um domingo por mês. É a garantia mínima. O mesmo para o intervalo entre um dia de trabalho e outro, que deve ter um intervalo mínimo de onze horas. Se o período for inferior, essas horas são pagas como extra. Por exemplo, ele trabalha até meia-noite. No dia seguinte, começa a trabalhar às 8h da manhã. Mesmo que saia no horário normal, ele tem três horas como extra porque não fez o intervalo.

ConJur — Historicamente, como é que surge a idéia de férias?

Fabíola — É recente. Começa depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O descanso semanal é mais antigo. As religiões já previam. Mas as férias são conquistas novas em razão da evolução do Direito do Trabalho. Na Revolução Industrial, se falava que os trabalhadores deveriam ter oito horas para dormir, oito para o trabalho e oito de descanso. Este direito vem desta luta.

ConJur — O advogado precisaria ter 60 dias de férias como os juízes?

Fabíola — Precisava ter mais tempo mesmo (risos). Principalmente o trabalhista que sofre muito na audiência. É diferente do Direito Civil. O trabalhista, primeiro, é discriminado, visto como aquele que faz acordo por qualquer coisa. A Justiça do Trabalho tem mudado. O trabalhista muitas vezes tem vergonha de dizer o que faz pela visão da sociedade.

ConJur — E juiz precisa de 60 dias?

Fabíola— O ideal é que todo mundo tivesse 60 dias de férias. Mas, realmente, não tem essa necessidade para os juízes. Apesar de ser um trabalho estressante com muita responsabilidade.

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