Devagar e sempre

Duração razoável do processo é letra morta no Brasil

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18 de agosto de 2007, 0h00

A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição de 1988

Nesta segunda-feira, 20 de agosto, o assassinato da jornalista Sandra Gomide completa sete anos. Em 5 de maio de 2006, o réu confesso do assassinato, Antônio Marcos Pimenta Neves, foi condenado em primeira instância a 19 anos, 2 meses e 12 dias de prisão em regime integralmente fechado.

Em 13 de dezembro passado, a condenação foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e a pena reduzida para 18 anos. Pimenta Neves aguarda julgamento de recurso em liberdade.

Tanto a redução da pena como a liberdade provisória do réu foram asseguradas no julgamento de dois dos 61 recursos apresentados pela defesa e pela acusação ao longo do processo. Sete anos e 61 recursos depois, ninguém foi ainda punido pelo assassinato de Sandra Gomide.

O fato de os acusados aguardarem fora da cadeia à definição de seus processos deve ser interpretado como o mais estrito e legítimo respeito aos direitos individuais, já que ninguém deve ser privado da liberdade sem condenação transitada em julgado — resguardados casos excepcionais.

Como sustentou em recente voto o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, “por maior que se mostre o afã em alcançar mudança de rumos, em coibir-se atos condenáveis, descabe o atropelo, a queima de etapas. É esse o preço que se paga por viver em um Estado Democrático, em um Estado de Direito, e, porque módico, está ao alcance de todos”.

O que deveria causar espécie não é a observância da Lei que protege direitos fundamentais da pessoa, mas a incapacidade do sistema Judiciário em aplicar a Lei no chamado “prazo razoável” prescrito pela Constituição. A sensação de impunidade que paira sobre a cabeça de Pimenta Neves não é conseqüência de eventuais falhas da Lei, mas sim, da morosidade do Judiciário em aplicar a Lei.

Crime no haras

O jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves matou a namorada e também jornalista Sandra Gomide com dois tiros à queima-roupa em um haras em Ibiúna, no interior de São Paulo. Foi condenado em primeira e segunda instâncias. Recorre da condenação em liberdade. O caso já soma 61 recursos protocolados nas várias instâncias do Poder Judiciário por ambas as partes — 45 recursos no Tribunal de Justiça de São Paulo, dez recursos no Superior Tribunal de Justiça e seis no Supremo Tribunal Federal.

A defesa de Pimenta Neves, feita pelos irmãos Carlo Frederico Müller e Ilana Müller, não fala sobre o caso. Mas um advogado que acompanha de perto o processo garante que há muitos recursos porque houve muitas irregularidades no processo. Na ânsia de acelerar o andamento do caso, juízes teriam ferido garantias individuais, o que acabou por retardar ainda mais a ação.

Um dos fatos que atravancou o andamento da causa foi a briga pela oitiva da ex-mulher do jornalista, Carole Pimenta Neves, que mora nos Estados Unidos. Com o depoimento, a defesa pretendia demonstrar que Pimenta Neves não era homem violento e que só matou a ex-namorada movido por forte emoção, o que descaracterizaria a qualificação de crime por motivo torpe.

Carta rogatória foi enviada pela Justiça brasileira para a tomada do depoimento da testemunha nos Estados Unidos. Ao receber o pedido, o juiz americano verificou erros no procedimento e o devolveu para que fosse refeito com as correções. No lugar de enviar novamente a rogatória observando os erros apontados pelo americano, o juiz brasileiro decidiu, simplesmente, rejeitar o pedido para ouvir Carole. A defesa, então, recorreu. Afinal, o próprio juiz havia feito 15 perguntas para Carole, mas agora considerava o depoimento dispensável. A pressa atuou como inimiga da vítima.

Outra irregularidade apontada pelos advogados de Pimenta Neves foi o pedido de prisão depois que sua condenação foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Segundo seus advogados, como não havia pedido de liminar em questão, a prisão só poderia ser decretada com a publicação do acórdão no Diário Oficial — momento a partir do qual as decisões passam a valer oficialmente.

Em 15 de dezembro de 2006, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, suspendeu a ordem de prisão do jornalista ao conceder liminar em pedido de Habeas Corpus. A liminar é o que garante, hoje, que o jornalista aguarde os demais recursos em liberdade. O julgamento do mérito do HC pelo STJ ainda está pendente.

Recursos e recursos

A legislação processual penal garante ao advogado Recurso em Sentido Estrito, Agravo, Apelação, Carta Testemunhável, Embargos (Infringentes, de Nulidade, de Declaração), Correição Parcial, Protesto por Novo Júri, Recurso Especial, Recurso Extraordinário, Habeas Corpus, Mandado de Segurança, entre outros.


O prazo médio para se apelar é de cinco dias, mas há recursos com prazo de 48 horas e outros de 15 dias. Algumas destas ações suspendem o andamento do processo, o que também atrasa o desfecho dos casos.

Uma boa defesa espera até o último dia para ajuizar a apelação, ainda mais se o réu estiver em liberdade. Outro ponto: se é permitido o ajuizamento dos recursos, com possibilidade de ajuizá-los mais de uma vez, não há motivo para o advogado não utilizá-los. “Advogado gosta de recorrer e tem todo direito de fazer isso porque a legislação processual permite”, afirma Alberto Silva Franco, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o IBCCrim.

Sergei Cobra Arbex, assistente de acusação no caso Pimenta Neves, nomeado dias antes do Júri que condenou o jornalista a 19 anos de prisão, considera que não é a quantidade de recursos, mas lentidão da Justiça em responder a eles que retarda o andamento do processo. “Advogado, quando recorre, está dentro da legalidade. Até porque, quando se fala em Direito Penal, não se pode restringir a possibilidade de se protocolar recursos, já que estamos lidando com direitos fundamentais”, afirma.

Para Arbex, o fato de o caso ter tramitado em segunda instância depois que a Reforma do Judiciário determinou a distribuição automática dos processos contribuiu para que os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo levassem apenas seis meses para a apelação da sentença condenatória.

Outro motivo é que a apelação caiu na 10ª Câmara Criminal do TJ-SP, justamente a mais célere. Em seis meses, os desembargadores julgaram dois pedidos de Mandado de Segurança e a apelação. O caso que levou seis anos para ser julgado em primeira instância, foi julgado em seis meses no tribunal.

Ainda assim, Arbex cumpre seu papel e reclama da estratégia da defesa. “Os advogados do Pimenta Neves chegaram a reclamar que a apelação foi julgada muito rápida e que os desembargadores foram pautados pela imprensa. Julgamento célere, agora, também é motivo de apelação”, alfineta.

Nove anos

Enquanto atua como assistente de acusação no caso Pimenta Neves, Arbex também defende um acusado cujo processo se arrasta há ainda mais tempo na Justiça. Tramita há nove anos a ação na qual Pablo Russel Rocha é acusado de matar Selma Heloísa Artigas da Silva.

De acordo com a denúncia, Russel arrastou Selma presa ao cinto de segurança de seu carro por dois quilômetros. O crime aconteceu em 1998, em Ribeirão Preto (SP). O acusado é filho de importante usineiro da região. A vítima era garota de programa.

Selma morreu na hora. Seu corpo foi abandonado em uma avenida. Russel se entregou à Polícia dias depois e confessou a autoria do crime. Sua prisão preventiva foi decretada. Em 2000, o Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus para que o acusado respondesse ao processo em liberdade.

O Tribunal de Justiça de São Paulo demorou cinco anos para julgar o recurso contra a sentença de pronúncia. Tudo por causa de um erro processual. No primeiro Recurso em Sentido Estrito — nome que se dá à peça protocolada contra a sentença de pronúncia — o advogado de Russel não foi intimado do julgamento e, por isso, não pôde fazer a sustentação oral.

Arbex recorreu ao próprio TJ argüindo cerceamento de defesa. O argumento foi aceito. Entre a primeira apelação e a segunda, passaram-se cinco anos. E, como não transitou em julgado a sentença condenatória, existem outros recursos pendentes de julgamento e não há previsão para a data do julgamento pelo Tribunal do Júri.

Pesos e medidas

Custa ao senso comum entender porque em alguns casos assassinos confessos respondem ao processo e à apelação em liberdade e em outros ficam a maior parte do tempo atrás das grades. No mesmo ano em que Pimenta Neves foi condenado e pôde recorrer em liberdade, Suzane von Richthofen e os irmãos Christian e Daniel Cravinhos, que mataram a pauladas os pais da moça, foram condenados e devidamente encarcerados.

E a condenação também foi mais rápida: o crime aconteceu em 31 de outubro de 2002 e a condenação em primeira instância foi proclamada em 22 de julho pelo 1º Tribunal do Júri de São Paulo. Suzane e Daniel, seu ex-namorado, pegaram 39 anos e seis meses de prisão. Christian terá de cumprir 38 anos e seis meses pela morte de Marísia e Manfred von Richthofen.

A justificativa para a prisão dos três é a de que tentaram influenciar os caminhos do processo. Pimenta Neves e Russel não e, por isso, estão soltos. Pode ser simples coincidência, mas o comportamento dos réus diante da mídia parece determinar sua posição no processo. Suzane e os Cravinhos preferiram se expor na imprensa — ela deu entrevista ao Fantástico da Rede Globo, eles à Rádio Jovem Pan de São Paulo — e foram para a prisão. Pimenta Neves e Russel se mantiveram longe das câmaras e microfones e aguardam julgamento em liberdade.


De acordo com um dos advogados que defendeu Suzane, mas já deixou o processo, Mário de Oliveira Filho, o caso foi mais rápido porque foram apenas seis recursos e alguns pedidos de Habeas Corpus ajuizados. Ainda assim, pelo número de contestações, o prazo não parece se enquadrar na definição de “razoável duração”.

Para Oliveira Filho, a culpa pela demora do julgamento não é da legislação processual, mas da falta de eficiência do Judiciário. “Os tribunais não estão aparelhados para tanta demanda. A falha da prestação jurisdicional é da Justiça. O advogado não pode ser visto como vilão da história. A Justiça brasileira é artesanal.”

Suzane espera, agora, conseguir liberdade no Supremo Tribunal Federal. A jovem saiu na frente no julgamento do pedido de Habeas Corpus em que requer relaxamento da prisão preventiva. O ministro Marco Aurélio, primeiro a votar, concedeu a ordem.

O julgamento do pedido de Habeas Corpus foi iniciado pela 1ª Turma do STF no dia 7 de agosto passado, mas foi interrompido por pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski. Além de Lewandowski, faltam votar Carlos Britto, Cármen Lúcia e o juiz que substituirá Sepúlveda Pertence.

No Supremo, os advogados sustentam que Suzane é uma jovem de 23 anos, primária e esteve envolvida em fatos que ocorreram quando tinha apenas 18 anos. Lembraram que na sentença proferida pelo Tribunal do Júri ficou expressa a manutenção da prisão, o que feriu seu direito de recorrer em liberdade.

Ao iniciar o julgamento do caso, o ministro Marco Aurélio lembrou voto do Superior Tribunal de Justiça sobre o mesmo caso, segundo o qual “a circunstância de a paciente haver se manifestado perante a mídia, quando da proximidade do julgamento, é elemento absolutamente neutro que pode mesmo ser tido como visando a auto-defesa”.

“A paciente (Suzane) foi tida de periculosidade maior, presente a própria condenação e não na necessidade de preservar-se a ordem jurídica”, disse o ministro Marco Aurélio. Ele concedeu o Habeas Corpus para relaxar a prisão preventiva “devendo-se aguardar, para o cumprimento da pena imposta, a irrecorribilidade do que decidido e, portanto, a preclusão do título executivo judicial”.

HC de três anos

A lentidão que marca as instâncias ordinárias também bate às portas dos tribunais superiores e do Supremo. O artigo 5º da Constituição Federal, que garante que ninguém será privado da sua liberdade sem o devido processo legal e determina a razoável duração do processo, apesar de várias vezes legitimado pelo Supremo Tribunal Federal, foi ignorado por um de seus ministros.

Foi o que sustentaram os advogados Alberto Zacharias Toron e Carla Domenico em maio deste ano ao pedir liminar em Habeas Corpus ao Supremo e conseguir a suspensão do julgamento da apelação de José Diogo de Oliveira Campos, Sílvio de Almeida e Souza, Altair Inácio de Lima, Marcelo Viana e Valdecir Geraldi, acusados de crime contra o sistema financeiro nacional.

De acordo com os advogados, seus clientes já foram julgados em primeira instância e teriam a apelação analisada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região nesta terça-feira (15/5) sem que o ministro Joaquim Barbosa tivesse se pronunciado sobre o pedido de Habeas Corpus 83.933, impetrado no STF há três anos e meio.

Contra o que consideraram omissão do ministro, os advogados entraram com novo pedido de Habeas Corpus, em que Joaquim Barbosa figura como coator, e obtiveram liminar do ministro Celso de Mello que impediu o julgamento da apelação pelo TRF-3.

Para o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, a duração razoável do processo pode ser definida como “o tempo suficiente para que o seu resultado não se torne ineficaz ou inútil”. Foi exatamente de olho nisso que o ministro Celso de Mello deu a liminar pedida por Toron e Carla, “para impedir que se concretize, em caráter irreversível, lesão ao direito vindicado, pelos ilustres impetrantes, em favor dos ora pacientes”.

Tempo perdido


Segundo a ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo, 70% do tempo de tramitação do processo são gastos em atos burocráticos, como a expedição de certidões, protocolos, registros, ou até mesmo a costura dos autos e os carimbos obrigatórios. “A este tempo denomino de tempo neutro do processo”, disse a ministra. Seria melhor chamar de tempo perdido. E nele não se conta o tempo em que o processo descansa em paz no fundo de uma gaveta.

Cezar Britto aponta ainda outro problema, que se soma ao tempo da burocracia cartorária: a ausência de prazo claro de cobrança para o magistrado encarregado do julgamento. “Não há punição para aqueles que comprovadamente negligenciam sua tarefa de decidir”, afirma.

Informatização, prazo para decidir, respeito a garantias individuais são alguns dos pontos que devem ser observados para que a Justiça brasileira passe a distribuir justiça em tempo “razoável”. Mas enquanto a razoabilidade não encontra guarida no relógio do Poder Judiciário, advogados buscam saídas mais práticas para combater a morosidade.

Um exemplo foi o anúncio feito pelo advogado Ubiratan Costa Vieira, em texto publicado no site Espaço Vital. Com seis meses de antecedência, ele avisou que enviaria um bolo de aniversário à 2ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre quando, eventualmente, seu processo completasse um ano de inércia cartorária. Ao tomar conhecimento do caso, a juíza Rosane Bordasch deu andamento ao processo e ressaltou “a integral razão da manifestação de V.Sa., destacando que já estão sendo tomadas providências para o pronto restabelecimento da situação”.

Celeridade escandalosa

Ser lento no Judiciário se tornou tão natural que andar no passo certo é motivo de escândalo. Foi o que aconteceu em Campinas, onde a subsecção da OAB encaminhou requerimento ao corregedor-geral do Tribunal de Justiça de São Paulo em que reclama medidas correcionais contra o juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública, suspeito de “inexplicável exceção à regra da morosidade reinante”.

Os zelosos representantes da OAB em Campinas reclamam que uma ação de indenização ajuizada no dia 8 de março tenha terminado em acordo, com registro da sentença homologatória em 4 de maio do mesmo ano — “em menos de dois meses (aproximadamente 58 dias corridos e 39 dias úteis)”, horrorizam-se os autores do requerimento.

Na base da suspeita dos advogados de Campinas, está o fato de ser autora da ação, e beneficiária da celeridade judicial, uma juíza — Heliana Maria Coutinho Hess, titular da 2ª Vara da Fazenda Pública de Campinas. O requerimento da OAB sequer cita o nome do juiz recordista de velocidade — Mauro Fukumoto — mas deixa no ar uma outra suspeita. A de que há mais interessados na morosidade da Justiça do que faz supor nossa vã filosofia.

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